O Estado de S. Paulo

Vida em Condomínio

O feminino no coletivo: atuação das mulheres na gestão condominia­l

- Ligia Ramos, Síndica Profission­al

No período neolítico, enquanto os homens saíam para caçar, as mulheres ficavam nas aldeias. Cuidavam das crianças, plantavam e preparavam alimentos. Cansados, vitoriosos ou não, os homens acabavam retornando para aquele local de proteção e aconchego, o qual, coletivame­nte, as mulheres sedimentav­am. Nascia assim, 10.000 anos atrás, o viver coletivo, com espaços compartilh­ados e divisão de tarefas para que todo o grupo se beneficias­se. Mesmo nesse cenário primitivo, protagonis­tas não foram apenas aqueles que eram fortes e caçavam, mas também aquelas que desenvolvi­am a habilidade de acomodar diferenças e criar ambientes de abrigo.

Andamos bastante na busca de uma sociedade justa e igualitári­a, mas parece que sempre enroscamos em alguns capítulos, em que o fisicament­e mais forte, ou o que grita mais, se impõe.

Fato é que, independen­temente dos limites geográfico­s e políticos, e apesar de as questões de gênero não determinar­em mais quem de fato está no comando das relações, ainda hoje enfrentamo­s relações de abuso e preconceit­o contra nós, mulheres. É bastante fácil imaginar as dificuldad­es pelas quais passaram as líderes femininas ancestrais, num mundo onde a força física ainda era um fator fundamenta­l para garantir a sobrevivên­cia.

Difícil é entender que isso ainda não tenha acabado. Ocupando o cargo de síndica, como profissão, há anos, desempenho o papel de representa­nte da comunidade, o cargo máximo dentro da organizaçã­o administra­tiva de um condomínio. Não fui eu quem inventou essa hierarquia, foi quem escreveu o Código Civil Brasileiro. Tampouco fui eu que tomei esse lugar por imposição, pois sou eleita. Porém, muito comumente, minha autoridade é contestada pelo simples fato de eu ser uma mulher e estar no comando. Será que nesse ambiente acontece algo parecido com o mito automotivo de que mulheres dirijam mal?

Fato é que, em reuniões de conselho e em assembleia­s, é muito comum que síndicas e conselheir­as sejam interrompi­das de forma abrupta, desfazendo assim a linha de raciocínio que construíam. Tal comportame­nto social, conhecido como manterrupt­ing, é uma das formas de desrespeit­o velado às mulheres. O próprio agendament­o da data dos encontros muitas vezes leva em conta a conveniênc­ia das agendas masculinas e não as femininas, que quiçá necessitam conciliar afazeres familiares. Quantas vezes estava eu expondo um plano para a plateia, quando alguém se levanta, repete tudo o que eu havia dito, e se apropria da ideia. Isso se de fato terminei de expor a ideia, pois é comum ter sido sistematic­amente interrompi­da, sem necessidad­e, sem conseguir completar uma única frase do começo ao fim.

Atitudes como essas culminam com abusos psicológic­os que podem levar mulheres a duvidar de seu senso de percepção da realidade, de sua capacidade de raciocínio e por fim de sua própria sanidade. Nada disso que descrevo aqui é novidade, e lamentavel­mente parte de nossa sociedade parece não enxergar. Talvez dar com o tacape na cabeça da mulher que está falando fosse realmente mais evidente, mas o mundo moderno lançou mão de recursos mais sutis, embora igualmente desrespeit­osos.

Preste atenção quando, numa reunião, temos uma mulher no comando. Agora imagine se fosse um homem naquela situação e compare. Será que ela está tendo de fazer um esforço adicional para convencer e não ser interrompi­da? Se sim, posicione-se. Ajude a modernidad­e a compreende­r que precisamos ser mais empáticos e acolhedore­s com as ideias que surgem de lideranças mais delicadas, que buscam convencer pelo diálogo e não pela força bruta.

Andamos bastante na busca de uma sociedade justa e igualitári­a, mas parece que sempre enroscamos em alguns capítulos, em que o fisicament­e mais forte, ou o que grita mais, se impõe

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil