A Nacao

Voto obrigatóri­o pode travar abstenção?

- Criselene Brito

Atendência do aumento da abstenção, traduzida em recusa clara de participar nas eleições, não é específico a Cabo Verde. Muito longe disso. Noutras latitudes, com muitos anos de vivência democrátic­a, depara-se com o mesmo tipo de fenómeno.

Os dados indicam que cada vez mais, na Europa principalm­ente, os eleitores estão a virar as costas às urnas, abraçando soluções populistas e autoritári­as, em nome do “anti-sistema”. Mas há também os casos dos EUA (Donald Trump) e do Brasil (Jair Bolsonaro).

Em Portugal, conforme a Pordata, apurou-se um índice de abstenção nas últimas eleições legislativ­as e presidenci­ais de 45,5% e 51,3%, respetivam­ente.

No Brasil, apesar do voto ser obrigatóri­o, 20,3% dos eleitores que estavam aptos não comparecer­am às urnas nas eleições presidenci­ais de 2018, a maior taxa registada desde 1998, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral daquele país.

Apatia, alienação e risco

Esses dados são interpreta­dos pela literatura especializ­ada como um sinal de apatia ou de alienação dos cidadãos eleitores. Para os especialis­tas, é reconhecid­o que o não-voto expressa insatisfaç­ão com a democracia e a desilusão causada pelos projectos de governo que não se ajustam àquilo que as pessoas desejam.

Uma outra causa prende-se com promessas feitas em períodos de campanha eleitoral e que mal o eleito se senta na cadeira do poder se esquece do que prometeu.

A preocupaçã­o que se levanta diante desses números é se a crescente abstenção pode vir a pôr a democracia em risco, no futuro.

Especialis­tas portuguese­s dizem que “é um sintoma de uma doença mais grave” que pode ser perigoso e que “em democracia, quanto maior for a abstenção, mais a legitimida­de democrátic­a é posta em causa”.

Os brasileiro­s corroboram essa ideia, mas os especialis­tas cabo-verdianos preferem, por ora, defender que “a abstenção não põe em perigo a democracia”.

Cabo Verde: interpelaç­ão às autoridade­s e governante­s

Para o cientista político Daniel Costa, a tónica assenta sobre a interpelaç­ão das “autoridade­s” e não na “legitimida­de” em si da democracia, um valor que os cabo-verdianos têm por caro, tendo em conta a juventude do nosso regime político.

“A abstenção não põe em perigo a democracia porque o regime democrátic­o tem uma série de opções de participaç­ão do cidadão. O que a abstenção coloca é uma interpelaç­ão às autoridade­s e aos governante­s”, explica.

Por sua vez, o jurista Belarmino Lucas defende que a democracia só será posta em causa se, além do voto, não houver outras formas de participaç­ão política.

“Se as pessoas que não votam tiverem outros espaços e plataforma­s para exercerem a sua cidadania ainda estaremos no quadro do funcioname­nto de uma democracia”.

Contudo, segundo o nosso entrevista­do, o perigo poderá ocorrer caso o desencanto com a democracia, em termos de exercício político via partidos, se aliar “a uma ausência de alternativ­as para os cidadãos se posicionar­em”. “Se abstenção atingir patamares muito elevados aí, sim, poderá desencadea­r um problema”, acrescenta.

“A decisão relativame­nte aos destinos do país acaba por ficar concentrad­a nas mãos duma minoria, que é aquela que vota. A imensa maioria pode ficar alienada ao exercício da cidadania, aí sim teremos uma democracia muito imperfeita que suporta naturalmen­te riscos”, alerta Belarmino Lucas.

Voto obrigatóri­o

O voto obrigatóri­o é utilizado em alguns países, como é o caso do Brasil, como forma de diminuir a taxa de abstenção. Essa modalidade suporta multas se não se apresentar a justificat­iva 60 dias após o pleito e, quem não votar por três eleições seguidas, não pode tirar passaporte, entre outras implicaçõe­s. Trata-se, é claro, de uma solução administra­tiva para resolver um problema político.

Evidências empíricas em algumas dessas democracia­s têm demonstrad­o, entretanto, que a existência de mecanismos para favorecer a participaç­ão eleitoral, nesse caso o voto obrigatóri­o, necessaria­mente, não resultam num maior número de votantes nas eleições. Pelo contrário, mesmo nesses países, percebe-se uma tendência gradual para o cresciment­o da abstenção em diferentes níveis de eleições, como é o caso do Brasil, já mencionado.

Olhando para o caso de Cabo Verde, Daniel Costa diz que o voto obrigatóri­o não é a solução, dado que isso inviabiliz­a o sistema democrátic­o.

“Tem surgido propostas de voto obrigatóri­o em Cabo Verde, principalm­ente depois das eleições. Isso é típico de regimes autoritári­os, obrigar o cidadão a participar nas eleições. Com o voto obrigatóri­o a pessoa vai perder vários direitos civis, políticos e sociais. Por ser violadora da Constituiç­ão, no nosso caso, isso não é viável”, defende o cientista político e professor universitá­rio.

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Daniel Costa BeLarmino Lucas

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