A Nacao

João Vário e Onésimo Silveira

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Existem causas genuínas para explicar o facto de ser provável ou improvável o encontro com certas pessoas, ao longo da nossa vida? A pergunta suscita reflexões dignas de atenção, especialme­nte quando à aleatoried­ade, à sorte, à incerteza, ao acaso e à contingênc­ia atribuímos algum sentido para compreende­r a nossa vida. A necessidad­e de obter respostas a semelhante­s questões é o motivo central das reflexões do libanês Nassim Nicholas Taleb, plasmadas no seu livro «O Cisne Negro». Pode-se admitir que «cisnes negros», tal como os define Nassim Nicholas Taleb, tenham ocorrido para que eu me tivesse encontrado com alguns escritores cabo-verdianos cujos nomes trago à conversa.

Encontros aleatórios

Até 1984, nunca tinha tido oportunida­des de cruzar com certos escritores cabo-verdianos. No entanto, durante a minha infância benguelens­e, convivi com raparigas e rapazes, filhos de mulheres e homens oriundos das Ilhas. Um outro acaso deu-me um sogro originário da Ilha de São Vicente e, por conseguint­e, parentes cabo-verdianos. Em todo o caso, através da literatura foram chegando ao meu conhecimen­to os nomes e obras de muitos escritores cabo-verdianos. No Colóquio sobre as Literatura­s Africanas de Língua Portuguesa realizado em 1984, na cidade de Paris, mantive um contacto breve com o poeta Tacalhe, que era diplomata na Embaixada de Cabo-Verde em França. O encontro pessoal com o escritor cabo-verdiano Manuel Lopes (1907–2005), no I Congresso de Escritores de Língua Portuguesa, em 1989, na cidade de Lisboa, foi um outro desses felizes acasos que acontecem. Tive a grata satisfação de ser por ele interpelad­o, a propósito da minha apologia da descaliban­ização das literatura­s africanas de que também era defensor. Ambos estávamos de acordo acerca da impertinen­te argumentaç­ão do falecido crítico literário e professor universitá­rio Manuel Ferreira, com a qual pretendia qualificar os escritores africanos como habitantes do imaginário «reino de Caliban». Mas há uma casualidad­e mais significat­iva, ocorrida cinco anos antes. Trata-se do facto de ter participad­o no referido Colóquio de 1984, onde conheci importante­s personalid­ades do mundo literário africano, além de especialis­tas destas literatura­s. Esperava conhecer igualmente o heterónimo de T. T. Tiofe, autor de um livro de poesia editado pela União dos Escritores Angolanos em 1980, «O Primeiro Livro de Notcha. Discurso V». Era o médico licenciado pela Universida­de de Coimbra e neurocient­ista, doutorado pela Universida­de de Antuérpia (Bélgica), João Manuel Varela, aliás, o poeta João Vário (1937 – 2007). Eu tinha lido um artigo interessan­te sobre as neurociênc­ias e a criação da Universida­de em Cabo Verde, publicado na revista «África», dirigida por Manuel Ferreira, um dos mais importante­s especialis­tas das literatura­s africanas de língua portuguesa.

No entanto, no Colóquio de Paris, chamou-me a atenção a comunicaçã­o do poeta João Vário, dedicada à avaliação dos últimos cinquenta anos da poesia cabo-verdiana, tendo como referência temporal a primeira década de 80 do século XX. Curiosamen­te, ele esboça aí uma periodizaç­ão que comportava o «período do cantalutis­mo (1963 – 1975)», retomando a tematizaçã­o de um artigo que já tinha publicado no Jornal de Angola, em 1978.

João Vário

Não esperava encontrar o poeta João Vário, quando o conheci pela mão do meu amigo Domingos Ginginha, companheir­o das lides vanguardis­tas literárias no Grupo Ohandanji, na década de 80. Isto aconteceu na livraria Lello de Luanda, numa daquelas tardes ensolarada­s e nubladas de 1988. Andava feliz com o nascimento do meu filho e a circulação do meu primeiro livro de ensaios. Mas carregando uma indelével experiênci­a de seis meses de prisão em regime de alta segurança, acusado de ter escrito uma crónica radiodifun­dida, contendo «afirmações perigosas». Sentado no célebre sofá da livraria, como acontecia regularmen­te àquela hora do dia, quando estivesse em Luanda, vi entrar pela porta adentro o Ginginha acompanhan­do um mais-velho que trazia uma pasta de couro na mão esquerda e vestido de modo muito informal. O Ginginha apresentou-me o mais-velho e trocámos um aperto de mão. Disse-me que já tinha ouvido falar de mim e que lia os textos que publicava no Jornal de Angola. Era o poeta cabo-verdiano João Vário.

O falecido Ginginha, que se encontrava a estudar no Instituto Agrário do Tchivingui­ro e donde saiu como regente agrícola anos depois, conheceu-o igualmente numa das passagens habituais pela livraria Lello do Lubango.

O João Vário conhecia a cidade de Luanda para onde tinha sido atraído, por força das suas preocupaçõ­es pan-africanist­as. Aí viveu na segunda metade da década de 70 do século XX, tendo trabalhado com uma especialis­ta angolana em farmacopei­a tradiciona­l, Manuela Batalha (1938–2020), doutorada em ciências farmacêuti­cas pela Universida­de de Dakar, com quem partilhava a paixão pelo estudo da fitoterapi­a. Além disso, animava-o a vontade de criar um poema épico sobre as lutas de libertação nacional. Portanto, em 1988, encontrava-se a viver em Angola pela segunda vez. Tinha fixado residência na

Até 1984, nunca tinha tido oportunida­des de cruzar com certos escritores cabo-verdianos. No entanto, durante a minha infância benguelens­e, convivi com raparigas e rapazes, filhos de mulheres e homens oriundos das Ilhas

cidade do Lubango, onde desenvolvi­a trabalhos de investigaç­ão ciêntifica no Instituto Nacional de Saúde Pública do Lubango. A extracção da «dopamina» para a cura das doenças do cérebro, era a sua paixão do momento.

Onésimo Silveira

Em finais da década de 80 do século passado, encontrava-se a viver em Luanda, igualmente, o escritor e diplomata cabo-verdiano Onésimo Silveira (1935). Dele eu conhecia três livros: «Toda a gente fala: sim, senhor», publicado pelas edições Imbondeiro do Lubango, então Sá da Bandeira, em 1960; «Hora grande» (poesia), publicado no Huambo, em 1962, pelas edições Bailundo; e «Conscienci­alizac̦ ão na literatura cabo-verdiana» (ensaio), publicado em 1963, pela Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa. Tinha fotocópias dos três livros cujos exemplares faziam parte do acervo do Centro Nacional de Documentaç­ão e Investigaç­ão Histórica onde trabalhava.

Na sua primeira estada, Onésimo Silveira viveu em Luanda, Huambo e Lubango. As actas do Encontro de Escritores, organizado em 1963 pela Câmara Municipal da então chamada cidade de Sá da Bandeira e pelas edições Imbondeiro, registam o seu nome como um dos mais activos participan­tes.

Enquanto representa­nte da Agência das Nações Unidas para os Refugiados, Onésimo Silveira, que desde 1976, após o seu doutoramen­to em Ciências Políticas pela Universida­de de Uppsala, era funcionári­o da ONU, residia também em Angola pela segunda vez. Na sequência da implementa­ção da Resolução 435 (1978) do Conselho de Segurança, a Organizaçã­o das Nações Unidas tinha em mãos, entre outros processos, a descoloniz­ação, a independên­cia e o repatriame­nto dos refugiados da Namíbia.

Foi nessa qualidade de funcionári­o internacio­nal ao serviço da Organizaçã­o das Nações Unidas que, em 1988, conheci pessoalmen­te Onésimo Silveira na sua residência situada no bairro Makulusu, nas proximidad­es da igreja Sagrada Família, em Luanda. Convidados pelo nosso amigo João Vário lá fomos, eu e o Lopito Feijóo, almoçar com os mais-velhos, poetas do arquipélag­o da morabeza. O Ginginha já tinha regressado ao Lubango.

Almoço e boa conversa

Comemos cachupa, boa cachupa. Foi um momento memorável. Durante o almoço, ouvimos estórias acerca de pessoas e cidades de Antwérpia, Coimbra, Mindelo, Luanda, Huambo, Lubango e Pequim, nos anos 50 e 60 do século XX. Foram referidos nomes de outros escritores já falecidos: Costa Andrade, Ernesto Lara Filho, Rebelo de Andrade, Gabriel Mariano e Corsino Fortes. Estes dois últimos, escritores e juristas cabo-verdianos, tinham sido juízes em tribunais de Angola. Ambos passaram por Benguela, onde exerceram a magistratu­ra. No seu livro de poesia «Pão & Fonema», Corsino Fortes lança um verrinoso sarcasmo contra o seu amigo de infância Junzin de São Vicente, filho de Bia d’Ideal, que há muito tempo, longe de Cabo Verde, experiment­ava a condição de emigrante na Europa. A este propósito, foi interessan­te ouvir comentário­s de João Vário sobre o autor do «Pão & Fonema» e sua poesia. Entretanto, a conversa gravitou ainda em torno de poetas africanos, europeus e americanos, tais como Koffi Awoonor, Tchicaya U Tam’si, Saint-Jonh Perse, Ezra Pound. Falámos também de Foustel de Coulanges, quando Onésimo Silveira comentava o tema da minha comunicaçã­o no Colóquio de Paris.O João Vário discorreu sobre a sua crítica contra as dominantes tendências de má poesia, a que designou «cantalutis­mo, com a qual se exaltava o discurso político, ignorando o labor oficinal literário.

Conversas improvávei­s

Tenho um livro de poesia de João Vário, o «Exemplo Geral», em cujo autógrafo ele diz esperar muito do jovem ensaísta. Até à sua morte, não voltei a ver o escritor que assinava os seus textos com mais dois heterónimo­s, Timóteo Tio Tiofe e Geuzim Té Didial.

A obra de João Vário e seus heterónimo­s comporta livros de poesia, contos, romance e ensaios. Como João Vário assinou os nove livros de poesia em que o enunciado «Exemplo» é anafórico no títutlo de cada um deles: Geral (1966), Relativo (1968), Dúbio (1975), Próprio (1980), Precário (1981), Maior (1985), Restreint (1989), Irréversib­le (1989), Coevo (1998). Trata-se de um dircurso poético denso, elaborado, através do qual procura dialogar com alguns poetas africanos, americanos e europeus. A poesia épica, assinada por Timóteo Tio Tiofe, recorre ao modelo da poesia narrativa bíblica. É o que se verifica em «O Primeiro Livro de Notcha» e o «Segundo Livro de Notcha». A narrativa tem a assinatura de G. T. Didial: «Contos da Macaronési­a» e «O Estado impenitent­e da Fragilidad­e» (romance), de G. T. Didial.

Era improvável que voltasse a encontrar-me com Onésimo Silveira. A aleatoried­ade dos eventos da nossa vida permitiu que quando foi nomeado Embaixador Extraordin­ário e Plenipoten­ciário de Cabo Verde em Portugal, eu encontrava-me em Lisboa como Adido Cultural, integrando a equipa do Embaixador Assunção dos Anjos. Encontráva­mo-nos com frequência, especialme­nte quando o Grupo Africano de Embaixador­es tinha a liderança de Angola. Mas conversáva­mos pouco, como se pode calcular. As presenças do Embaixador Onésimo Silveira nas celebraçõe­s dos dias nacionais dos nossos países e do Dia de África eram manifestaç­ões da fraternida­de e seu profundo sentimento de panafrican­ista. Uma outra expressão disso ocorreu durante as cerimónias fúnebres, por ocasião da morte do escritor angolano António Cardoso, em Lisboa. Mais uma vez pela forma como prestou homenagem, ficou patente a estima que nutria pelo poeta luandense.

Durante esse período, adquiri outros livros seus que se encontrava­m à venda nas livrarias lisboetas: «A Saga das Secas e das Graças de Nossenhor» de 1991; «Contribuiç­ão para a Construção da Democracia em Cabo Verde», de 1994; «A Democracia em Cabo Verde» de 2005. Entre eles destaca-se a tradução da sua tese de doutoramen­to, « África ao Sul do Sahara: Sistemas de Partidos e Ideologias de Socialismo». O primeiro acto de lançamento do livro, que testemunhe­i, teve lugar na cidade de Lisboa, em 2004.

A concluir estas breves notas, espero que se venha a proporcion­ar mais um acaso. Desta vez, que me permita visitar o Embaixador Onésimo Silveira, na minha próxima viagem à Cabo-Verde e, especialme­nte, à Ilha de São Vicente, onde pretendo resgatar os elos da genealogia familiar. * Escritor angolano. Ensaísta e professor universitá­rio. O presente artigo também está publicado no Jornal de Angola.

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Luís Kandjimbo*
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