O Estado de S. Paulo

Conversas e livros

- Roberto DaMatta É ANTROPÓLOG­O, ESCRITOR E AUTOR DE ‘CARNAVAIS, MALANDROS E HERÓIS’

Na advertênci­a-sabão que Lula III passou no seu vice e no ministro da Fazenda, destacando justamente os mais visíveis e passíveis de com ele competirem (se já não competem), o presidente salienta o contraste que intitula essa crônica.

Conversar ou ler, eis a questão que Lula da Silva – afeito a discursos imperiais e totalmente envolto no seu manto narcisista e glorioso –, como o “supremo mandão da nação”, exigiu.

Leia menos, advertiu, converse mais! O justo oposto do que o Brasil mais carece.

A maioria dos comentaris­tas focou o pito revelador do mandonismo estrutural do nosso sistema de poder.

Um sistema no qual há um claro dualismo entre uma vexaminosa ausência de leitura, em contraste com a presença perturbado­ra de “disse-me-disse” e fake news, esse nome digital para o antigo fuxico semeador de intrigas e das “conversas fiadas”.

Os livros remetem necessaria­mente à solidão, ao isolamento, à impessoali­dade e, não custa repetir, à sabedoria.

A conversa, ao contrário, diz respeito a elos sociais e, no Brasil – onde todo mundo fala ao mesmo tempo –, ao “conversar”, esse gesto tem a intenção de harmonizar e combinar – essas dimensões básicas da “política” como conversa.

Como ocorrência particular, fechada e confidenci­al – “só conto pra você” – à exclusão do público. Esse “todo mundo” que caracteriz­a a democracia igualitári­a.

Lula III explicitou a política como uma prática de convencime­nto. De consensos e conluios como um estilo de governar, apelando para o segredo – essa marca das elites.

Segredo que, como ensinava Karl Jaspers, tem afinidades com o fascismo. Sem a oposição institucio­nalizada que conduz a mudança.

A “conversa”, o “eu só posso falar pra você”, evidencia a hegemonia não politizada do personalis­mo que promove eternos retornos.

A “conversa” é o contrário do “bate-boca” revelador de sinceridad­es. A sinceridad­e dos livros no seu sagrado silêncio...

Se praticarmo­s “política” com “p” minúsculo, não há como discordar da advertênci­a do presidente. Pois a conversa entupida de segredo é o cerne da governabil­idade. Um estilo administra­tivo, como tenho aqui repetido à exaustão, relacional, personalis­ta, circunstan­cial, hipócrita e oportunist­a.

Fazemos política conversand­o e não lendo. •

Há uma vexaminosa ausência de leitura em contraste com a presença perturbado­ra de ‘disse-me-disse’

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil