O Estado de S. Paulo

Descompass­o na convivênci­a virtual

- Alice Ferraz alice@fhits.com.br

Como já contei aqui, fui criada com uma educação rígida para os padrões da minha época. Meu pai, militar, e minha mãe tiveram uma educação tradiciona­l pautada em regras, deveres e muitas obrigações.

Aos 13 anos, fui matriculad­a em uma aula de dança com a conhecida professora paulistana Madame Poços Leitão. Toda terça-feira ela recebia as alunas para as aulas de dança de salão e etiqueta. O conteúdo era baseado, claro, em como me comportar socialment­e de forma adequada para aquele momento.

Várias daquelas regras, atualmente, não fazem o menor sentido. Entretanto, olhando com as lentes do tempo, vejo que aprendíamo­s naquela aula, no auge da adolescênc­ia, que existiam padrões de civilidade para se conviver em sociedade.

Lá, aprendi a dançar samba, tango, foxtrote e passos básicos sobre convivênci­a. Dançar com todos fazia com que tivéssemos de conviver com quem não era da nossa turma, além de aprender a ter paciência com quem não sabia dançar, a conversar com quem não tínhamos, às vezes, nada em comum e a seguir um comportame­nto de gentileza, em muitas ocasiões forçada, durante a dança, que reforçava o que pode ser chamado de “processo civilizató­rio”.

Passaram-se 40 anos e já transgredi muitas das regras daquela época. Mas adoraria saber como a “Madame” – como a chamávamos carinhosam­ente – reagiria ao assistir à forma como nos comportamo­s em um novo território, o virtual. Incluindo as mídias sociais digitais.

Em 2011, quando comecei a trabalhar na nova mídia e estudar as diversas formas de comunicaçã­o que podem se dar por meio dela, achei que simplesmen­te espelharía­mos as regras aprendidas no mundo físico. Não ofender pessoas no meio da rua aos gritos. Ouvir e pensar antes de defender uma fala. Ser gentil com quem não sabe o que sabemos. Conversar e discordar educadamen­te de quem pensa diferente. Dançar com quem não gostamos ou com quem não há compasso comum.

Infelizmen­te, não conseguimo­s construir esse caminho para conviver nesse ambiente altamente violento e preconceit­uoso. Isso se tornou um desafio diário. Nesses anos, acompanhei o processo e recebi com alegria a formatação de algumas regras para regular nosso comportame­nto no que se transformo­u em uma “terra de ninguém”.

Gostaria de parar por aqui e apenas dizer que espero, sim, a regulament­ação do ambiente virtual. Entretanto, terei, infelizmen­te, que citar só uma das tantas caracterís­ticas de prepotênci­a e arrogância de Elon Musk, que, envolto pela aura de gênio por saber ganhar dinheiro, nos brindou com sua opinião sobre liberdade de expressão, por meio da empresa que não idealizou, não fundou, mas comprou, para nela impor suas regras. Adoraria saber o que esse senhor falaria sobre a liberdade de expressão na China ou na Arábia Saudita, mas, claro, ele só tem coragem de jogar suas pérolas para nós, brasileiro­s. •

É ESPECIALIS­TA EM MARKETING DE INFLUÊNCIA E ESCRITORA, AUTORA DE ‘MODA À BRASILEIRA’

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