Da Estação das Docas ao Mercado Ver-o-peso, antes ou depois da chuva, um giro pela capital do Pará.
A capital do Pará tem muito a oferecer aos visitantes. Antes ou depois da chuva das 17 horas, da Estação das Docas ao Mercado Ver-o-peso, deixe-se levar pelos aromas, cores e sabores desse destino “pai-d’égua”
No início da década de 1970, em Belém, no Pará, ao sair extenuado do gramado no intervalo de um jogo contra uma equipe local, disputada sob um sol arrasador de 44° C, o centroavante Claudiomiro, do Internacional de Porto Alegre, foi abordado ao vivo por um repórter gaúcho. “Como tu estás te sentindo?” O atacante colorado respondeu: “Estou muito emocionado de jogar onde Jesus Cristo nasceu.”
Conhecido pela sua falta de cultura e alvo de brincadeiras dos outros jogadores, Claudiomiro é também o verdadeiro autor da célebre explicação para a perda de um gol fácil: “a bola veio em curva, eu não sabia se ia, se não ia, acabei não fondo e perdi o gol.”
Folclores à parte, Belém, onde, claro, Jesus Cristo não nasceu, é uma excelente dica de viagem para todas as épocas do ano. No segundo domingo de outubro, por exemplo, acontece, desde 1793, o Círio de Nazaré, procissão com 2 milhões de fiéis, a maior do país.
Há muito para se fazer na cidade, mas nossa principal sugestão não passa pelos lugares, mas pelos sentidos e comportamento: esqueça o turismo tradicional; não busque atrações feitas para “turista ver”. Deixe-se levar pelos aromas, cores e sabores da cidade. Permita-se encantar pelas generosas mangueiras que se espalham pelas ruas e avenidas - cerca de 20 mil!
Como não registrar para sempre o momento da chu- Localizado no bairro do Reduto, o Porto de Belém é o maior da região Norte e com grande atuação na exportação de castanha, madeira, borracha, bauxita e minério de ferro va das 17 horas – que cai, sim, pontualmente quase todos os dias! Todo mundo corre para se abrigar debaixo das marquises dos prédios. Quando a chuva passa, o movimento é no sentido contrário. Há muitas vezes uma correria desbaratada de volta para as ruas, já que todos querem pegar as mangas que a chuva ajudou a derrubar. A “chuva” de mangas é tanta que as seguradoras incluem no seguro dos automóveis os eventuais danos causados pela fruta.
O encanto vem também pelas pessoas, já que é a gente da terra, com seu jeito, sua cultura e seus costumes, que torna Belém inigualável. Com cerca de 1,7 milhão de habitantes, a cidade tem em sua formação influências indígena, negra, latina e europeia. Preste atenção na linguagem, repleta de expressões diferentes para quem é de outras regiões do país. Se alguém chamar você de “pai-d’égua”, não parta para briga nem se ofenda. É um elogio. Significa que você é uma boa pessoa.
Para conhecer a capital paraense é só colocar roupas bem leves, tênis ou chinelos, boné, óculos de sol e, claro, muito protetor solar e sair para descobrir os encantos de uma das mais fascinantes e autênticas cidades do País. Claudiomiro até que tinha razão em se sentir comovido. Cristo não nasceu em Belém, mas a cidade é divina!
Enquanto escrevo sobre esse fascinante destino brasileiro que no último dia 12 de janeiro completou 401
anos de fundação, o som dos dedos digitando nos teclados harmonicamente se funde com um barulho estranho, quente e saudoso, vindo de dentro do peito. Na mente, muitas lembranças dessa fantástica cidade cheia de cores, aromas, sabores e personagens. Nos sinos do meu coração, ouço uma mesma e apaixonada batida: “Belém, Belém, Belém, Belém, Belém, Belém...”
Estação das Docas e a gastronomia paraense
do Guajará. Tem restaurantes, bares, cineteatro, mini fábrica de cerveja, lojas e serviços, livraria e sorveteria, além de um terminal fluvial para inesquecíveis passeios às ilhas ou contornando a cidade, com direito a shows de dança no barco e com destaque para o carimbó.
Na Estação das Docas, difícil é decidir entre ficar do lado externo, aproveitando a beleza da vista, ou do lado de dentro, sob a proteção do ar-condicionado, sempre fundamental em Belém. Como sugestão gastronômica, vá ao restaurante Lá em Casa e saboreie os pratos paraenses – como o Pato no Tucupi e a Maniçoba. Obrigatório é conhecer a sorveteria da Cairu, com dezenas de sabores, como tapioca, cupuaçu, araça e bacuri paraense (açaí com farinha de tapioca). Não ficam na Estação das Docas, mas são igualmente imperdíveis, o Tacacá da dona Maria do Carmo, que há quatro décadas atrai turistas e gente da própria cidade; o Point do Açaí, belo restaurante (não se deixe enganar pelo nome, que pode sugerir que o local seja uma barraquinha), próximo à Estação das Docas, com pratos variados e saborosíssimos da culinária paraense; a Portinha, lugar pequenino e simples, na Cidade Velha (por razões de segurança, é bom evitar caminhar e ir de táxi, como infelizmente acontece em muitos lugares do Brasil), com delícias exóticas e inesquecíveis como a Esfiha de Pato com Jambu, a de muçarela de búfula,
Complexo turístico de 32 mil metros quadrados, construído nos antigos galpões do porto de Belém, a Estação das Docas (estacaodasdocas.com.br) oferece, diariamente, muitas opções culturais, especialmente de teatro, música e dança. Destaque para os palcos deslizantes – espécies de elevadores que andam no sentido horizontal – com artistas apresentando ritmos diversos, em tom baixo, como música paraense, MPB e até rock.
Os grupos da terra têm ainda espaço na orla com o criativo projeto Pôr-do-som, que ocorre ininterruptamente há 16 anos, além de várias produções teatrais.
A maior atração das noites de Belém e ponto quase obrigatório para grandes festas, como o Réveillon, com shows e queima de fogos. Com seus 500 metros de orla fluvial, permite momentos saborosos junto à baía
castanha e tomate seco e o pastel de bacon com Jambu; e o Remanso do Bosque, situado no bairro Marco, considerado por muitos como o melhor restaurante da cidade. Ele é comandado pelo renomado chef Thiago Castanho, que usa ingredientes típicos da cozinha paraense para preparar magníficos pratos com releitura contemporânea, a preços acessíveis. No mesmo bairro há outro restaurante de Castanho, o Remanso do Peixe, com preços em média ainda melhores.
Museus, parques e outros atrativos
Belém e arredores têm muitos lugares de interesses turísticos aos visitantes. Um giro pelos parques, museus, igrejas revelam a relevância histórica e cultural da cidade. Entre os principais pontos de atração e que valem uma visita estão os seguintes:
Museu Paraense Emílio Goeldi – Verdadeiro centro de pesquisa da flora amazônica, o local é um jardim botânico em plena cidade. Lá estão exemplares da exuberante flora e fauna da região, como vitórias-régias, antas e capivaras. O parque zoobotânico abrange uma área de 5,2 hectares.
Theatro da Paz – Foi erguido em 1878 no auge do ciclo da borracha, inspirado no Teatro Scalla de Milão. Centenas de companhias internacionais se apresentaram em seu palco. Em 1882, o próprio maestro Carlos Gomes regeu “O Guarani” no local.
Museu do Círio – Localizado próximo ao Ver-o-peso, esse pequenino museu revela em detalhes a rica e grandiosa história do Círio de Nazaré, maior evento da cidade, atração até mesmo para quem não é católico.
Catedral de Belém (Catedral da Sé) – A visita pode ser feita antes ou depois do Museu do Círio, porque é só atravessar a rua. Embora por fora a catedral não seja impactante, seu interior é belíssimo, com suas paredes coloridas e bela cúpula. É da Catedral de Belém que sai o Círio de Nazaré.
Mangal das Garças – Esse parque ecológico também é um pedaço da selva amazônica na região central de Belém. Reproduz as microregiões da fauna e flora paraense, com as matas de terra firme, várzea e campos. Lá estão o maior borboletário da América do Sul, um belíssimo orquidário, o Farol da Cidade - com 47 metros - e um viveiro com aves inacreditáveis. Jardim Botânico Bosque Rodrigues Alves – Outro exuberante pedaço da floresta amazônica no
centro da cidade. No local há mais de 2 mil árvores, orquidário e um viveiro de animais.
Complexo Feliz Luzitânia – Um dos ícones da recuperação dos espaços históricos de Belém, inclui o Forte do Presépio (onde ficam o Museu do Encontro e o Museu de Arte Contemporânea), o Museu de Arte Sacra (no interior da Igreja de Santo Alexandre, erguida pelos jesuítas), o Museu Histórico do Pará, a Catedral da Sé, o Teatro de Arte Sacra e a Casa das Onze Janelas.
Icoaraci – Neste bairro simples com ruas de terra e alguns esgotos a céu aberto, o turista encontra tesouros que a cultura do estado mantém e produz: cerâmicas Marajoara, Tapajônica e Maracá, além de móveis em junco e apuí. Parte fundamental do passeio é ver o processo produtivo das peças. Basílica Nossa Senhora de Nazaré – Foi erguida em 1852, no local em que teria sido encontrada a imagem da santa pelo caboclo Plácido. O templo atual começou a ser construído em 1909 e tem o estilo da Basílica de São Pedro, no Vaticano. A decoração completa da igreja só foi finalizada na década de 1960. Tem o interior em mármore, com aplicações de lâminas de ouro e vitrais franceses. Ela é o local de chegada do Círio.
Espaço São José Liberto – Foi construído em 1749 pelos frades capuchos. Com a expulsão dos jesuítas, abrigou durante 200 anos olaria, quartel, depósito de pólvora, hospital, cadeia pública e presídio. Foi por mais de um século um lugar de privação da liberdade para detentos comuns e presos políticos. No final dos anos 1980, o prédio foi restaurado. Em 2002, transformou-se no espaço que é hoje. No local funcionam o Museu de Gemas do Pará, o Polo Joalheiro e a Casa do Artesão, onde são produzidas e comercializadas tiversos tipos de joias. Um belo jardim – está situado dentro do complexo e com uma fonte rodeada de três imensos quartzos. Com acervo de mais de 4 mil peças, o Museu de Gemas conduz o turista a uma viagem através da história gemológica do Pará.
Ilha de Mosqueiro – Pertinho de Belém, a ilha possui algumas das poucas praias de rio com ondas no mundo, que chegam a ter até um metro e meio de altura. É rica em pequenos rios e igarapés. No total, são 21 praias na ilha.
Hangar – Belém possui o maior Centro de Convenções da Amazônia, o Hangar. Com uma área total de 63 mil metros quadrados e 24 mil de área construída totalmente integrada ao ambiente amazônico, é equipado com recursos de alta tecnologia e preparado para receber grandes eventos. Costuma receber shows durante o ano.
Meu dia no Mercado Ver-o-peso
Já ouvi e li muitas coisas sobre o Ver-o-peso. Mas o famoso mercado não é o que dizem. É muito mais! Cheguei, como recomendam, às 4 horas da manhã. O sono logo é vencido pelo burburinho do local. É fascinante ver os barcos atracando com seus produtos. É estupendo observar o mercado com frutas, verduras, peixes (mais de 30 espécies), artesanatos, ervas medicinais, essências, perfumes e temperos da região. Tudo isso em meio ao ruidoso e animado som dos trabalhadores. Inesquecível acompanhar os raios de sol surgindo e tornando tudo ainda mais alegre e colorido.
Há muito para ver e provar. Existem, por exemplo, três tipos de açaí. Tem aquele que todos nós conhecemos, com cor entre o vinho e o roxo; o açaí branco e até um tal de babaca, que só é encontrado em algumas épocas do ano. Os paraenses costumam consumi-lo (a poupa do açaí) com farinha de mandioca e peixe frito. De café da manhã! Como a gente sempre tem a ilusão de conseguir ser por alguns momentos menos turista e mais um habitante da própria terra, faço o estranho desjejum e até que gosto. Decido provar de tudo, das variadas frutas e sucos aos quitutes que enfeitiçam os olhos e aguçam o paladar. Esqueço a dieta. Ver o peso na balança, só na volta das férias.
Ando mais um pouco e chego na parte em que predominam as bancas com ervas e essências ditas medicinais. A feirante olha para mim e diz “venha comprar esse creme para passar na piroquinha.” Respondo: “você está querendo vender para mim ou quer me humilhar?” Ela ri e oferece uma gama de produtos. “Com este Viagra natural tu vais fazer três vezes seguidas”, garantiu. Olho para a barraca e o nome da proprietária está estampado: Socorro. Dou um slogan de presente para a simpática paraense: “Os homens pedem por Socorro no Ver-o-peso”.
Sigo caminhando, mas paro muito para conversar com o máximo possível de pessoas. Dona Coló, por exemplo, exibe em sua banca jornais com entrevistas e fotos em companhia de famosos, como o apresentador Ratinho. Nas orelhas, folhas de arruda. Ela entende da manipulação de produtos, arte aperfeiçoada nos cursos organizados por uma associação de donos de bancas do mercado. Desta vez o alvo é outro jornalista do grupo, que está ao meu lado: “Compre essa pomada para passar lá no seu. Garanto que sua mulher vai gostar...”
ABC DO SABOR PARAENSE
Açaí – O fruto da palmeira do açaizeiro é o mais consumido pelos habitantes da região amazônica - em sucos, sorvetes e até acompanhando pratos. Os vendedores confessam que o cobiçado açaí com mel, granola e banana é feito sim, mas por causa dos turistas. “Bom é comer com peixe e farinha e não com essa mistura esquisita que o pessoal do Sul adora”, explica o simpático comerciante Raimundo Pereira.
Caruru – Outra das estrelas da gastronomia paraense. Leva camarões secos descascados e refogados com alho, cebola, cebolinha, pimenta do reino e azeite de dendê. Depois é engrossado com farinha seca coada e quiabo. Geralmente é acompanhado de guarnições de camarões e folhas de jambu. Castanha-do-pará – O nome não veio por acaso. O estado é o maior produtor e a população adora. É saborosa e nutritiva, consumida in na
tura ou em diversas receitas. Em mercados como Ver-o-peso é vendida com qualidades e preços diversos. Mesmo a “Tipo Exportação” tem valores bem abaixo dos praticados na maioria dos estados brasileiros. Cupuaçu – É uma das frutas mais consumidas e utilizada nos mais diversos e saborosos produtos, como sorvete, licores, geleias, balas, cremes e chocolates.
Farinha d’água – É bem mais hidratada que as farinhas secas que encontramos em todo o país, já que é feita da mandioca que fica de molho no rio. É ingrediente obrigatório nas mesas do estado. Do café da manhã até sobremesas do jantar.
Feijão-manteiguinha de Santarém – É pequenino, com menos que a metade do tamanho dos feijões usualmente consumidos nas outras regiões brasileiras. É bege e, claro, cultivado em Santarém, cidade na região Oeste do estado. Entender a origem do nome é fácil. Basta colocá-lo na boca depois de cozido: derrete como uma manteiguinha.
Filhote – O nome do peixe é esquisito, mas qualquer estranhamento é esquecido à primeira garfada. É o maior peixe de água doce do Brasil. Acredite, não é história de pescador, ele chega a pesar 300 quilos. Até os 60 quilos, o nome é filhote. Depois, passa a ser chamado de Piraíba. O sabor é incrível!
É preparado das mais diversas formas, como em Moqueca, ao Tucupi ou mesmo assado na brasa.
Jambu – Junto com o tucupi forma a base da maioria dos saborosos pratos do Pará. Quando mastigadas, suas folhas deixam a boca e a língua dormentes. É ingrediente cada vez mais usado pelos chefs de cozinha.
Maniçoba – A explicação dos paraenses para o nome do prato é a seguinte: uma feijoada que não leva feijão! Para fazer a receita, as folhas de maniva - planta que produz a mandioca - são moídas e, a seguir, cozidas durante uma semana. Nos quatro primeiros dias acrescenta-se apenas água. Depois entram lombo defumado, paio, linguiça, orelha e rabo de porco, costela, bucho e charque.
Muruci – Também conhecida como Murici, mas ao contrário do treinador, famoso por seu temperamento, digamos...um tanto azedo, é uma fruta de doce sabor. A frutinha amarela é boa para sorvetes, doces e sucos.
Pato no Tucupi – É a iguaria mais pedida pelos turistas nos restaurantes de Belém. O pato assado é cortado em pedaços e fervido vagarosamente no tucupi até ficar macio. O tempero tem uma mistura das folhas de chicória - tempero verde, típico da região - com alho, alfavaca, pimenta cumarido-pará e jambu. Imperdível.
Pirarucu – É o maioral entre os peixes com escamas no País. Chega a medir mais de 2,5 metros e a pesar 80 quilos. Tem diversas maneiras de preparo, como assado na chapa e servido com farinha d’água e salada de feijão-manteiguinha de Santarém. Salgado, muitas vezes substitui o bacalhau.
Tacacá – Servido fervente e em tigela (cuia), combina com sabor e harmonia perfeita goma de mandioca, tucupi, jambu e camarões secos, tudo misturado na hora. Embora não tenha álcool, muita gente garante ficar até um pouco “alta” após provar o prato.
Tucupi – Extraído da raiz da mandioca, é um molho amarelado que dá um sabor único aos pratos. É possível ver nos mais diversos mercados, geralmente em garrafas plásticas. Antes de ser consumido, deve ser cozido demoradamente, já que cru é venenoso. É utilizado com abundância em muitos pratos da cozinha paraense. Tanto que uma expressão local diz: “até mesmo pedra fica bom com tucupi”.