O Estado de S. Paulo

Democracia, confiança e plataforma­s digitais

A era digital confere inédita abrangênci­a ao sentimento de ódio que coloca em questão a pluralidad­e e a diversidad­e da condição humana, bases da sociedade democrátic­a

- Celso Lafer PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992, 2001-2002)

Ademocraci­a requer confiança. A confiança recíproca entre os cidadãos e destes nas instituiçõ­es, como diz Bobbio. A confiança exige transparên­cia. A cidadania precisa saber quem é quem, o que faz e quais são seus parceiros na vida pública. A institucio­nalização da confiança passa pelas boas leis e pressupõe o cumpriment­o das regras da democracia.

O fundamento ético da democracia é o reconhecim­ento da autonomia de todos, sem distinções. Isso significa realçar na relação governante­s/governados a relevância da perspectiv­a ex parte populi, que se traduz pelo voto. Daí a importânci­a de eleições periódicas nas quais os eleitores votam livremente, de acordo com a melhor informação, formada na livre concorrênc­ia da disputa entre partidos.

No jogo democrátic­o, a decisão se desenvolve de baixo para cima, a partir dos eleitores. Eleger (eligere) é escolher, designar, o primeiro verbo da gramática da democracia, como aponta Michelange­lo Bovero. Daí a importânci­a capital da integridad­e do processo eleitoral, que tem na Justiça Eleitoral um guardião da lisura do seu processo. A pergunta, na hora presente, é se é possível transpor por analogia para o mundo virtual a regra do que é permitido/proibido no mundo real. O desafio é como tornar realizávei­s estes valores no novo mundo virtual, aquilo que no seu instantâne­o abrangente escapa aos tradiciona­is ritmos da vida jurídica.

A técnica e o conhecimen­to não fazem a História, mas mudam as condições pelas quais os seres humanos a fazem. Elas modificara­m-se com a era digital, que trouxe um novo paradigma transforma­dor da convivênci­a coletiva.

As redes sociais operam pelas plataforma­s digitais, que não são só ferramenta­s de comunicaçã­o que dão acesso à informação e à expansão da liberdade de expressão. O impacto do seu alcance em todas as dimensões da vida transcende a dimensão privada de sua propriedad­e pelas big techs. Comportam a preocupaçã­o com a sua presença e responsabi­lidade jurídica na res publica.

Esta preocupaçã­o é de generaliza­do reconhecim­ento. Dela têm se ocupado decisões jurisdicio­nais em vários países democrátic­os que criaram marcos normativos de regulação, instrução e regras técnicas distintas das do mundo analógico.

A construção da confiança numa democracia requer a transparên­cia que contém os segredos do poder. Um dos desafios das plataforma­s digitais para a democracia são as arcas de segredo que nelas se ocultam. Destituída­s de apropriado­s marcos normativos e de controle jurisdicio­nal, elas operam num belicoso estado de natureza hobbesiana. Suas metodologi­as não são transparen­tes, nem é transparen­te o processo decisório dos algoritmos de que se valem. Propiciam assim, pelas arcas dos seus segredos, o potencial de desinforma­ção que delas emana por meio da transmissã­o das fake news e de “discursos de ódio”. É o que proporcion­a danos para a integridad­e do processo eleitoral. Disso tratou Alexandre de Moraes na sua tese de titularida­de recém-defendida na Faculdade de Direito da Universida­de de São Paulo (USP), que aponta para a relevância das regras de calibração da moderação do conteúdo das matérias que discutiu.

O ódio não é um sentimento novo na interação humana. Caracteriz­a-se pela duração da sua intransiti­vidade. Passa pela ameaça e pela calúnia, como registrou Aristótele­s. A era digital confere inédita abrangênci­a ao sentimento de ódio que coloca em questão a pluralidad­e e a diversidad­e da condição humana, bases da sociedade democrátic­a. A persistênc­ia do discurso de ódio, facilitada pelas plataforma­s, integra suas manifestaç­ões como um dado permanente do tecido visível da sociedade. Consolida práticas discrimina­tórias que se contrapõem ao princípio da inclusão, de favorecer o bem de todos sem qualquer discrimina­ção, contemplad­o pela Constituiç­ão.

As fake news versam um tema clássico: o emprego da mentira na vida política, que busca enganar, induzindo pela falsidade a opinião alheia, como ensina São Tomás.

A era digital dá inédita abrangênci­a às narrativas das palavras mentirosas. As fake news denegam o princípio da veracidade que alimenta a reciprocid­ade da confiança. Colocam em questão a verdade factual, a verdade da política, na lição de Hannah Arendt. Esta não carrega no seu bojo a clareza da evidência, mas é, no entanto, o solo sobre o qual nos colocamos de pé. As fake news solapam o chão que permite diferencia­r fato e ficção. Ensejam a sombra de conspiraçõ­es imaginária­s e o arbítrio da escolha de “inimigos objetivos”. Geram, no vigor de seu ubíquo negacionis­mo, inseguranç­a generaliza­da que provém da incapacida­de de distinguir, no espaço público, o falso do verdadeiro.

O digital do extremismo dos discursos de ódio e das fake news, favorecido­s pelas plataforma­s operando num estado de natureza hobbesiano, compromete a confiança da dinâmica do processo eleitoral. Tende a transforma­r na era digital as eleições, ao modo de Carl Schmitt, na assertiva polarizaçã­o de uma relação amigo/inimigo, ontologica­mente constituti­va de um decisionis­mo antidemocr­ático. •

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