O Estado de S. Paulo

‘O Menino e a Garça’ recorre a fantasias para enfrentar as dores

- MATHEUS MANS

Mahito Maki não poderia estar mais vulnerável. A mãe morreu tragicamen­te em um incêndio, durante os primeiros combates da Segunda Guerra Mundial, e seu pai agora está se casando com a ex-cunhada. Assim, é inevitável que o protagonis­ta de O Menino e a Garça, em cartaz nos cinemas – e que concorre ao Oscar de melhor animação – se sinta deslocado.

E é aí que o cineasta Hayao Miyazaki entra com toda sua genialidad­e. Com trama e estética similares ao que vimos em A Viagem de Chihiro (2001), o longa-metragem mostra Mahito se refugiando desse mundo que, a seu ver, só entrega o que há de pior.

O refúgio? A criativida­de. O jovem, depois de passar por um período complicado na casa da tia-madrasta, desaparece dentro de uma torre que um tio, há muito falecido, construiu. O espaço, por mais que traga alguma concretude, é uma zona criativa em que periquitos comem humanos e as pessoas podem passear pelo espaço-tempo.

Esse contexto traz algo bastante autobiográ­fico do próprio Miyazaki. Ele, que há anos está ameaçando se aposentar, reflete sobre a função da fantasia em sua vida e como suas experiênci­as influencia­ram seu caminho pelo cinema.

INFÂNCIA. O filme apresenta, por exemplo, aspectos reais da infância do cineasta, como a relação do pai com a indústria armamentis­ta na guerra, ou a figura da mãe como sua principal fonte de inspiração. E há o cativante personagem da garça, que mente para o garoto a todo momento. É ela que o faz entrar nessa torre criativa. “Eu sei que é mentira, mas tenho de ver”, diz Mahito. Miyazaki sabe que as realidades que cria não são verdadeira­s. Tudo ali é fabricado para aplacar dores. Mais do que a criativida­de, são as mentiras que protegem Mahito, e, por consequênc­ia, Miyazaki, do mundo que os cerca.

Enquanto o mundo reclama de sua possível aposentado­ria, Miyazaki mostra que precisa de equilíbrio. É preciso ter uma dose de criativida­de, mas também enfrentar o que há lá fora, de frente. A resposta final de Mahito, que se assemelha às escolhas das pílulas de Matrix, é o ponto final mais bonito que o diretor poderia escolher: o mundo de fantasia se molda à nossa vontade, a partir de possíveis mentiras, mas ainda há esperança lá fora. É só abrir os olhos. •

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STUDIO GHIBLI/GKIDS Cena da história: para o autor, a figura da mãe é sua inspiração

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