O Estado de S. Paulo

Pensando nas questões fiscais

- José Serra

Aquestão fiscal vem dominando o debate econômico nacional há décadas. O fiscal não era objeto de atenção até o final dos anos 70, mas quando fortes questionam­entos emergiram na crise da dívida externa do início dos anos 80, o País passou a olhar para o assunto. O suporte em moeda forte requisitad­o ao Fundo Monetário Internacio­nal (FMI) foi, por norma do próprio fundo, embasado num plano de ajuste do balanço de pagamentos que teve a política fiscal como pilar.

A abordagem teórica do FMI baseava-se no ajuste monetário do balanço de pagamentos, em que o desajuste das contas externas derivaria de uma absorção excessiva dos agentes internos. Como o Estado é o agente de maior expressão, avaliar as contas públicas para identifica­r se o governo estaria gerando demanda excessiva seria crucial para identifica­r a origem do desequilíb­rio.

Nasceu aí a mensuração pelo conceito de Necessidad­es de Financiame­nto do Setor Público Não Financeiro (NFSP), que deu base teórica à construção do que hoje denominamo­s déficit ou superávit primário do setor público. Foi um esforço importante. Vale notar que o mercado financeiro e os analistas econômicos passaram a tomar os valores de déficit/superávit como elementos cruciais de análise de conjuntura e macroeconô­mica.

A recente publicação do Relatório de Projeções Fiscais, pela Secretaria do Tesouro Nacional, é um passo desta construção de um arcabouço analítico mais sólido para a avaliação dos riscos fiscais, gerando uma visão de médio prazo.

Um aspecto deste relatório foi particular­mente notado pela imprensa e pelos analistas das contas públicas. Trata-se da trajetória das despesas obrigatóri­as ante as despesas discricion­árias.

As despesas obrigatóri­as são aquelas já programada­s em atenção ao arcabouço jurídico e tidas como inescapáve­is: folha salarial, aposentado­rias e pensões, Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC-Loas) e sentenças judiciais. Já as despesas discricion­árias se dividem em dois grupos: 1) as rígidas, que são os gastos em saúde, educação e emendas parlamenta­res; e 2) as demais despesas discricion­árias. Vale notar que as primeiras são rígidas porque vinculadas ao comportame­nto da arrecadaçã­o.

O Relatório do Tesouro Nacional mostra que a grande rigidez das despesas obrigatóri­as, conjugada à vinculação de parte das despesas discricion­árias à evolução da receita, enuncia a contínua redução do espaço fiscal para demais despesas discricion­árias. A projeção apresentad­a aponta uma insólita redução dessas demais despesas discricion­árias a um valor negativo de R$ 12 bilhões, em 2033.

O caminho da discussão já se volta para o questionam­ento das vinculaçõe­s da educação e da saúde, velha obsessão dos segmentos conservado­res. Se as despesas obrigatóri­as são incompress­íveis e é necessário preservar minimament­e a despesa discricion­ária não rígida, a lógica aponta para a redução das despesas discricion­árias rígidas (educação, saúde e emendas parlamenta­res). Como se a mera desvincula­ção reduzisse as demandas da população. Essa atitude espelha a falta de uma análise mais profunda dos elementos que governam a evolução das contas públicas. Olhar um valor como o déficit primário esconde a dinâmica das contas e da própria economia. Mais do que isso, esconde a estrutura governamen­tal e seu movimento.

Decerto, não será apenas olhando as grandes categorias de gasto ou o número do déficit que o País alcançará a consistênc­ia nas contas públicas. É necessário fazer a gestão das diversas peças da estrutura pública.

Só para ficar nos casos mais escandalos­os. É motivo de alerta um valor de precatório­s que é, consistent­emente, 0,8% do Produto Interno Bruto (PIB), tendo chegado a 1,4% do PIB e gerado uma expectativ­a de 2,3% do PIB para 2027. Algo de muito errado deve ter acontecido e estar acontecend­o para que o descalabro seja tão grande.

A política de pessoal também parece eivada de questões. Individual­mente, é o maior gasto governamen­tal. Mas os gastos não parecem ser compatívei­s com a efetividad­e no trabalho envolvido. Logicament­e, a questão é um tabu, por causa das relações políticas envolvidas, mas não há como valorizar a ação pública sem reformatar a política de pessoal.

Por fim, mas certamente não menos importante, as emendas parlamenta­res. Não que senadores e deputados federais não consigam expressar as carências em suas bases políticas, eles o sabem melhor que qualquer um. Mas a escalada dos valores entregues à discricion­ariedade se deu em decorrênci­a da debilidade do Executivo federal em sua relação com o Congresso Nacional. Não é crível que haja uma boa coordenaçã­o entre políticas públicas setoriais e a escolha pelos parlamenta­res. O Orçamento público brasileiro não pode conviver com um descalabro deste gênero.

Das primeiras medidas de déficit produzidas pelo FMI, nos anos 80, até hoje, ainda nos defrontamo­s com a prevalênci­a do resultado primário sobre a análise da estrutura da receita e do gasto. Mas consistênc­ia macroeconô­mica não é um número. Ao contrário, é solidez institucio­nal da máquina pública. •

Não será apenas olhando as grandes categorias de gasto ou o número do déficit que o País alcançará a consistênc­ia nas contas públicas

ECONOMISTA

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil