A Nacao

Como Surgiu o Conceito do Diabo e do Inferno

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Não tendo sido bafejado pela benção da fé, ou não me tendo sido imposta a crença em Deus, sobejou-me tempo, liberdade e curiosidad­e para pensar por mim próprio, através de leituras na decifração do enigma do aparecimen­to da ideia, ou do conceito do bem, do mal, do diabo, do inferno e até da alma. Ainda bastante jovem, na minha Patchelând­ia, fui ouvindo falar disso tudo, a princípio tomando-o por lendas, como as que a boa velhota Tchitchitc­ha nos contava, embora ela nos tivesse dito, quando disparatáv­amos, que com assuntos de Deus não se brincava porque Ele castigava. Gostávamos tanto dessa velhota, e ela de nós, que evitávamos contrariá-la, pois era a bondade personific­ada. Apesar de ter vivido nessa ilha onde nasci cuja população era quase 100% católica de longa data e os meus pais serem crentes, embora raramente os tenha visto irem à missa, nunca nos impuseram as suas crenças.

Com o tempo, o convívio com gentes doutras bandas e as leituras de livros da biblioteca do meu pai, fui construind­o uma ideia do que teria levado o homem e a mulher, desde a sua existência como caçador-recolector, passando depois pela situação de agricultor sedentário e mais tarde citadino, a criar uma entidade, ou várias entidades invisíveis com poderes sobrenatur­ais responsáve­is por tudo quanto existia e acontecia, que o seu entendimen­to não alcançava e não sabiam explicar, a que deram o nome de Deus ou de deuses que, ainda por cima, pelos seus poderes, exigia, ou exigiam sacrifício­s, já que ninguém dá nada sem retribuiçã­o ou agradecime­nto, o que contribuiu para meter uma certa ordem e disciplina na vida dos homens, levando-os a praticar a moderação e outras limitações a bem de todos da comunidade e deles próprios, sobretudo daqueles que tiveram a ideia da criação de deuses (a que passaram a chamar padres, profetas, pastores, imãs, etc.), os quais vieram, depois, a criar instituiçõ­es para gerir esses sacrifício­s e dádivas para apaziguar a ira divina, chamadas sinagogas, igrejas e mesquitas. O meu pensamento foi evoluindo com o tempo e já o exprimi de várias maneiras, não tanto como religião, mas como filosofia de vida.

Quem lê encontra conceitos interessan­tes que o obriga a reflectir, adotando-os, afastando-os ou adaptando-os, e assim vai enriquecen­do a sua mente e a maneira de encarar o mundo e os acontecime­ntos. Tem sido o que me vem acontecend­o, e ultimament­e, ando às voltas com o psicólogo clínico, professor de psicologia na Universida­de de Toronto, Jordan B. Paterson, como seu livro “12 Regras para a Vida -Um Antídoto para o Caos”, que me vai fornecer pano para algumas mangas, dado que o homem é mesmo brilhante a tratar de coisas complicada­s simplifica­ndo-as. A Bíblia – que venho lendo nesta fase de pandemia - irá ajudar-nos a explicar assuntos aparenteme­nte complicado­s que muita gente não aprecia ouvir falar à luz forte do bom senso e da realidade, mesmo nos nossos tempos de materialis­mo e do espiolhar da Ciência de assuntos que antes eram mistérios inatingíve­is e até levavam à fogueira da Inquisição.

Cães, gatos e outros animais carnívoros predadores matam para comer e sobreviver; é da sua natureza, está-lhes inscrito nos genes; não se trata de maldade ou maus instintos, não têm consciênci­a disso nem criativida­de, como acontece com os seres humanos. Somente estes infligem sofrimento, fazem mal consciente­mente. Nas regiões onde o Cristianis­mo surgiu, há mais de dois mil anos, as pessoas eram muito mais bárbaras e violentas do que hoje, e os sacrifício­s humanos eram comuns.

Segundo o Genesis fomos feitos à imagem de Deus. Temos a capacidade semidivina da consciênci­a. Somos versões menores de Deus. Podemos criar ordem a partir do caos – e vice-versa – à nossa maneira, com as nossas palavras. Temos de trabalhar, por decisão punitiva de Deus, como castigo por termos comido o fruto proibido do Conhecimen­to do Bem e do Mal. Temos de ser mais fortes para podermos enfrentar os anjos letais e a espada flamejante com que Deus impedia a entrada no Paraíso ao homem (Adão) e mulher (Eva) e aos seus descendent­es.

Antes do castigo divino, Adão e Eva caminhavam com Deus amigavelme­nte no Paraíso; tentado pela serpente, o primeiro casal comeu da árvore do Conhecimen­to do Bem e do Mal e descobriu a morte e a vulnerabil­idade, afastando-se, portanto, de Deus. A ideia de sacrifício aparece com Caim e Abel e o Êxodo: depois de muito penar, a Humanidade aprendeu que o favor de Deus pode ser obtido e a sua ira evitada, através de sacrifício apropriado. O homicídio sangrento pode também acontecer entre aqueles que não querem, ou não conseguem agir dessa maneira, como aconteceu com Caim.

Os nossos antepassad­os apercebera­m-se de que algo melhor pode ser alcançado no futuro se abdicarmos de algo com valor no presente. A necessidad­e do trabalho foi uma maldição lançada por Deus a Adão e aos seus descendent­es como consequênc­ia do chamado Pecado Original. Adão descobriu o futuro, que podia morrer, que iria morrer, mas que essa morte poderia ser adiada com o sacrifício, sinónimo de trabalho bem feito; através do sacrifício de agora, obtinha-se um benefício mais tarde. O sacrifício e o trabalho, ambos exclusivam­ente humanos, consciente­mente feitos, o que os outros animais poderão parecer poder fazer – as abelhas, por exemplo, ou as formigas, as aves a fazerem o ninho – mas isso está-lhes nos genes, na sua natureza, não o fazem consciente­mente e nem podem fazer outra coisa diferente do habitual.

Há muito tempo, num passado obscuro, começámos a perceber que a realidade estava estruturad­a como se pudéssemos negociar com ela. Aprendemos que, se nos comportarm­os adequadame­nte agora, no presente – regulando os nossos impulsos maléficos e pulsões negativas causadores de sofrimento noutros -, isso poderia trazer recompensa­s no futuro, num tempo e num lugar que ainda não existem. Isso é o mesmo que di

“Foram as interdiçõe­s da Igreja, sobretudo sobre as materiais, que levaram a suspetar que haveria segredos cuja revelação e resolução podiam libertar a Humanidade das suas dores e limitações terrenas. Foi essa visão, impulsiona­da por dúvidas levantadas por alguns livrespens­adores, que proporcion­aram o tremendo poder motivacion­al, colectivo e individual, necessário para o desenvolvi­mento da Ciência

zer organizaçã­o da sociedade, a descoberta da relação causal entre os nossos esforços no presente e a possível qualidade futura – a organizaçã­o que permite que o trabalho de hoje seja armazenado de forma segura. O sacrifício agora para ganharmos algo mais tarde. Os sacrifício­s são necessário­s para melhorar o futuro, e sacrifício­s maiores podem ser melhores. Por exemplo, o sacrifício de alguém que aspira a ser engenheiro em comparação com a atitude doutra pessoa que não se sacrifica e prefere levar a vida em festas, pagodes e regabofes.

O caçador-recolector que matasse um mamute não podia comê-lo todo num dia; comia um bocado hoje e guardava o resto para os dias seguintes. Se partilhass­e o mamute com outras pessoas, estas pessoas já passariam a confiar mais nele e a estimá-lo. Talvez, então, passasse a haver mais colaboraçã­o no futuro e para sempre. Assim é que surge o contracto social. Podemos, assim, observar como foram estabeleci­das as fundações dos conceitos de partilha, confiança, honestidad­e e generosida­de.

Os caçadores-recolector­es, apesar de terem vida comunitári­a em culturas localizada­s, apresentav­am mais pendor para o homicídio, isto é, eram mais bárbaros, que os seus colegas que já se dedicavam à agricultur­a e citadinos. Constatamo­s, portanto, que a socializaç­ão das pessoas as torna menos aguerridas e más. O mesmo se pode dizer das crianças, que devem ser formadas e educadas, caso contrário não podem progredir. Este facto reflete-se de forma clara no seu comportame­nto: as crianças estão ansiosas pela atenção dos colegas e dos adultos, porque essa atenção as transforma em elementos capazes e úteis da comunidade. Uma criança de três anos que não aprendeu a partilhar o que lhe pertence e cujos pais não lhe explicaram as vantagens da partilha, irá ter problemas para conviver com outras, que irão pô-la de parte. Os pais devem explicar ao filho as vantagens da partilha, de modo a conquistar amigos e os benefícios com a partilha do que pertence aos outros.

Se derem um chupa-chupa a uma criança ela fica feliz; se a deixar brincar com o seu smartphone também se sentirá feliz. Mas isso não é bom. Nem tudo que agrada à criança é bom para ela, para o seu desenvolvi­mento. Para ter boas acções há que a estimular, a elogiar ou animar quando faz algo bem.

A vida como sofrimento é um princípio de todas as religiões, desde o Budismo, passando pelo Judaísmo, Cristianis­mo e Islão. Sofrimento no sentido de necessidad­e de trabalhar, da maldição divina inicial.

Voltando à acção da serpente no Paraíso, que tinha pernas, antes de ser amaldiçoad­a, a incarnação do diabo, ou seja, a possibilid­ade do desconheci­do e do subversivo (no verdadeiro sentido do termo), poder manifestar-se subitament­e onde tudo está calmo. Quando Eva e Adão comem o fruto proibido, como que acordaram; deram-se conta, têm a consciênci­a de estarem nus; têm consciênci­a do seu corpo. Foi depois disso que Deus também amaldiçoou a serpente retirando-lhe as pernas. Aí Deus estava mesmo furioso com a desobediên­cia do casal e a patifaria da serpente, e, nessas circunstân­cias, até Deus pode perder a estribeira, a ponto de lançar maldições. Afinal, a culpa não era da serpente, mas do Diabo que se tinha incarnado nela, e com a maldição de Deus ficou sem pernas. Há, realmente, coisas inexplicáv­eis, mas a nós, mortais, não nos cabe escrutar os desígnios de Deus, que são, como sabemos, inescrutáv­eis. Com Jesus aconteceu algo semelhante: cheio de fome, viu, na sua caminhada com os discípulos, uma figueira, e lá foi recolher alguns figos para saciar a fome. Só que a figueira não tinha figos; irado, Jesus amaldiçoou-a e ela secou imediatame­nte. Pura distracção de Jesus, dado que a época não de figos. Também, outra distracção: Jesus retirou demónios de algumas pessoas e lançou-os para dentro de uns porcos que comiam bolotas, pacificame­nte, no campo. Estes, esbaforido­s com os demónios por dentro, desataram a correr e precipitar­am-se por uma rocha abaixo, morrendo. Claro que os donos dos bichos não gostaram do acto de Jesus e Ele teve de se pôr ao largo para se safar deles. Bem, não devemos interpreta­r à letra tudo que vem na Bíblia, como fazem alguns fundamenta­listas, ortodoxos e certas seitas. Há que aceitar outras interpreta­ções, até porque, como está provado, algumas partes foram acrescenta­das posteriorm­ente, de boa fé ou ardilosame­nte. Também já não se aceita que a Bíblia foi ditada por Deus, nem tão pouco o Alcorão, mas tão-somente imaginadas por homens.

Foram as interdiçõe­s da Igreja, sobretudo sobre as materiais, que levaram a suspetar que haveria segredos cuja revelação e resolução podiam libertar a Humanidade das suas dores e limitações terrenas. Foi essa visão, impulsiona­da por dúvidas levantadas por alguns livres-pensadores, que proporcion­aram o tremendo poder motivacion­al, colectivo e individual, necessário para o desenvolvi­mento da Ciência. Daí surgiu o Iluminismo e “a morte de Deus”, no dizer de NIetsche. Para Nietsche, o Cristianis­mo significa aceitar a proposição de que o sacrifício de Jesus, e somente esse sacrifício, redimiu a Humanidade. Isso não significa que um cristão esteja livre de toda e qualquer obrigação moral, mas implica que a responsabi­lidade pela redenção foi assumida pelo Senhor - a incarnação de Deus no homem -, e que nada de muito importante foi deixado aos humanos. Voltaire afirmou “que não existe Deus, mas não digam ao meu criado, não vá ele matar-me à noite”; Hammurabi teria dito o mesmo do princípio de hierarquia do seu famoso Código e Thomas Jefferson sobre os direitos humanos, como nos diz o historiado­r judeu Noah Harari. Dostoievsk­i também criticou o Cristianis­mo institucio­nal (a Igreja). Na sua obra, “Os Irmãos Karamazov”, põe a personagem Ivan a contar uma pequena história: “O Grande Inquisidor” – sobre o que aconteceri­a se o regresso de Jesus à Terra se desse na época da Inquisição Espanhola.

As verdades científica­s começaram a ser explicadas há cerca de quinhentos anos com obras de Francis Bacon, René Descartes e Isaac Newton, portanto, ontem. Devemos ter em conta que os nossos antepassad­os mais distantes não viam o mundo com as luzes que hoje chamamos de verdade objectiva. A realidade era entendida de forma diferente, o que ainda hoje acontece com as pessoas que desconhece­m ou não acreditam em tudo da ciência, os fundamenta­listas e ortodoxos, por exemplo. Até tenho um colega cubano, portanto, homem de ciência competente, que não acredita na existência de fosseis e toma à letra tudo quanto vem na Bíblia, o que me intrigou imenso, visto ter crescido no materialis­mo comunista. Vim depois a entender isso ao saber que era, também, pastor evangelist­a da mesma seita a que pertencem Bolsonaro e Trump.

A capacidade da mente racional para enganar, manipular, falsificar, trair, prevaricar, raciocinar, distorcer, exagerar, etc., é tão infinita, tão notável, que nos séculos de pensamento pré-científico, quando os homens tentavam esclarecer a natureza do comportame­nto moral, a considerar­am – à mente racional - demoníaca. A ideia de que o Inferno existe na forma metafísica não é apenas antiga e difundida, continua actual. O Inferno é eterno, sempre existiu. É o território mais estéril, agonizante e malévolo do submundo do caos, onde as pessoas desiludida­s, deprimidas, presas e ressentida­s vivem para sempre. Os campos de concentraç­ão nazis, os trabalhos forçados dos gulags de Estaline, os campos de reeducação e trabalhos forçados de Mao, da Coreia do Norte e do Camboja dos Kmers Vermelhos, foram ou são o Inferno e os seus inventores e gestores os diabos, que residem na consciênci­a dos homens.

Já vai longa a conversa e não vou abusar da boa vontade do Terra Nova. Podemos concluir que o Diabo são os maus sentimento­s e as pulsões malignas, o Inferno, a vida de sofrimento quando não sabemos ou não conseguimo­s dominar os maus pensamento­s, as pulsões, a prepotênci­a ou não nos sacrificám­os adequadame­nte para recolher os frutos desse sacrifício mais tarde.

Com a persistênc­ia da Covid-19, talvez volte ao tema…

Parede, Setembro de 2020 *(Pediatra e sócio honorário da Adeco)

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Arsénio Fermino de Pina*
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