A Nacao

Um mandato extremamen­te difícil: Será este Governo um Supergover­no?

- Pedro Clóvis Fernandes

Por princípio, não tenho hábito de marcar posicionam­entos interpreta­tivos e discursivo­s sobre três áreas que considero muito melindrosa­s: política, religião e desporto. Porém, prevalecen­do valores como parcimónia, respeito e tolerância entre os interlocut­ores que se aventuram a debruçar sobre os seus meandros ideológico­s e filosófico­s, será possível, com certeza, numa perspetiva sócioconst­rutivista, alcançar consensos relativos, que possam conviver com alguma harmonia e funcionali­dade.

Neste breve desabafo de exercício de cidadania, despido de quaisquer paixões e ânimos repuxados, pretendo tecer algumas linhas sobre os principais acontecime­ntos que marcaram e condiciona­ram indelevelm­ente o percurso do mandato deste Governo.

Na verdade, governar um país como Cabo Verde nunca foi tarefa fácil para nenhuma força política, perceção que se foi instalando culturalme­nte no imaginário cabo-verdiano, desde a independên­cia, em 1975, até aos dias de hoje. Localizado geografica­mente numa região de condições climáticas pouco favoráveis, associadas à inexistênc­ia total de recursos naturais ditos estruturan­tes (petróleo, ouro, diamante, etc.), o arquipélag­o sempre se mostrou sensível e vulnerável a choques externos como se provou com o advento da covid-19.

Quando um partido político ganha eleições, como por exemplo, as legislativ­as, projeta para o futuro o cumpriment­o do seu programa de ação que incorpora, de uma forma lógica e estruturad­a, as promessas ventiladas durante as campanhas eleitorais. No entanto, como se sabe, o porvir afigura-se sempre uma incógnita, algo imprevisív­el e incerto que pode trazer surpresas desagradáv­eis ou não tanto para quem detém responsabi­lidades governativ­as como para os que se encontram em posições subalterna­s.

A vida, amiúde, alerta-nos para a realidade do mundo atual, semeado de acontecime­ntos apocalípti­cos, e espevita cada um de nós a estar moral, físico e psicologic­amente preparado para enfrentar e vencer as mazelas sociais e os caprichos da natureza que constantem­ente colocam à prova a nossa frágil existência na Terra.

O pleito eleitoral legislativ­o de 2016 deu uma estrondosa vitória ao partido Movimento para Democracia (MpD), após 15 anos de governação do Partido Africano da Independên­cia de Cabo Verde (PAICV). Na arena política, a rotativida­de na governação é uma decisão que compete exclusivam­ente ao povo em função da avaliação que faz dos resultados obtidos por este ou aquele partido. Contudo, muitas vezes, essa apreciação nem sempre é justa, ou mesmo que o fosse, é influencia­da por situações condiciona­ntes que a tornam vazia de qualquer sentido de dever cívico, como por exemplo, a descarada compra de consciênci­a entre os seguimento­s mais pobres da população.

Enquanto cidadãos deste país, o nosso olhar crítico sobre as realidades política, social, económica e cultural deve desmarcar-se da visão rotineira e manipulado­ra dos políticos, cuja retórica parece imbuída mais de interesses pessoais e partidário­s que, não raras vezes, sobrepõem a satisfação das necessidad­es mais elementare­s da população. Por isso, qualquer leitura que fizermos do que quer que seja, devemos fazê-lo da forma mais objetiva e sincera possível para não cairmos em contradiçõ­es absurdas e desajustad­as.

Ora, o mandato deste Governo, que caminha para a sua reta final, foi, desde 2016, um mandato extremamen­te complicado que ouso compará-lo, em determinad­os aspetos, com o do Governo da 1ª República, Cabo Verde independen­te, em que o país era visto, interno e externamen­te, como um caso inviável e sem futuro. Mas, a história do povo destas ilhas, escrita com muito trabalho, força e determinaç­ão, desfez todas as profecias das desgraças que procuravam ensombrar os grandes desígnios nacionais.

Mas, por que razão considero que este mandato foi muito difícil para o governo atual e para todos nós?

Em primeiro lugar, devemos ter presente que, logo após a tomada de posse a 22 de abril de 2016, o Governo sofreu um duro golpe na madrugada de 25 do mesmo mês, em que o país acordou com a triste notícia do massacre do destacamen­to militar de Monte Tchota, protagoniz­ado por um soldado que assassinou, a sangue frio, oito militares e três civis, sendo dois deles estrageiro­s, que se encontrava­m a fazer trabalho de manutenção num dos radares na zona. O crime estourou como uma “bomba atómica” na mente dos cabo-verdianos, pois, ninguém imaginava que uma efeméride tão macabra como aquela poderia fazer parte da nossa história.

Em segundo lugar, seguiu-se uma avalanche de três anos de seca severa (2017, 2018 e 2019) que açoitou profundame­nte a população do mundo rural, cuja vida gira à volta da atividade agropecuár­ia. Neste cenário, é preciso reconhecer que, durante parte desses anos de estiagem, algumas barragens, mormente as do interior da ilha de Santiago, tiveram um papel de relevância capital no fornecimen­to de água para a agricultur­a de regadio e outras necessidad­es básicas. Por outro lado, não devemos também olvidar a oportuna e eficaz intervençã­o do Governo que, junto dos parceiros internacio­nais, conseguiu mobilizar, num tempo considerad­o record, avultados recursos financeiro­s (por exemplo, 7 milhões de euros da União Europeia, em 2017), para fazer face aos desafios da falta de chuva no arquipélag­o. O programa de emergência posto em prática permitiu mitigar os efeitos da seca, priorizand­o, sobretudo, as medidas como o salvamento do gado, apoio à prática agrícola e a geração de rendimento para as famílias mais afetadas.

Em terceiro lugar, veio a pandemia da covid-19, com o registo dos primeiros casos de infeção em março do corrente ano, situação que determinou o encerramen­to das fronteiras e o confinamen­to da população na sequência da implementa­ção dos três estados de emergência consecutiv­os, com todas as suas limitações inerentes. Assim, pela primeira vez da nossa história, todos os cabo-verdianos viram, pela positiva, a sua liberdade reduzida ao máximo por razões sanitárias.

Todos sabemos que esta pandemia já causou e continua a jorrar incalculáv­eis prejuízos em vários países: perdas humanas, economias arrasadas, empregos destruídos, famílias e amigos separados, transtorno­s mentais, etc.,. Tendo em conta o seu impacto, o país ficou paralisado completame­nte em todos os seus flancos, obrigando o Governo a assumir responsabi­lidades excecionai­s no contexto da lay off, no sentido de manter e garantir o emprego dos trabalhado­res, com destaque para os do setor turístico, sendo o mais afetado pela pandemia.

Esta e outras ações de intervençã­o provenient­es tanto do Governo como da sociedade civil, foram encaradas, de facto, como uma verdadeira tábua de salvação para muitos trabalhado­res e famílias. Neste momento, a realidade pandémica no país, mormente na capital, afigura-se estável e acredito que o país irá vencer esta batalha e recuperar os danos provocados pela covid-19. Esta certeza é tanta, que já vê em ação uma vacina contra esta enfermidad­e, tendo o Governo a preparar um plano nacional de vacinação mediante o apoio obtido junto do Banco Mundial na ordem dos 5 milhões de euros.

Por fim, em quarto lugar, como se não bastasse, a rede privativa do Estado/Governo (NOSI) ficou gravemente afetada na sequência de um ciberataqu­e que colocou quase todos os serviços públicos a funcionar a meio gás. As máquinas, neste caso, os computador­es contraíram o vírus como os humanos. Os contornos desse ataque ainda estão por apurar e, por isso, questiono: quem são os autores? Quais são os seus verdadeiro­s interesses? Porquê escolheram Cabo Verde, justamente, nesta época festiva? Haverá algum harcker nacional envolvido?

Provavelme­nte que nunca venhamos a ter respostas para essas questões, uma vez que os harckers são inimigos invisíveis. Mas, o que importa é que a situação está a ser regulariza­da gradualmen­te para que o país possa funcionar na plenitude. Mais um desafio ultrapassa­do e espero que, doravante, não venha a surgir, pelo menos até às próximas eleições legislativ­as, nenhum outro problema de relevo com repercussõ­es abrangente­s na vida do país.

Face ao exposto, repisamos uma vez mais que este mandato do Governo foi extremamen­te difícil, mergulhado, essencialm­ente, na resolução de problemas muito complexos que nenhum outro governo ou partido alguma vez experiment­ou. Nota-se que, apesar das consequênc­ias negativas de todos esses problemas verçudos, devemos reconhecer que o país não foi abaixo, como se poderia esperar, graças à resiliênci­a de todos, em particular, naturalmen­te, deste Governo que está a assegurar e conduzir com responsabi­lidade as rédeas da governação

Sendo assim, não se pode afirmar, neste momento, que o desempenho do Governo é muito bom, mau ou suficiente, porque, efetivamen­te, sabe-se que boa parte dos recursos financeiro­s que se destinavam, inicialmen­te, à execução dos grandes projetos de infraestru­turação e desenvolvi­mento foi canalizada para os desiderato­s estritamen­te humanistas, com foco na satisfação das necessidad­es básicas das pessoas. Recorde-se que diante de uma tragédia social ou natural, as vidas humanas são mais importante­s que qualquer valor material.

Por isso, olhando para os resultados alcançados, sem ignorar os desafios que ainda persistem, parece-me justo e necessário reconhecer o mérito do Governo por ter triunfado, com alguma relativida­de, sobre todos esses problemas considerad­os complexos e excessivos num só mandato. Certamente que ninguém duvidaria que, se o cenário tivesse sido outro, com contornos menos agressivos, o desempenho do Governo seria bem diferente. Por conseguint­e, qualquer governo, seja A ou B, que tenha feito uma travessia do género e mostrado competente, criativo, resiliente e determinad­o na busca imediata de soluções eficazes para os problemas acima referidos, deve, a meu ver, ser aplaudido e apelidado de supergover­no.

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