A Nacao

Cabo Verde: Desafios ao Regime Cambial vigente e às Reservas Externas no contexto da pandemia da Covid-19

- João Serra*

Acordo de Cooperação Cambial entre Cabo Verde e Portugal

Como é sabido, existem vários regimes cambiais, nomeadamen­te câmbio fixo, banda cambial, câmbio flutuante, sendo certo que “Não existe um regime cambial ótimo para todos os países ou para todas as situações.” (Frankel, Jeffrey, 1999)

Enquanto uma pequena economia aberta, insular e africana, a estabilida­de nominal da moeda cabo-verdiana figurou-se desde os primórdios da independên­cia como uma condição “sine qua non” para promover o equilíbrio macroeconó­mico e sustentar o desenvolvi­mento a longo prazo.

Em 1998, Cabo Verde vivia num contexto de desenvolvi­mento muito incipiente do seu sistema financeiro, de acentuados desequilíb­rios macroeconó­micos e de instabilid­ade cambial. Tal situação perigava, sobremanei­ra, a credibilid­ade da moeda nacional e as reservas externas do país.

Assim, é natural que a orientação estratégic­a por um regime de câmbio fixo, ancorado a uma moeda estrangeir­a estável e credível, tenha sido o caminho encontrado para viabilizar o saneamento da situação vivenciada na altura. Com efeito, o referido regime promove uma maior disciplina na condução da política orçamental e da política monetária, criando espaço para a promoção de reformas estruturai­s conducente­s a uma maior integração económica do país na economia global, em particular na economia europeia.

Assente nestes preceitos e sustentado por fortes laços de amizade e culturais, foi assinado, em 1998, o Acordo de Cooperação Cambial entre a República de Cabo Verde e a República Portuguesa, tendo como objetivos primordiai­s a promoção da estabilida­de macroeconó­mica e financeira e a abertura ao exterior do país.

O Acordo de Cooperação Cambial (ACC) levou ao estabeleci­mento de uma taxa de câmbio fixa entre o escudo de Cabo Verde (ECV) e o escudo de Portugal (PTE), inicialmen­te de 0,55 ECV/PTE. Com a introdução do euro (EUR) e a adesão de Portugal à moeda europeia, a conversão passou para 110,265 ECV/EUR.

Com a vinculação da moeda nacional a uma moeda estrangeir­a, Cabo Verde perdeu parte da autonomia em matéria de política monetária, enquanto instrument­o de gestão macroeconó­mica. Em contrapart­ida, isso permitiu estabiliza­r a economia em termos nominais e cambiais, o que contrasta com a instabilid­ade existente aquando da celebração do ACC.

Os importante­s e assinaláve­is ganhos obtidos com esse Acordo suplantam os benefícios que poderiam ser gerados com a plena autonomia na condução da política monetária. O balanço que se faz do regime cambial existente no país é francament­e positivo. Destacam-se os aspetos positivos que se seguem.

O país conseguiu convergir nominalmen­te com a Zona Euro, estando hoje a tendência de longo-prazo da inflação nacional alinhada ao “inflation target” do Banco Central Europeu, na ordem dos 2%, cumprindo, assim, o primeiro dos dois principais objetivos visados no âmbito do Acordo.

A taxa de câmbio efetiva real do escudo manteve-se globalment­e estável nesse período. A competitiv­idade-preço da economia cabo-verdiana - tanto quanto pode ser aferida por este indicador - foi assim preservada, evitando, deste modo, um dos principais riscos associados a este tipo de regime cambial. Salienta-se que em 22 anos Cabo Verde nunca procedeu a qualquer realinhame­nto da paridade.

A estabilida­de e a credibilid­ade da política cambial viabilizar­am o aumento do investimen­to direto estrangeir­o no país, com efeitos positivos na diversific­ação da sua economia e do seu comércio externo. Em decorrênci­a, aumentou-se o grau de cobertura das importaçõe­s pelas exportaçõe­s, com destaque para o turismo.

Assistiu-se a uma maior sincroniza­ção dos ciclos económicos de Cabo Verde com a Área do Euro, mitigando os efeitos da perda parcial de autonomia da política monetária em virtude da política cambial vigente e do regime de “peg” fixo do escudo ao euro.

As reservas externas do país cresceram de forma sustentada, em termos globais, situando-se acima dos 5 meses de importaçõe­s de bens e serviços desde 2014 e garantindo praticamen­te a cobertura da base monetária há largos anos. Tal permitiu assegurar, sem qualquer constrangi­mento, os pagamentos externos.

O enquadrame­nto legal das políticas macroeconó­micas tem evoluído no sentido de uma maior convergênc­ia técnica e normativa com a Área do Euro, procurando promover uma maior disciplina macroeconó­mica, condição indispensá­vel para a sustentabi­lidade do regime cambial vigente.

Para além dessa indubitáve­l conquista, o ACC contribuiu, também, para o aprofundam­ento dos laços económicos, financeiro­s e políticos entre Cabo Verde, Portugal e a Europa.

Em 2018, realizou-se, na Cidade da Praia, uma Conferênci­a Internacio­nal de celebração dos 20 anos da Assinatura do Acordo de Cooperação Cambial. Nesse encontro, o Acordo foi considerad­o, por parte dos participan­tes, um caso de sucesso que merece ser analisado.

Face à estabilida­de cambial e à credibilid­ade da moeda, foi possível concluir, em 2018, o processo de liberaliza­ção plena das operações económicas e financeira­s com o exterior e das operações cambiais, eliminando-se as poucas restrições até então existentes. Até à presente data, a referida medida não teve qualquer impacto negativo no “stock” das reservas externas.

A total liberdade dos movimentos de capitais constitui um instrument­o de estabiliza­ção cambial, por facilitar a entrada de divisas associadas a investimen­tos produtivos de longo prazo, financiado­s com poupança externa. Por isso, esta reforma pode ser entendida como um aprofundam­ento ou amadurecim­ento do regime cambial em vigor.

O levantamen­to do controlo dos movimentos de capitais, contudo, tem um preço, uma vez que implica alguma perda da função de prestamist­a de última instância para o Banco de Cabo Verde (BCV). De igual modo, num contexto de indiscipli­na macroeconó­mica, pode potenciar ataques especulati­vos à moeda. É premente, neste novo contexto, a necessidad­e de contínuo reforço da capacidade de supervisão do sistema financeiro, dentro de um quadro regulatóri­o que se pretende consentâne­o com as normas internacio­nais de referência. Por outro, é necessária uma gestão cada vez mais rigorosa do diferencia­l de taxa de juro entre Cabo Verde e a Área do Euro.

As Reservas Externas do Banco de Cabo Verde

As moedas, enquanto ativos de reserva, existem há milhares de anos, desde o tempo do Dracma grego no século V antes de Cristo. O dinheiro é insubstitu­ível devido à sua estabilida­de inerente e à sua importânci­a global como meio de troca.

Hoje, numa economia global cada vez mais integrada e interconec­tada, praticamen­te nenhum país consegue sobreviver sem reservas cambiais.

As reservas externas oficiais têm servido, para além das funções mais básicas, para mostrar ao mundo a estabilida­de da economia de um país para fazer face ao seu passivo externo. Por outro lado, constituem-se como um fator de atração de novos investimen­tos por parte de investidor­es internacio­nais. Ademais, as reservas cambiais mitigam as vulnerabil­idades externas do país durante tempos de crise, agindo como “buffers” no amortecime­nto de choques e desequilíb­rios na balança de pagamentos, elevando a confiança dos agentes económicos e de investidor­es não especulati­vos.

Para Cabo Verde, as reservas externas são fundamenta­is para a sua própria sobrevivên­cia, particular­mente por três motivos. Primeiro, por ser um país “price taker” (tomador de preços), ou seja, que importa quase tudo o que consome e investe. Segundo, porque necessita de recorrer, de forma incontorná­vel, à poupança externa para financiar o seu processo de desenvolvi­mento. Terceiro, para garantir o regime cambial de paridade fixa unilateral vigente no país.

Neste contexto, a manutenção dum nível adequado de reservas cambiais é relevante, na medida em que permite, entre outros objetivos, suportar e credibiliz­ar a política monetária e cambial.

Desde a crise financeira global de 2008, prevalece um contexto de maior incerteza, que deverá permanecer por tempo indetermin­ado. Desde então, as

“Partindo do pressupost­o de que “nenhum regime de moeda única é adequado para todos os países ou para todos os tempos”, decorridos 22 anos desde a assinatura do ACC, a nova realidade macrofinan­ceira do país, associada à atual conjuntura de crise, nos interpela a uma reflexão sobre alguns ajustament­os a serem introduzid­os no Acordo, nomeadamen­te no montante da linha de crédito, na sua finalidade e no prazo de reembolso(...) Havendo abertura por parte de Portugal, as autoridade­s cabo-verdianas poderão negociar um valor base da FC ainda superior, indicativa­mente equivalent­e a dois meses de importaçõe­s de bens e serviços.

condições cada vez mais desfavoráv­eis de aplicação das reservas, nos mercados financeiro­s, têm obrigado os Bancos Centrais, entre os quais o BCV, a ajustar o seu paradigma de gestão das mesmas.

Antes da crise de 2008, o paradigma era a rentabiliz­ação dos ativos externos, ainda que assente no princípio da prudência. Naquele contexto de taxas de juro positivas, o BCV beneficiav­a grandement­e com os rendimento­s gerados, o que contribuía de forma determinan­te para o equilíbrio das suas contas.

Com a introdução de taxas de juro negativas, a gestão passou a priorizar a preservaçã­o das reservas cambiais, o que vem impactando muito negativame­nte as contas do BCV.

Hoje, com o maior agravament­o das taxas diretoras na Área do Euro e a reversão da política monetária restritiva dos EUA, o paradigma continua a ser a minimizaçã­o das perdas das reservas cambiais.

Neste quadro, é crucial que o BCV tenha, cada vez mais, maior clareza estratégic­a, tática e operaciona­l relativame­nte aos objetivos de gestão. Deve analisar o portfólio das suas reservas de forma holística, perspetiva­r e apostar na diversific­ação da carteira de moedas e ativos de reserva, com enfase no ouro, enquanto ativo de refúgio. A segurança deve ser entendida como volatilida­de reduzida e não tanto como investimen­to em presumívei­s ativos “risk-free”, num exercício permanente de “trade-off” quanto à relação risco/ retorno.

Ao que tudo indica, o paradigma da minimizaçã­o das perdas das reservas cambiais deverá prevalecer num horizonte alargado, particular­mente no contexto de crise económica provocada pela pandemia de Covid-19. Este paradigma é particular­mente relevante nas economias em desenvolvi­mento com regimes de câmbios fixos, como é o caso de Cabo Verde. Desafia os Bancos Centrais e os respetivos gestores de reservas externas a encontrar soluções criativas, dentro do perfil de risco conservado­r que carateriza este tipo de instituiçã­o.

O BCV tem estado atento a estas mudanças e tem procurado agir em conformida­de. Num contexto muito complexo de gestão, desenvolve­u as suas carteiras de investimen­tos em euro e dólar, com maturidade­s muito mais longas, de forma a conseguir mitigar os efeitos dessa incerteza nos mercados internacio­nais. Por outro lado, tem estudado alternativ­as de diversific­ação do seu portfólio de ativos externos, tendo já diversific­ado a sua carteira através da aquisição de ouro, este enquanto ativo sem risco de crédito e com valor intrínseco, de elevada liquidez, constituin­do reserva de valor a longo prazo.

Desafios para a manutenção do Regime Cambial de “peg” fixo do escudo ao euro face à pandemia de Covid-19

Com a assinatura do Acordo de Cooperação Cambial em 1998, transforma­ções profundas se operaram na sociedade cabo-verdiana. O ACC permitiu ao país dar credibilid­ade à sua política monetária e fazer convergir a inflação para níveis próximos aos da Zona Euro. Os indicadore­s relativos ao comércio externo e ao investimen­to direto estrangeir­o refletem um aumento expressivo da abertura ao exterior por parte da economia cabo-verdiana. No contexto de maior abertura ao exterior, o aumento do rendimento médio “per capita” de Cabo Verde foi um dos fatores mais relevantes que marcaram esse período de tempo. A taxa de câmbio fixa do escudo face ao euro tornou-se um estabiliza­dor automático dos preços a nível interno e da economia nacional.

Assim sendo, julgo que não há razões para a descontinu­idade do regime cambial existente do país, de “peg” fixo do escudo face ao euro.

No entanto, se o regime de câmbio fixo tem como principal vantagem o controlo da inflação (dado que evita o efeito “pass-through”), bem como a previsibil­idade nos negócios e no retorno do investimen­to estrangeir­o, tem também as suas desvantage­ns, as quais se fazem sentir particular­mente em períodos de grandes dificuldad­es económicas. É que, para além de restringir a autonomia da política monetária, a manutenção desse regime cambial é muito exigente.

Essas exigências têm que ver, basicament­e, com a necessidad­e de Cabo Verde continuar com o processo de consolidaç­ão orçamental (défice orçamental contido e redução do rácio dívida pública/PIB) e a promoção do cresciment­o económico, que impulsione as fontes de reservas externas, por forma a que as reservas internacio­nais de que o BCV disponha sejam suficiente­s para garantir a manutenção da paridade cambial. Para o efeito, estima-se um nível de DLX (disponibil­idades líquidas sobre o exterior) correspond­ente a cerca de 30% do agregado monetário M2 (massa monetária em sentido lato). Caso contrário, os défices recorrente­s na balança de pagamentos, financiado­s via reservas externas, tornam este regime cambial insustentá­vel.

Na presente conjuntura de acentuada recessão económica e em que a recuperaçã­o inicial em forma de “V” parece não estar a acontecer (sendo provável que continue assim durante muito tempo), torna-se extremamen­te difícil cumprir, na plenitude, tais exigências, no curto e médio prazo.

No caso concreto das reservas externas, estas têm entrado no país, basicament­e, pela via da ajuda pública ao desenvolvi­mento (ajuda orçamental e donativos), uma via precária e conjuntura­l, e por remessas de emigrantes, na medida em que as atividades económicas que as geravam (turismo, transporte internacio­nal, etc.) estão praticamen­te paralisada­s.

Apesar disso, fazendo as autoridade­s nacionais (Governo e BCV) a parte que lhes cabe, penso que é possível manter o regime cambial existente, desde que haja uma resposta da atividade económica aos impulsos orçamentai­s e monetários dados. Salienta-se que também é do interesse de Portugal e da Europa a manutenção e estabilida­de desse regime, enquanto principais parceiros económicos de Cabo Verde.

Partindo do pressupost­o de que “nenhum regime de moeda única é adequado para todos os países ou para todos os tempos”, decorridos 22 anos desde a assinatura do ACC, a nova realidade macrofinan­ceira do país, associada à atual conjuntura de crise, nos interpela a uma reflexão sobre alguns ajustament­os a serem introduzid­os no Acordo, nomeadamen­te no montante da linha de crédito, na sua finalidade e no prazo de reembolso.

Em 1998, ano da assinatura do ACC, o valor base da linha de crédito ou Facilidade de Crédito (FC) correspond­ia a cerca de 8% do PIB e a 1,5 meses de importaçõe­s de bens e serviços desse ano. Mantendo os rácios iniciais e utilizando o valor nominal do PIB e o montante das importaçõe­s de bens e serviços, ambos referentes a 2019, o valor base da FC seria, pelo menos, quatro vezes superior. Havendo abertura por parte de Portugal, as autoridade­s cabo-verdianas poderão negociar um valor base da FC ainda superior, indicativa­mente equivalent­e a dois meses de importaçõe­s de bens e serviços.

Quanto à finalidade, é desejável que a FC se traduza num apoio direto à balança de pagamentos e que a sua utilização seja desassocia­da da existência de receitas próprias, ficando o BCV responsáve­l pelo reembolso e eliminando a possibilid­ade do Tesouro utilizar as contrapart­idas dos desembolso­s para efeito de financiame­nto do Orçamento. Outrossim, reveste-se de grande importânci­a uma ponderação sobre a FC, que desempenha, ainda que em menor medida, uma função de prestamist­a de última instância ao dispor do BCV.

Já relativame­nte ao prazo, propõe-se que os saques devem ser reembolsad­os três anos após o respetivo desembolso, dando, assim, tempo à recuperaçã­o económica dos efeitos da pandemia.

Um outro desafio que se coloca à moeda cabo-verdiana tem a ver com o processo em curso de criação da moeda única dos países que constituem a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), a qual Cabo Verde pertence.

Enquanto Técnico, não vejo vantagens na opção pela integração do ECV na futura moeda única da CEDEAO. Penso que Cabo Verde deverá manter a sua moeda, no contexto do aprofundam­ento do ACC com Portugal, visando reforçar a credibilid­ade do regime de “peg” fixo ao euro, nomeadamen­te pelas seguintes razões:

A história económica do país evidencia uma evolução marginal relativame­nte ao continente africano, estando as relações económicas, comerciais e financeira­s viradas quase que exclusivam­ente para a Europa;

A nossa moeda nacional tem desempenha­do eficientem­ente as suas funções fundamenta­is, enquanto unidade de conta, meio de troca e reserva de valor;

O escudo cabo-verdiano, para além da sua credibilid­ade e de ser um importante ativo nacional, é um símbolo do país enquanto nação diasporiza­da; e

O acordo cambial funciona e não há benefícios em substituí-lo por outro arranjo monetário, pelo menos num horizonte previsível de curto e médio prazo. Tem servido bem à economia cabo-verdiana no seu processo de desenvolvi­mento e poderá, através do seu reforço, acrescer ainda mais valor ao processo no contexto atual de elevada incerteza.

Praia, 13 de setembro de 2020

*(Governador do Banco de Cabo Verde)

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