Factos, ideias e perspectivas interessantes na evolução do ser humano (1)
Estando longe da arena política e sanitária da minha paróquia, confinado, pelo Covid, à Mondrongolândia, não me imiscuo na riola das eleições municipais e pouco poderia acrescentar à evolução do Covid-19. Limito-me a recolher, digerir e acrescentar algo de livros do historiador judeu e professor numa Universidade Judaica, Yuval Noah Harari, baseado em descobertas realizadas por investigações multidisciplinares de paleontólogos, arqueólogos, antropólogos, sociólogos e outros cientistas, que apresento aos meus leitores, por nos darem uma perspectiva da evolução da Humanidade e do futuro mais ou menos próximo. Iremos começar por algumas definições esclarecedoras para evitar equívocos, antes de entrar propriamente no assunto que enriquece a mente de qualquer mortal.
Falamos de géneros, espécies e famílias sem entender bem o que são. Dois animais são da mesma espécie se tendem a acasalar entre si dando origem a filhos férteis. Os animais ou espécies que evoluíram de um antepassado comum são designados géneros; os leões, tigres, leopardos e gatos são espécies diferentes do género pantera. A espécie sapiens é do género Homo. Também o Homo sapiens pertence a uma família. Há apenas 6 milhões de anos, uma macaca pariu duas crias: uma tornou-se o antepassado de todos os chimpanzés, a outra é nossa avó.
Os seres humanos evoluíram, na África Oriental, há cerca de 2,5 milhões de anos, a partir de um género anterior de símios chamado Austrolopitheco, que significa macaco do Sul.
A verdade é que, desde cerca de 2 milhões de anos até há aproximadamente 100.000 anos, o mundo era o lar, exactamente ao mesmo tempo, de várias espécies de humanos: Homo rudolfensis (África Oriental), Homo erectus (Ásia Oriental)
e Homo neanderthalensis (Europa e Ásia Ocidental), todos eles humanos. Os cérebros dos neanderthalensis eram ainda maiores do que os nossos actuais. No Homo sapiens o cérebro representa 2 a 3% do peso total do corpo, mas consome 25% de energia, quando em repouso.
Criar os filhos requeria um apoio constante de outros membros da família e dos vizinhos. É preciso uma tribo para criar um ser humano, pelo que a evolução favoreceu os que eram capazes de formar laços sociais fortes.
Os seres humanos alimentavam-se do tutano dos ossos dos grandes animais caçados pelas feras, e somente nos últimos 400.000 anos – com o surgimento do Homo sapiens – o homem saltou para o topo da cadeia alimentar. Um passo importante no caminho para o topo foi o controlo do fogo. Há cerca de 300.000 anos, o Homo erectus, os neandertais e os antepassados do Homo sapiens já usavam o fogo diariamente, o que lhes permitia caçar incendiando florestas, afugentando as feras com tochas com lume para se apossarem das suas presas e fazer churrascos de carne tornando-a mais digerível e gostosa.
Os cientistas concordam que há cerca de 70.000 anos, os sapiens da África Oriental se espalharam até à Península Arábica e, a partir daí, depressa invadiram todo o continente euroasiático. Crê-se que os sapiens se cruzaram com os erectus e neandertais, ou, então, liquidaram-nos – teorias da substituição e do cruzamento.
O Homo sapiens conquistou o mundo graças, acima de tudo, a um recurso único e excepcional: a sua linguagem, a fala.
Crê-se que os cérebros desses sapiens eram diferentes dos nossos e se foram aperfeiçoando a ponto de, há cerca de 70.000, se aproximarem dos nossos, para começarem a fazer coisas especiais. Por essa altura, bandos de sapiens deixaram a África, pela segunda vez, expulsaram os neandertais e todas as outras espécies humanas do Médio Oriente, de todo o mundo. Chegaram à Europa e Ásia Oriental. Há cerca de 45.000 anos, conseguiram, de alguma forma, atravessar o mar em jangadas feitas de bambu ou madeira e chegar à Austrália. Entre 70.000 e 30.000 anos inventaram, barcos, lamparinas de óleo, arco e flechas e agulhas que lhes permitiam coser roupas quentes nos sítios frios. As primeiras obras e objectos a que se pode chamar arte e joalharia datam dessa época, bem como as primeiras provas incontroversas de religião, comércio e estratificação social. Essa nova forma de pensar e comunicar chama-se Revolução Cognitiva – aprendizagem, memória e comunicação.
A nossa comunicação evoluiu para nos permitir tagarelar, vindo a transformar-se na nossa linguagem bastante maleável. De acordo com esta teoria, o Homo sapiens é, antes de mais, um ser social. A cooperação social é a nossa chave para a sobrevivência e reprodução. Tanto quanto sabemos, apenas os sapiens conseguem falar sobre entidades que nunca viram, nunca tocaram ou cheiraram. Lendas, mitos, deuses e religiões surgem pela primeira vez com a Revolução Cognitiva. Ninguém jamais conseguiu convencer um macaco a dar-nos uma banana prometendo-lhe um fornecimento ilimitado de bananas depois da morte, no céu dos macacos. Somente os humanos é que vão nessa conversa…
Um grande número de estranhos consegue cooperar com êxito graças à crença em mitos comuns. As religiões estão enraizadas em mitos religiosos comuns.
As crianças acreditam no Pai Natal. Está tudo centrado no acto de contar histórias e de convencer as pessoas a acreditar nelas. Os adultos acreditam em mitos religiosos e outros. A população francesa passou, em 1789, quase da noite para o dia, da fé no mito do direito divino dos reis - que conferia poder absoluto – para a crença no mito da soberania do povo.
Não me vou deter muito na vida dos nossos antepassados recolectores-caçadores por já o ter feito numa série de artigos motivados pela leitura de obras do historiador americano Jared Diamond. Tinham uma vida nómada e possuíam poucos bens, dada a dificuldade do seu transporte. O primeiro animal domesticado foi o cão, utilizado na caça e no sistema de alarme contra animais selvagens e intrusos humanos. O comércio estava limitado a poucos objectos: conchas, âmbar e pigmentos. Calcula-se que o número deles era igual à população portuguesa actual. O seu nomadismo dependia das estações do ano. Com o tempo, descobriram como conservar, pela salga e secagem, certos alimentos (carne e peixe) e as vantagens da vida nas margens de rios e lagos, devido à riqueza em peixes e mariscos. De maneira geral os caçadores-recolectores eram mais saudáveis do que os da Revolução Agrícola seguinte, por viverem em pequenos grupos, movimentarem-se com frequência e terem uma alimentação variada. Abandonavam os velhos e crianças que não podiam acompanhá-los nas deslocações e até havia sacrifícios humanos de inspiração religiosa. Acreditavam que os animais e plantas tinham consciência e sentimentos e podiam contactar directamente com os humanos – animismo – razão por que aceitavam as crenças dos outros grupos e povos, ao contrário dos teístas da Revolução seguinte – monoteístas – que consideravam essa religião herética e estranha. Portanto, os animistas e politeístas eram tolerantes quanto às outras re
Fomos conhecendo o período de antes da escrita, através de investigações de antropólogos, geólogos, paleontólogos e outros técnicos afins. Foram os sumérios, que viviam a Sul da Mesopotâmia, que inventaram a escrita, por volta de 3.500 a 3.000 anos a.C., pela necessidade que tinham de descobrir uma maneira de evitar ter de memorizar toda a quantidade de coisas e número dos seus negócios
ligiões, e até, por vezes, as integravam nas suas, ao contrário dos monoteístas, que acreditam num único Deus. Actualmente, os recolectores só existem no deserto do Kalahari e no Ártico.
Antes da Revolução Agrícola (da fixação do homem como agricultor) todas as espécies humanas viviam na região afro-asiática. O sapiens, com a Revolução Cognitiva, adquiriu a tecnologia e outra visão que lhe permitiu sair da região afro-asiática e ir colonizando a Terra, atingindo até ilhas através de jangadas e barcos. Na sua progressão pelas terras foram encontrando animais de grande porte que desconheciam, que foram matando para comer. Os únicos que sobreviveram viviam no mar, como as baleias, onde eles não chegavam.
Ao longo do último milhão de anos, houve uma Idade do Gelo a cada 100.000 anos, tendo a última ocorrido entre 75.000 e 15.000 anos atrás.
O sapiens conseguiu penetrar no continente americano por volta de 12.000 anos a.C., com o aquecimento global ocorrido nessa altura, vindos do Norte. Já a 10.000 anos a.C. já tinham atingido o Sul da América do Sul. Foram encontrando animais gigantes que foram devorando. A sua voracidade, levou à extinção de quase metade dos animais de grande porte do Planeta, muito antes de ter inventado a roda, a escrita e as ferramentas de ferro. Um exemplo famoso foram as Ilhas Galápagos, que só foram habitadas no século XIX, preservando assim a sua fauna única, incluindo tartarugas gigantes que, como os antigos diprotodontes devorados, não mostravam qualquer receio dos humanos.
Somente há cerca de 10.000 anos é que os humanos (sapiens) passaram de recolectores a agricultores – a chamada Revolução Agrícola – sedentarizando-se, no início no chamado Crescente
Fértil, onde chegou por volta de 70.0000 anos, no Sudeste da actual Turquia, Oeste do Irão, como já descrevemos na série de artigos anteriores motivados pela leitura do livro de outro historiador, o americano Jared Diamond, intitulado “Armas, germes e aço – os destinos das sociedades humanas”, editora Relógio d´Água. O trigo e as cabras estavam domesticados por volta de 900 anos a.C., as ervilhas e lentilhas, por volta de 800 anos a.C. e a oliveira, em 500 anos a.C. Os cavalos, em 4.000 anos a.C. e a videira, em 3.500 anos a.C. Os habitantes da Nova Guiné domesticaram a cana do açúcar e as bananeiras e os africanos ocidentais, o milho miúdo africano, o arroz africano, o sorgo e o trigo. Chegados ao ano 1 a.C., os povos de quase todo o mundo eram, maioritariamente, agricultores.
Apreciando bem as coisas, afinal foram as plantas – sobretudo o trigo, o arroz, o milho, a cevada e as batatas – que domesticaram o sapiens, e não o contrário, isto é, obrigaram-no a fixar-se à vida sedentária. Domesticar vem do latim domus (casa).
Os recolectores que se estabeleceram por volta de 12.000 anos a.C. no Oriente Fértil devido à abundância de cereais selvagens, iam colhendo-os e carreando para as suas moradias. Repararam que, pelo caminho que percorriam, ia nascendo e crescendo cereais dos que transportavam, pelo que resolveram semeá-los perto das suas aldeias, arar o terreno, protegê-las de animais e eliminar as ervas daninhas, o que lhes poupava percorrer grandes distâncias. Construíram casas de pedras e celeiros. Foi assim que foram aparecendo aldeias espalhadas pelo Crescente Fértil.
A domesticação de animais foi um benefício enorme para o sapiens por dispor de leite, ovos, carne, lã, peles e força de trabalho, poupando-se a grandes esforços canalizados para outras actividades que exigiam inteligência e técnica, o que levou a uma explosão de número de burros, cavalos, porcos, carneiros, vacas, galinhas, patos, etc.
Se todo o trabalho do agricultor revertesse para ele, seria uma sabura, uma justa retribuição para o seu esforço e iniciativas. Mas, não. O resultado do stress da agricultura teve enormes consequências. Foi a base dos sistemas sociais e políticos de larga escala. Por todo o lado surgiram elites e governantes que viviam de grande parte da produção alimentar dos camponeses, à base da força e da religião, que os deixaram com o mínimo para sobreviver.
Quando a Revolução Agrícola criou condições para a construção de vilas e cidades apinhadas de gente, e mais tarde de impérios (babilónico, sírio, persa, chinês, romano), as pessoas inventaram histórias sobre grandes deuses, sociedades anónimas para criarem laços sociais necessários; portanto, gerou-se o nascimento da mitologia e da hierarquia social. Os famosos anfiteatros romanos construídos por escravos para os imperadores, romanos ricos e povo se divertirem vendo lutas de gladiadores foram resultado dessa exploração dos agricultores e escravos. Foram os deuses e mitos inventados pela imaginação humana que ajudaram a criar elites e impérios. O famoso Código de Hammurabi de 1776 a.C. serviu de manual para a Declaração da Independência Note Americana de 1776. Em 1776 a.C. a Babilónia era a maior cidade do mundo; esse império dominava a maior parte da Mesopotâmia, incluindo o moderno Iraque e partes da Síria e Irâo actuais. O Código de Hammurabi tinha por objectivo “fazer com que a justiça prevalecesse sobre a Terra, abolir os perversos e os maus, impedir os fortes de oprimir os fracos”. Pelo Código, ao contrário da Declaração
da Independência americana, as pessoas não eram iguais, estavam subordinadas â ordem hierárquica.
Sobre a existência de deuses, da hierarquia e dos direitos humanos, não convém afirmarmos não existirem como factos, não vá o diabo tecê-los. O homem não possui direitos naturais, tal como as aranhas, morcegos, percevejos e chimpanzés não têm direitos naturais. Os direitos naturais, aliás, uma ordem natural é uma ordem estável, como a força da gravidade que, por mais que façamos ou que não acreditemos nela, não deixará de existir. Uma ordem imaginada (que sai da nossa imaginação, da nossa cabeça), pelo contrário, está sempre em risco de colapso, porque depende de mitos, e estes desaparecem quando as pessoas deixam de acreditar neles. Para preservar uma ordem imaginada são necessários esforços constantes e categóricos, muitas vezes sob a forma de violência e prisões. Por exemplo, para acabar com a ditadura salazarista foi preciso as forças armadas intervirem para subverter essa ordem imposta durante quase meio século, tendo a luta de libertação das colónias contribuído bastante para isso.
A ordem imaginada está incorporada no mundo material e dá forma aos nossos desejos e objectivos. As pessoas gastam, nos nossos dias, muito dinheiro em férias no estrangeiro porque são verdadeiros crentes nos mitos do consumismo romântico de usufruto de variadas experiências, isso incutido pela propaganda turística, e outra, bastas vezes enganosa, do consumismo. Para andar na ordem consumista há que convencer milhares e milhões de pessoas a cooperarem, porque não se trata de uma ordem subjectiva que existe apenas na nossa imaginação – é, pelo contrário, uma ordem intersubjectiva, que existe independentemente da consciência humana e das crenças humanas. O subjectivo é algo cuja existência depende da consciência e das crenças de um só indivíduo. O intersubjectivo é algo que existe no interior de uma rede de comunicações que unem a consciência subjectiva de muitas pessoas – a lei, o dinheiro, os deuses, as nações, e, actualmente, as redes sociais.
Antes da existência da escrita, as pessoas guardavam informações no cérebro, na memória, e iam transmitindo isso aos descendentes, oralmente. Claro que a memória, contida em células de certas partes do cérebro, não pode guardar tudo, tem os seus limites. Fomos conhecendo o período de antes da escrita, através de investigações de antropólogos, geólogos, paleontólogos e outros técnicos afins. Foram os sumérios, que viviam a Sul da Mesopotâmia, que inventaram a escrita, por volta de 3.500 a 3.000 anos a.C., pela necessidade que tinham de descobrir uma maneira de evitar ter de memorizar toda a quantidade de coisas e número dos seus negócios. Essa escrita não dava para escrever poesia nem histórias, porque só tratava de quantidades. Chamou-se a essa Escrita Cuneiforme. Nos Andes (América do Sul) também tinham uma escrita para número chamada Guipos. Mais ou menos por essa época, os egípcios desenvolveram outro sistema de escrita conhecida como Hieroglifos, e, mais tarde, na China e América Central. Por volta do século IX d.C. surgiu um novo tipo de escrita composto por símbolos que representavam os números 0 a 9, conhecidos por números árabes, embora tenham sido descobertos na Índia. A escrita como a que conhecemos veio depois, permitindo a fixação de poesias e histórias.
[continua]
Parede, Novembro de 2020 *(Pediatra e sócio honorário da Adeco)