O Estado de S. Paulo

No Brasil, abrir igreja é fazer um país

- Renata Nagamine e Aramis Luis Silva SÃO, RESPECTIVA­MENTE, PESQUISADO­RA DE PÓS-DOUTORADO NO NÚCLEO DE RELIGIÕES NO MUNDO CONTEMPOR­NEO DO CEBRAP (FAPESP, PROCESSO N.º 2022/16449-6); E PESQUISADO­R DO CENTRO DE IMAGINAÇÃO CRÍTICA

Quando os dados do Censo 2022 sobre usos do domicílio saiu, chamou a atenção o número de “estabeleci­mentos religiosos”: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a (IBGE), mais de 580 mil. Para dimensiona­r esse número, jornais o compararam com a quantidade de escolas e hospitais existentes no País, mostrando que os “estabeleci­mentos religiosos” os superavam numericame­nte.

Um painel com o georrefere­nciamento de organizaçõ­es e associaçõe­s religiosas no Brasil lançado na sequência pelo Observatór­io da Religião e Intersecci­onalidades do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to (Cebrap) mostra que, destes 580 mil “estabeleci­mentos religiosos”, cerca de 123 mil estão inscritos no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), e estão ativos perante a Receita Federal. O mapa torna visível um achado do projeto temático Religião, direitos e secularism­o, concluído em 2022: abrir igreja é um dos modos de “fazer religião” no Brasil.

A proposição pode parecer estranha. No Brasil, é comum acreditar que religião é algo que se tem. Também é comum acreditar que esse algo é uma crença, um conjunto de preceitos adquiridos sobre a ordem do mundo ou de conhecimen­tos transmitid­os pela tradição. Da matriz católica que produziu o que convencion­almente se percebe como religião no País vem outro senso comum: a centralida­de do dogma.

A Antropolog­ia nos leva a pensar que temos uma crença na crença. Nossas pesquisas de campo em dois sucessivos projetos temáticos no Cebrap nos levam a pensar, por sua vez, que parte dos autodeclar­ados religiosos é alheia àquela crença. Para eles, religião seria um modo de fazer e viver o mundo.

Entre estes, muitos regulariza­m seus “estabeleci­mentos religiosos”, por meio da adoção de uma forma jurídica que os torna reconhecív­eis pelo Estado brasileiro. As duas formas à disposição deles são organizaçã­o e associação religiosa. Para adotar qualquer uma delas, o “estabeleci­mento” precisa tomar uma série de medidas práticas: obter alvará de funcioname­nto na prefeitura, constituir diretoria, adotar estatuto social, dar-se um nome (razão social), entre outras.

Não por acaso, encontramo­s com facilidade na internet escritório­s de contabilid­ade especializ­ados na assessoria de organizaçõ­es e associaçõe­s religiosas. “Fazer igreja” é uma atividade que requer toda uma tecnologia, um saber prático, que vai muito além da pregação e do aconselham­ento. Como a organizaçã­o ou associação religiosa precisa atualizar sua situação cadastral periodicam­ente, passa a atualizar balanço contábil e prestar contas perante os órgãos do Estado.

A pesquisa do observatór­io ainda fornece elementos para compreende­r uma dimensão pouco comentada do “fazer religião” no Brasil. Se, por um lado, está claro que abrir igreja é um modo de fazer religião, como argumenta Paula Montero, por outro, é preciso examinar como a produção destes espaços sociais impacta a constituiç­ão do território nacional.

O processo que torna o mapa brasileiro pontilhado de núcleos religiosos nos possibilit­a visualizar a produção de espaços sociais ao longo do tempo. O pontilhado aumenta a partir dos anos 1980 e se intensific­a a partir dos anos 2000, com um aumento vertiginos­o entre 2008 e 2011.

O Observatór­io da Religião e Intersecci­onalidades ainda não divulgou sua classifica­ção das organizaçõ­es e associaçõe­s por vertentes religiosas. Mas uma busca por termos possibilit­a visualizar que esse aumento é concentrad­o em denominaçõ­es como a Assembleia de Deus, a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Batista.

Se confirmado no decorrer da pesquisa, o acentuado aumento da abertura formal de organizaçõ­es e associaçõe­s nos últimos anos do segundo mandato de Lula desafiará adeptos da narrativa de perseguiçã­o religiosa a mostrar como ela ocorreu. Será difícil sustentar que foi pela oposição de qualquer tipo de obstáculo à abertura e manutenção de espaços de culto.

Também é importante refletir sobre uma dimensão menos discutida do crescente pontilhado do mapa do Brasil: a relação entre religião e ocupação territoria­l a partir dos anos 1980. Ela indica a importânci­a da Constituiç­ão de 1988 na abertura formal e informal de igrejas, logo, na produção de espaços sociais.

Uma dimensão da produção destes espaços é que, por meio dela, a terra física formalment­e demarcada como território do Brasil ganha sentido para a sociedade. Nesse sentido, “fazer igreja” é tanto um modo de “fazer religião” quanto um modo de “fazer um país”.

Não é preciso acreditar. É possível ver no Painel com Georrefere­nciamento de Organizaçõ­es e Associaçõe­s Religiosas, que torna visível a ocupação do território a oeste e em alguns corredores fluviais amazônicos.

Se, por um lado, as apresentaç­ões gráficas que o observatór­io traz evidenciam a proposição de que a religião se faz “fazendo igreja”, por outro, essa proposição não nos ajuda a compreende­r as oscilações grandes, súbitas e contrárias dos números no Brasil no intervalo que vai de 2008 a 2015. Para compreendê­las, pode ser útil lembrar que “fazer igreja” é um modo, não o único modo, de “fazer religião” no Brasil. •

Processo que torna o mapa brasileiro pontilhado de núcleos religiosos nos possibilit­a visualizar a produção de espaços sociais ao longo do tempo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil