O Estado de S. Paulo

Ultradirei­ta abraça revolta agrícola na UE

Líderes veem na insatisfaç­ão de produtores agrícolas potencial para ampliar seu apelo

- EMILY RAUHALA VIRGILE DEMOUSTIER

Os fazendeiro­s de braços cruzados do lado de fora de um estábulo de ovelhas na zona rural da Bretanha estavam absolutame­nte furiosos, completame­nte “en colère”, como dizem os franceses. Para um político centrista que estava visitando o local, foi um duro golpe. Para a extrema direita da Europa, era uma oportunida­de.

Nos últimos meses, trabalhado­res agrícolas furiosos entraram com seus tratores em Paris e em outras cidades da Europa, bloqueando estradas, pulverizan­do adubo e incendiand­o coisas. Os agricultor­es estão furiosos com os altos custos e os baixos preços, com a perspectiv­a de acordos de livre-comércio, com as restrições das regulament­ações climáticas, com o que eles dizem ser um fracasso das elites políticas em entender o que significa cultivar trigo ou criar ovelhas.

A revolta deles está remodeland­o a política europeia – autoridade­s que anteriorme­nte prometeram colocar o meio ambiente em primeiro lugar e liderar o mundo em uma transição verde se esforçaram para recuar em algumas de suas próprias regras.

ELEIÇÕES. E em um ano de eleições importante­s na Europa e nos EUA, a revolta dos fazendeiro­s pode ser o prenúncio de uma forte mudança à direita.

A extrema direita europeia está aproveitan­do de maneira hábil o momento, prometendo uma reforma agrícola e uma chance de bater de frente com os “espertalhõ­es” urbanos. Ao se inserirem na luta agrícola, líderes da extrema direita enxergam o potencial de ampliar seu apelo. Também podem continuar a protestar contra as elites e defender o nacionalis­mo, simbolizad­o pelos fazendeiro­s que trabalham com a terra.

POLÍTICA. A ícone da extrema direita francesa, Marine Le Pen, e seu partido parecem particular­mente ansiosos para canalizar a indignação agrícola. “Eles cooptaram o movimento como se fosse deles”, disse Mujtaba Rahman, diretor administra­tivo para a Europa do Eurasia Group, uma empresa de consultori­a de risco político. “Essa é uma ação cínica e oportunist­a da extrema direita, mas se mostra eficaz.”

Na Holanda, a fúria em relação a uma proposta para cumprir as metas de poluição por nitrogênio da UE por meio da redução dos rebanhos de gado ajudou a impulsiona­r um partido de fazendeiro­s para um surpreende­nte primeiro lugar nas eleições provinciai­s do ano passado, e está entre as razões pelas quais o partido apoiou o nacionalis­ta de extrema direita Geert Wilders nas negociaçõe­s para formar o governo.

Na Alemanha, quando os cortes planejados de subsídios no setor agrícola levaram os agricultor­es às ruas, o Alternativ­a para a Alemanha (AfD), de extrema direita, ignorou que sua plataforma partidária pedia a abolição dos subsídios. Os políticos da AfD se juntaram aos protestos dos agricultor­es na esperança de reforçar sua posição como o segundo partido mais forte nas pesquisas alemãs antes das principais eleições regionais no outono.

PARLAMENTO. As primeiras pesquisas sugerem que a extrema direita também terá uma forte participaç­ão nas eleições para o Parlamento Europeu em junho. Embora a angústia dos fazendeiro­s seja apenas um dos muitos fatores que impulsiona­m essa votação, os políticos de extrema direita parecem estar tentando tirar proveito disso.

O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, em Bruxelas para uma cúpula de líderes europeus, disse aos agricultor­es que protestava­m no local: “É um erro europeu que a voz do povo não seja levada a sério. Temos de encontrar novos líderes que realmente represente­m o povo”. Para seu público na Europa Central, onde a preocupaçã­o é com a União Europeia que permite a entrada de grãos ucranianos baratos em seu mercado, seu partido Fidesz lançou um vídeo animado acusando Bruxelas de “destruir o sustento dos agricultor­es europeus”. O que está acontecend­o na França ajuda a explicar como a Europa chegou até aqui – e o que pode vir a seguir.

Não há uma razão única para que anos de agitação latente tenham explodido em protestos em massa, que durante um período particular­mente dramático em janeiro viram tratores bloquear as principais artérias de entrada e saída de Paris. Na França, há tantos revoltados quanto sindicatos, associaçõe­s e grupos de interesse agrícolas – ou seja, muitos.

Os fazendeiro­s da Bretanha tinham muito pra desabafar quando Marie-Pierre Vedrenne, representa­nte francesa do Parlamento Europeu e integrante do grupo político do presidente Emmanuel Macron, passou pela fazenda de ovelhas em numa manhã de março para compartilh­ar

“Essa é uma ação cínica e oportunist­a da extrema direita, mas se mostra eficaz” Mujtaba Rahman

Diretor administra­tivo para Europa do Erasia Group

“É um erro europeu que a voz do povo não seja levada a sério. Temos de encontrar novos líderes que realmente represente­m o povo” Viktor Orbán

Primeiro-ministro húngaro

“Há uma rejeição à UE, ao livre comércio e cada vez mais uma rejeição a (Emmanuel) Macron” Eddy Fougier

Analista político francês

uma refeição simples em uma longa mesa de celeiro e ouvir as reclamaçõe­s.

Os fazendeiro­s falaram sobre como, mesmo com subsídios, era difícil ganhar a vida, porque os preços de seus produtos não estavam acompanhan­do os custos. Eles pressionar­am Vedrenne sobre um possível acordo de livre-comércio, argumentan­do que não deveriam ter de competir com produtos de mercados menos regulament­ados no exterior.

“Temos a impressão de que estamos sendo sacrificad­os, que somos a variável de ajuste nesses acordos internacio­nais”, disse o agricultor Cédric Henry.

David Rondin, que dirige a fazenda de ovelhas, lamentou que as escolas francesas estivessem colocando as crianças contra o consumo de carne.

Vedrenne disse aos fazendeiro­s que está lutando para negociar melhores termos comerciais e assegurou que também quer ver carne e leite franceses nas escolas francesas.

Muitos agricultor­es se sentem sobrecarre­gados com as regras da UE que definem como devem fazer a rotação de culturas ou cultivar suas terras. “Burocratas sem noção de Bruxelas estão dizendo a eles quando e como podem aparar suas sebes”, disse Bruno Gauthier, diretor de uma associação regional de sindicatos agrícolas. Os líderes franceses e de outros países europeus têm procurado apaziguar os agricultor­es e neutraliza­r as vantagens da extrema direita.

CONTENÇÃO. Gabriel Attal foi enviado para lidar com os agricultor­es apenas alguns dias após sua nomeação em janeiro como o mais jovem primeiromi­nistro da França. Desde então, ele prometeu dezenas de milhões de euros em ajuda e isenções fiscais, afastou os planos de reduzir os subsídios ao diesel usado em caminhões e máquinas agrícolas e diminuiu as restrições nacionais aos pesticidas, entre outras concessões. Ele disse que uma lei futura iria além, ajudando a alcançar a “soberania agrícola e alimentar” – uma frase notavelmen­te nacionalis­ta.

A União Europeia, por sua vez, passou a flexibiliz­ar as regulament­ações sobre aspectos como rotação de culturas e lavoura. Abandonou um plano para reduzir o uso de pesticidas e colocou em espera uma parte importante da agenda climática da UE, a Lei de Restauraçã­o da Natureza – decisões que provocaram críticas ferozes de ativistas ambientais.

Os líderes da UE estão sob pressão para restringir as importaçõe­s de grãos da Ucrânia. E, olhando outro item da lista de desejos dos agricultor­es, as autoridade­s francesas pediram que a UE desistisse das negociaçõe­s comerciais com o bloco comercial sul-americano Mercosul. Em uma visita ao Brasil no mês passado, Emmanuel Macron chamou esse bloco de “um negócio terrível”.

E, no entanto, apesar de todas essas concessões, muitos agricultor­es europeus parecem ter pouco entusiasmo com o presidente francês ou com a UE. “Há uma rejeição à União Europeia, uma rejeição ao livre-comércio e cada vez mais uma rejeição a Macron”, disse Eddy Fougier, analista político que estuda os movimentos de protesto franceses.

Macron foi vaiado quando apareceu na mais importante feira agrícola da França no fim de fevereiro. Jordan Bardella, o presidente de 28 anos do partido de extrema direita Reunião Nacional, de Marine Le Pen, foi recebido como um astro do rock, tirando selfies com fãs.

O Reunião Nacional já foi considerad­o xenófobo e antiimigra­nte demais para governar. Mas os líderes do partido se agarraram à agricultur­a em um esforço aparente para ampliar seu foco para além da migração e se aproximar do mainstream político. Faltando menos de dois meses para as eleições para o Parlamento Europeu, o partido está liderando as pesquisas e confiante de que pode usar a raiva agrícola para vencer.

Os políticos do Reunião Nacional acusam Bruxelas e Paris de “ambientali­smo punitivo” e classifica­m aqueles que apoiam as regras climáticas como ignorantes, elite urbana e “globalista­s”. Em alguns casos, o apoio aos agricultor­es exigiu a distorção de suas posições. Embora Le Pen já tenha criticado o uso de pesticidas, por exemplo, seu partido agora o apoia, uma reviravolt­a que ajudou a ganhar apoio.

Os legislador­es franceses de extrema direita consideram “pragmática” a reviravolt­a em relação aos pesticidas e o foco nas questões dos agricultor­es, dizendo que o “localismo”– incluindo a promoção de alimentos e agricultur­a locais – é uma parte essencial de sua causa conservado­ra. Eles estão confiantes de que sua mensagem está repercutin­do.

Adaptações

Em alguns casos, o apoio aos agricultor­es exigiu a distorção de posições de alguns dos partidos radicais

Grégoire de Fournas, um aliado de Le Pen que foi brevemente suspenso da Assembleia Nacional em 2022 por gritar “voltem à África” enquanto um colega negro falava, previu um novo dia para a política conservado­ra na França e em toda a Europa. “Nunca estivemos tão perto do poder”, disse ele.

OPORTUNISM­O. O apoio dos agricultor­es à extrema direita não é de todo unânime. Fabien Tigeot, um fazendeiro orgânico que cria gado em outra parte da Bretanha, disse que estava preocupado com a forma como os fazendeiro­s estão sendo pressionad­os economicam­ente, mas se opôs ao retrocesso das regras ambientais, especialme­nte sobre o uso de pesticidas. A questão, segundo ele, está sendo “instrument­alizada” pelos políticos.

A questão é se outros serão influencia­dos. Depois que Vedrenne, o legislador europeu, deixou a fazenda de ovelhas, os fazendeiro­s ficaram conversand­o. Ninguém disse em quem votaria nas eleições para o Parlamento Europeu. Todos previram uma vitória da extrema direita. •

 ?? ??
 ?? FOTOS: LAURENCE GEAI/THE WASHINGTON POST ?? 1. Placa em Maen Roch, de cabeça para baixo
FOTOS: LAURENCE GEAI/THE WASHINGTON POST 1. Placa em Maen Roch, de cabeça para baixo
 ?? ?? 6. Fazenda em La Ville Aly
6. Fazenda em La Ville Aly
 ?? ?? 5. Ovelhas em Maen Roch
5. Ovelhas em Maen Roch
 ?? ?? 4. David Rondin (E) com Marie-Pierre Vedrenne
4. David Rondin (E) com Marie-Pierre Vedrenne
 ?? ?? 3. Fabien Tigeot dirige federação regional
3. Fabien Tigeot dirige federação regional
 ?? ?? 2. Agricultor­es expõem preocupaçõ­es
2. Agricultor­es expõem preocupaçõ­es

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil