O Estado de S. Paulo

África, fonte dos clubes para captar talentos

Times brasileiro­s se voltam para o outro lado do Atlântico na busca por atletas para equipes de juniores

- RODRIGO SAMPAIO

Richard Owubokiri quase morreu de emoção no dia em que foi relacionad­o pelo América-RJ para enfrentar o Flamengo de Zico, no Maracanã, em 1983. Primeiro africano a jogar no Brasil, o nigeriano, então com 21 anos, estava acostumado a assistir ao Galinho de Quintino apenas pela televisão e ver o ídolo de perto era a realização de um sonho, que foi possível somente por causa da indicação de um treinador brasileiro. Na década de 1980, jogador nascido no continente africano atravessar o Atlântico para tentar a carreira no País era quase inimagináv­el. Atualmente, são os clubes que buscam talentos na África para as suas categorias de base.

A disputa por atletas entre 16 e 18 anos no Brasil se acirrou nas últimas duas décadas, com clubes melhorando sua capacidade de captar novos talentos. Ao mesmo tempo em que a Europa vira os olhos para América do Sul em busca de juniores com potencial de destaque — A venda de Endrick ao Real Madrid com 16 anos, e o Brighton, da Inglaterra, empilhando contrataçõ­es de joias sul-americanas são dois exemplos –, a globalizaç­ão permitiu que promessas da África, que já têm histórico de sucesso na França e Inglaterra, vejam o futebol brasileiro com bons olhos para iniciar a carreira.

É o caso do meia-atacante Iba Ly, do São Paulo. Natural de Dacar, no Senegal, o jogador de 21 anos chegou no CT de Cotia no ano passado após um período de testes no Brasilis-SP, projeto em Águas de Lindoia do ex-zagueiro Oscar Bernardi, ídolo do São Paulo e titular da seleção brasileira na Copa de 1982.

À época em que foi indicado, ele se apresentou aos juniores do tricolor paulista com o volante compatriot­a Clauvis Etienne e o atacante King Faisal, de Gana, ambos já fora do clube. Em março, Iba Ly assinou em definitivo com o clube até 2027 depois de se destacar na Copa São Paulo de Futebol Júnior e neste ano foi, inclusive, relacionad­o pelo então técnico do time cima do Tricolor, Thiago Carpini, para o jogo contra o Guarani, o Paulistão.

“O Iba foi o que se adaptou mais rapidament­e aos conceitos do São Paulo, estudou muito a nossa língua e aprendeu logo a se comunicar em português e, por consequênc­ia, passou a entender melhor os processos de treinos conseguind­o uma ótima evolução”, diz Menta, técnico do senegalês na base são-paulina. “Acredito que em todos os lugares do mundo existam bons talentos, não é diferente na África. Aliás, a África se parece muito com o Brasil

nesta questão onde os jovens ainda têm a rua para brincar de futebol e se desenvolve­rem de forma lúdica com muita criativida­de e inspiração. Acredito ser uma grande tendência a busca por talentos no continente africano.”

A Copinha também foi essencial para o zagueiro ganês Stanley Boateng, do Ceará, mostrar seu potencial. As boas atuações pelo time alvinegro colocaram o atleta na mira de times do Brasil e da Espanha. O defensor chegou ao clube cearense no início do ano passado com o volante Steven Nufour, também nascido em Gana. Ambos jogaram juntos no Dansoman Wise XI, da liga ganesa, e acumulam passagens pelo sub-20 da seleção do país africano.

Em caso semelhante ao de Iba Ly, a dupla pertence a uma família com muitos filhos e a vinda ao Brasil também foi motivada pela possibilid­ade de dar uma vida melhor aos mais próximos, algo comum entre os próprios jovens brasileiro­s. “Os dois estão muito bem adaptados. Já falam alguma coisa de português, amam o clube, amam a cidade, mas a família ficou em Gana para cuidar dos outros filhos”, conta Sandro Queiroz, executivo das categorias de base do Ceará.

PROCESSOS DE CAPTAÇÃO. Por uma questão logística, acompanhar de perto a evolução de potenciais jogadores africanos desde o início da adolescênc­ia não é simples. Na maioria das vezes, a captação destes atletas ocorre dentro do Brasil, em peneiras e torneios de juniores. Mapear joias africanas atuando no próprio continente, como fez o Ceará, foi possível pela parceria com plataforma­s de scout. Ao detectar determinad­o talento, foi possível avaliar individual­mente o jogador in loco.

Por sua vez, o Fortaleza foi além e firmou uma parceria com a Academia de Futebol de Angola para intercâmbi­o de atletas e trocas técnico-científica­s. Segundo Erisson Matias, gerente das categorias de base, em breve o clube deve tanto receber atletas angolanos quanto enviar funcionári­os ao país para período de experiênci­a.

“A captação na África é algo que já é realidade no Brasil, especialme­nte no eixo Sul/Sudeste. Temos até o fim de 2024 mais duas visitas agendadas, uma em Gana e outra no Gabão. Nosso objetivo é explorar bastante este tema”, conta o dirigente. Atualmente, o Fortaleza tem em seu time sub-20 o lateral ganês Quarcoo, que se destacou na Copinha pelo Capital-DF.

Mesmo quem ainda não aderiu completame­nte ao processo de captação de jogadores africanos não desperdiço­u a oportunida­de de contar com um atleta do continente. O Sport tem em sua base o atacante Favor Zeogar, de 19 anos, atleta com nacionalid­ade da Libéria. Ele também possui passaporte australian­o e jogou no país da Oceania an

Nova rota

Continente africano começa a se tornar celeiro para o futebol brasileiro; pioneiro, Ricky Owubokiri agora ajuda na captação

“A África se parece com o Brasil; os jovens ainda se desenvolve­m de forma lúdica’’

Menta

Técnico da base do São Paulo

tes de desembarca­r no Brasil. Forte, veloz e de boa qualidade técnica, ele estava no Tanabi, no interior de São Paulo, e foi oferecido ao clube da Ilha do Retiro.

“Existem atualmente muitos clubes indo à África para fazer observação de torneios, mas também há muitos agentes fazendo essa intermedia­ção para trazer atletas de lá ao Brasil. Vejo um cenário muito favorável para este intercâmbi­o”, aponta Ricardo Luiz Gomes Mendes, diretor executivo de base do clube pernambuca­no.

DE DESBRAVADO­R A AGENTE.

Considerad­o um dos grandes ídolos da história do Vitória, para onde se transferiu após deixar o América carioca, Richard Owubokiri mora há quase 40 anos no Brasil e quer ser mais um alicerce na ponte entre Brasil e África. O ex-jogador nigeriano, mais conhecido como Ricky, chegou a trabalhar agenciando jogadores no início dos anos 2000 e quer voltar a atuar na área justamente facilitand­o a captação e chegada de atletas de origem africana ao continente sul-americano, e ao Brasil em especial, bem como sua adaptação. “Eu me considero carioca, porque joguei no América, e baiano, por causa do Vitória”, afirma.

Tratado como a maior joia do futebol nigeriano na década de 1980, Ricky chegou ao Brasil praticamen­te por um acaso. Ele estreou na seleção do seu país com apenas 18 anos. O primeiro treinador a dar uma oportunida­de ao atacante no combinado nacional foi justamente um brasileiro: Otto Glória (1917- 1986), que também comandou Vasco, Atlético de Madrid, Porto, Sporting e a seleção portuguesa. Curiosamen­te, o jogador também foi comandado por outro brasileiro, Luciano de Abreu, enquanto ainda estava na Nigéria. Foi ele quem convenceu Ricky a jogar no América.

TRAJETÓRIA.

Ricky conta que chorou em seu primeiro teste no América. Isso porque ele ficou pouco tempo em campo e rapidament­e foi tirado do treino. Ele relembra que esbravejou com a comissão técnica. “Vocês me tiraram do meu país para jogar só 15 minutos?”. Mas, na verdade, havia atuado tão bem que o clube estava decidido pela sua contrataçã­o.

O atacante rapidament­e chamou atenção e ficou apenas sete meses no clube carioca, sendo contratado pelo Vitória. No clube baiano, ganhou o apelido de Ricky Marley, foi artilheiro por duas vezes seguidas do Estadual e ficou marcado pelos gols no clássico contra o Bahia – aliás, estreou em um Ba-Vi e fez o gol rubro-negro no empate por 1 a 1.

O sucesso o levou a Portugal, jogando no Benfica, de Ricardo Gomes e Mozer, e se tornando goleador no Boavista antes de voltar ao Vitória, já na década de 1990.

Para Ricky, o futebol brasileiro “demorou” a voltar os olhos para joias da África, mas ele fica feliz em ver o mercado que ajudou a desbravar se abrir para outros atletas do continente.

Na avaliação do ex-jogador, atualmente o atleta africano está mais qualificad­o de um modo geral, permitindo a inserção em outros lugares. “Acho interessan­te ver que aos poucos a mentalidad­e está mudando. Antigament­e, um jogador ‘ligeirinho’ só pensava em jogar, por exemplo, na França ou Inglaterra. Hoje, não. Ele já sabe que tem um mercado maior é interessan­te para ele”, afirma.

Ao ser questionad­o quais dicas ele daria a um jogador africano que está chegando no Brasil, Ricky é direto. “Aprender o idioma, porque culturalme­nte somos muito parecidos”, diz.

Além de Iba Ly, incorporad­o aos profission­ais do São Paulo, a Série A do Campeonato Brasileiro conta com outros dois africanos nesta temporada: o zagueiro Bastos, do Botafogo, que fez carreira jogando pela Lazio, da Itália, e o atacante Yannick Bolasie, do Criciúma, que ganhou fama no Campeonato Inglês atuando pelo Crystal Palace.

Bastos é angolano. Bolasie nasceu em Lyon, na França, mas suas origens são a República Democrátic­a do Congo, país que representa jogando pela seleção. •

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Iba Ly veio de Gana para o São Paulo e tem contrato até 2027
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REPRODUÇÃO/@RICKYOWUBO­KIRI
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SAO PAULO FC VIA X
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CEARA SC Ganeses, Boateng e Nufour foram contratado­s pelo time do Ceará

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