O Estado de S. Paulo

Fomede interpreta­ção

Cauã Reymond fala da preparação para a minissérie ‘Dois Irmãos’ e de seu próximo trabalho no cinema, em que viverá dom Pedro I

- Adriana Del Ré

Cauã Reymond é um ator que amadureceu diante dos olhos do público. E não estamos falando aqui em questão de idade, mas de interpreta­ção. Cauã estreou na TV como Maumau, em Malhação, em 2002. Ali parecia despontar mais um galã de novela da Globo. Ledo engano. O tempo mostrou que aquele primeiro papel no folhetim teen não passava de uma porta de entrada para um ator que encarnaria com intensidad­e seus personagen­s. “Acho que desde A Favorita venho pegando personagen­s muito bons”, diz Cauã, em entrevista ao Estado por telefone, do Rio. “Estou me sentindo muito sortudo.”

Nessa sequência de bons trabalhos, vale destacar a trinca que ele viveu em projetos recentes, exibidos como minissérie­s: Leandro, de Amores Roubados (2014), André, de O Caçador (2014), e Maurício, de Justiça (2016). Esse caminho ascendente culmina na minissérie Dois Irmãos, baseada na obra de Milton Hatoum, escrita pela autora Maria Camargo e dirigida por Luiz Fernando Carvalho – que chega ao fim na próxima sexta-feira, 20. Cauã ganhou não só um, mas dois grandes personagen­s. Omar e Yaqub são gêmeos opostos entre si, que exigem de Cauã interpreta­ções igualmente distintas. De um lado um calado e introspect­ivo Yaqub e, do outro, um rude e selvagem Omar. Dois filhos de imigrantes libaneses unidos apenas na barriga da mãe, Zana (Gabriella Mustafá/Juliana Paes/Eliane Giardini) e que recebem tratamento­s diferencia­dos dela depois que nascem. Omar é o protegido de Zana – e isso traz consequênc­ias desastrosa­s à família.

Interpretá-los era desejo antigo de Cauã. O ator ganhou da mãe o livro Dois Irmãos, de Hatoum. Na época, ele estava em Como Uma Onda (2004), sua segunda novela. “Eu gosto de ler, e minha mãe achava o livro muito bom. Ela é uma leitora ávida e sempre me proporcion­a bons livros”, conta o ator carioca, de 36 anos, e pai de Sofia, de 4 anos, de seu relacionam­ento com a atriz Grazi Massafera. E, assim que leu, ele percebeu que os irmãos poderiam ser grandes personagen­s a ser interpreta­dos. “Tive essa intuição. Eu estava no meu terceiro trabalho como ator e sabia que estava começando a carreira, mas eu já tinha vontade de trabalhar com o Luiz Fernando. Na verdade, não era nem vontade, era sonho ainda.” Cauã conta que o diretor lhe revelou que pensou em seu nome desde o início do projeto. “Quando soube que ele ia fazer a série, fiquei com vontade de fazer, mas demorou muitos anos para esse projeto ficar de pé, e fiquei muito feliz, impactado, quando recebi a notícia de que seria eu.”

Esse tempo de espera foi importante para que ele pudesse construir um repertório de bons papéis, certo? “Sim, mas acho que, às vezes, o lugar também da estreia é um lugar que o Luiz sabe administra­r muito bem os atores. Em seu primeiro trabalho, o Matheus ( Abreu, que faz os gêmeos na fase anterior) está fazendo um trabalho lindo, a Gabriella Mustafá como Zana (na fase jovem). O Luiz tem essa capacidade de trabalhar com gente muito experiente e, ao mesmo tempo, de lançar pessoas. Tenho curiosidad­e de saber como seria ( comigo). Com certeza, cheguei com muita fome de Dois Irmãos.”

A preparação de Cauã, assim como a do restante do elenco, foi a de praxe para os padrões de Luiz Fernando Carvalho. O diretor colocou todos numa imersão em seu galpão no Projac, no Rio, para se aprofundar­em em seus personagen­s – e para os atores que vivem os mesmos papéis em diferentes fases alinharem suas interpreta­ções. “O Luiz oferece para a gente uma preparação corporal, vocal, sotaque. Os gêmeos não têm sotaque, porque já nascem no Brasil. Mas aprendi árabe, o elenco estava sempre junto, é uma coisa praticamen­te teatral.”

Cauã diz que ele e Matheus Abreu trabalhara­m juntos o tempo todo, o que fez com que estivessem toda hora se observando. “Foi muito interessan­te, porque foi a primeira vez que me dei conta de que eu era um ator maduro. Quando a gente começou, o Matheus tinha 17 anos e eu, 34, exatamente o dobro da idade dele. Estreei na TV, então sei que amadureci na frente do público. Isso foi importante para mim, porque sempre aprendi muito no set, vendo meus colegas, sempre fui observador. Realmente, não teve o trabalho mais importante para mim, porque, em cada trabalho, prestei atenção em outra pessoa, com a qual, por algum motivo, eu tinha afinidade, ou por empatia pelo trabalho, por admirar a técnica e a forma como a pessoa trabalha.”

A entrega de Cauã na interpreta­ção dos gêmeos é tão visceral que ele cresce na tela, e carrega as nuances desses irmãos tão diferentes nos pequenos gestos, na postura corporal, na voz contida de Yaqub e nas explosões de fúria de Omar. E a “fome de Dois Irmãos”, como ele definiu, foi tamanha que, em uma cena, ele se machucou e precisou levar quatro pontos no pulso.

Travesti. Mas essa entrega não vem de hoje. No ano passado, o clipe de Your Armies, da cantora Barbara Ohana, em que ele encarna a travesti Clara, teve grande repercussã­o. Com direito a usar peruca loira e aprender a andar de salto alto. E Cauã teve de adaptar sua estrutura corporal a essa figura feminina. “Sou magro, mas tenho ombros muito largos. Falaram que eu tinha de assistir a Garota Dinamarque­sa. Eu disse: ‘Gente, o Eddie Redmayne é magrinho, desculpa, foi muito mais fácil, eu não consigo chegar nesse peso’.”

“Trabalhei com a Andrea Cavalcanti, uma coach com quem eu trabalho há 15 anos. Uma das coisas bacanas foi que a gente tentou encontrar a feminilida­de desse personagem, como fazia para se comunicar sem necessaria­mente ter uma voz, como fazer isso sem um diálogo. A gente construiu o personagem como se fosse fazer um filme, uma peça de teatro, uma série, uma novela. E foi, de certa forma, renovador, porque eu tinha acabado de sair da novela ( A Regra do Jogo). Novela é um veículo que adoro fazer, mas é muito longo, leva tempo, então, para mim, foi um momento rico artisticam­ente.”

Além de atuar no clipe, Cauã foi um dos produtores do projeto. Nele, a travesti é agredida covardemen­te. O ator lembra que, por uma trágica coincidênc­ia, o clipe foi lançado na mesma época do atentado à boate gay em Or- lando, nos EUA. “Acho que a gente conseguiu através da arte propor uma reflexão sobre a tolerância”, avalia. “A notoriedad­e que o trabalho acabou tendo, foram mais de 3 milhões de acessos.”

Agora, Cauã está no Festival de Sundance, onde o filme Não Devore Meu Coração!, dirigido por Felipe Bragança e estrelado por ele, estreia no dia 22 e está na mostra competitiv­a – e levou a filha Sofia na viagem. O longa também foi selecionad­o para o Festival de Berlim deste ano, e estará na Generation Competitio­n. “Hoje em dia, a gente poder levar o cinema brasileiro para fora do Brasil já é um prêmio, ainda mais num momento em que a economia está tão ruim, é tão difícil captar e fazer cinema no Brasil. Acho que a gente está vivendo um momento muito legal das comédias, gosto de ver o cinema brasileiro crescendo, é uma indústria se fortalecen­do, começando a viver por conta própria, mas o cinema de arte, como é o caso de Não Devore Meu Coração!, é uma ralação.” No filme, do qual é coprodutor, ele faz um matador de índios na fronteira do Brasil e Paraguai.

O ator é também um dos produtores do filme Pedro, sobre dom Pedro I, com direção de Laís Bodanzky, que deve ser filmado no 2.º semestre deste ano. No longa, ele interpreta­rá o próprio imperador do Brasil. “A gente vai dar a visão do português em relação a dom Pedro, porque eles têm um olhar muito mais rico se a gente comparar com o nosso, que é um olhar caricato.” A produção deve virar também uma microsséri­e. E, certamente, mostrará Cauã Reymond em mais um momento de entrega a essa fome de interpreta­ção.

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FABIO MOTTA/ESTADÃO O ator. É protagonis­ta do filme ‘Não Devore Meu Coração!’, que está em competição em Sundance e em Berlim

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