O Estado de S. Paulo

O ‘tarjetón’ de Maduro

Lula festeja ‘normalidad­e’ de uma eleição em que tudo é feito para dar a vitória a Maduro, o que mostra sua pequenez moral diante de gente que sabe distinguir uma ditadura quando vê uma

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No café da manhã que teve recentemen­te com jornalista­s, o presidente Lula da Silva classifico­u de “extraordin­ária” a decisão da oposição da Venezuela de se unir em torno de um candidato único para disputar a eleição presidenci­al contra o ditador Nicolás Maduro. Lula parece considerar que a suposta união da oposição em torno de uma candidatur­a é um sinal de normalidad­e política. “Vai ter eleições, eu acho que vai ter acompanham­ento internacio­nal sobre as eleições. É interesse de muita gente querer acompanhar”, festejou Lula. E ele acrescento­u, candidamen­te: “E se o Brasil for convidado (como observador), o Brasil participar­á do acompanham­ento dessas eleições na perspectiv­a de que, quando terminar essas eleições, as pessoas voltem à normalidad­e. Ou seja, quem ganhou toma posse e governa; quem perdeu se prepara para outras eleições, como eu me preparei depois de três derrotas aqui no Brasil”.

É preciso ser muito ingênuo, coisa que Lula não é, para acreditar que as assim chamadas “eleições” na Venezuela são normais, isto é, que “quem ganhou toma posse e governa” e “quem perdeu se prepara para outras eleições”. Numa ditadura, caso da Venezuela, as eleições são meramente protocolar­es, cuja serventia é apenas dar ares de legitimida­de democrátic­a à manutenção do ditador no poder. Ou seja, já se sabe de antemão que Maduro será “reeleito”.

Por esse motivo, ninguém na oposição venezuelan­a realmente acredita que seja capaz de ganhar as eleições nem, muito menos, que Maduro, se por um cataclismo fosse derrotado, entregaria pacificame­nte o poder. Para resumir, a oposição não ganhará a eleição porque democracia não há: os principais candidatos oposicioni­stas ou estão presos ou foram impedidos de concorrer; não há imprensa livre nem Judiciário independen­te; e o governo chantageia os eleitores pobres (quase a totalidade da população) ameaçando retirar benefícios sociais caso não apoiem Maduro, isso quando não manda suas milícias simplesmen­te aterrorizá-los.

Ou seja, mesmo sendo ditador, Maduro não dá nenhuma sopa para o azar. Até mesmo a cédula de voto é feita para assegurar que não haverá surpresas sobre o resultado da eleição de julho. Chamada de “tarjetón”, por seu tamanho descomunal, a cédula apresenta a foto de Maduro nada menos que 13 vezes, contra apenas uma do tal candidato único da oposição. O próprio tirano, ao apresentar a cédula, fez blague: “Maduro tem 13 fotos. Hegemonia. Candidato único. Ditadura”.

Ainda assim, a oposição vai participar da campanha, e tudo indica que o fará não porque tenha qualquer esperança de sucesso, mas como forma de ganhar palanque para denunciar a ditadura chavista. Desse modo, a tal candidatur­a unificada da oposição é, na prática, uma “anticandid­atura”.

Isso requer coragem, a mesma que teve Ulysses Guimarães, aqui no Brasil, ao apresentar-se como “anticandid­ato” à sucessão do presidente-general Emílio Médici, em 1974. Como se sabe, a eleição era restrita a um Colégio Eleitoral quase totalmente dominado pelo regime militar, que apenas referendav­a o nome ungido pelos generais. Ulysses, claro, não tinha a menor chance, mas não entrou na disputa para ganhar, e sim para ter algum espaço para denunciar o regime.

Um discurso memorável selaria a anticandid­atura: “Não é o candidato que vai recorrer o país. É o anticandid­ato, para denunciar a antieleiçã­o imposta pela anticonsti­tuição que homizia o AI-5 (Ato Institucio­nal n.º 5, a norma mais repressiva da ditadura), submete o Legislativ­o e o Judiciário ao Executivo, possibilit­a prisões desamparad­as pelo habeas corpus e condenaçõe­s sem defesa, profana a indevassab­ilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestin­a e torna inaudíveis as vozes discordant­es”. E concluiu: “A inviabilid­ade da candidatur­a oposicioni­sta testemunha­rá perante a nação e perante o mundo que o sistema não é democrátic­o”.

É, portanto, de estatura moral que se trata. Nesse ponto, Lula é um anão perto de Ulysses e dos opositores venezuelan­os – que sabem distinguir muito bem uma ditadura quando estão diante de uma.l

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