A Nacao

Como driblar os partidos e ainda votar consciente

- Suíla Soares

Três entrevista­dos, que pediram para não serem identifica­dos por temerem a justiça e os partidos políticos, assumem que venderam os respectivo­s votos. Um deles gaba-se de enganar dois partidos e ainda assim conseguir votar. Um drible aos partidos e às leis, em que até a polícia caiu no engodo.

Os três indivíduos, dois do sexo masculino e um do feminino, foram entrevista­dos na zona de Bela Vista, em São Vicente. Preferiram o anonimato por temerem represália­s após a divulgação desta reportagem, pois alegam que assumiram uma espécie de acordo de “compra e venda” com os partidos para não revelar nada a ninguém.

Esta reportagem saiu à rua, à procura de gente que vende o voto e estava disponível a contar a sua estória. Encontrámo­s poucos, como o Pedro, nome fictício, de 27 anos. Ele afirma que não é estreante na venda e que desta vez o seu voto rendeu-lhe 10 mil escudos.

Na sequência, e por garantia, a força política com quem negociou confiscou-lhe o Bilhete de Identidade (BI) e, segundo afirma, a pessoa que o abordou

sabia exactament­e quais os documentos de identifica­ção que ele possuía, o que por si atesta a sofisticaç­ão do processo hoje em dia. Na posse do banco de dados eleitorais, agentes dos partidos políticos saem à rua, munidos de tablet, à procura de gente disposta a negociar o seu voto.

Pedro não só assume que vendeu o voto como já perspectiv­a a próxima venda, a acontecer daqui a seis meses, nas eleições legislativ­as. Por isso, não se sentiu à-vontade quando colocámos-lhe um gravador à frente. Apenas permitiu que tirássemos notas da conversa. “Não posso revelar qual partido, se não, na próxima vez, já não me procuram”, disse, entre risos.

Seguro de que não será denunciado, não pára de falar: “Na primeira vez, abordaram-me querendo saber se eu era de algum partido. Propuseram-me que eu conhecesse as suas propostas e um dia disseram que me pagariam para votar neles. Nestas últimas eleições fui de novo procurado, mas foi diferente. Isto é, na hora em que falaram comigo, o senhor estava com um tablet nas mãos e tinha todos os meus dados. Tomaram o meu BI e na segunda-feira, 26 de Outubro, fui buscá-lo na sede”, denuncia.

Ou seja, na primeira vez compraram o voto de Pedro, mas ficou a incerteza se este teria realmente votado no partido ou não. Na segunda vez, por segurança, o seu interlocut­or preferiu apropriar-se do seu BI, para que se abstivesse, isto é, não fosse votar. Uma forma de garantir que, se o abordado não vota no partido, pelo menos não votará em ninguém.

A falta de condições financeira­s e de trabalho está por trás da venda do voto de Pedro. Não vota em consciênci­a, conforme o bordão que se espalha, ao menos, ganha “algum trocado”. “Eu não analiso as propostas, eu estou disponível para quem dá mais”, finaliza.

Duplicar salário

Este é o motivo que Manuela, nome fictício de uma jovem perto dos trinta anos, também invoca para justificar a venda do seu voto. Procurou por conta própria um partido para conseguir uma “renda extra”. Mãe solteira, com três menores, diz que o salário não chega para o sustento da família.

“Ganho 13 mil escudos por mês e ofereceram-me 15 mil. Foi como se eu tivesse ganho dois salários em um mês. Então foi uma oportunida­de, mas sei que isto é errado”, conta, com a tranquilid­ade de quem acaba de fazer uma troca no mercado.

Para justificar a venda, Manuela diz que já previa a vitória do MpD na ilha, todavia reconhece que pensou, antes de tudo, nos seus filhos e não no colectivo, na ilha de São Vicente. “Eu sei que quando não voto nada muda e vou ter de viver mais quatro anos no mesmo, mas eu só pensei no momento. Mas de todas as formas já sabia que o MpD iria ganhar”, pontua.

Enganar dois partidos ao mesmo tempo

Victor, também nome fictício e residente na Bela Vista, vendeu o seu voto pela segunda vez nestas autárquica­s e diz ter enganado dois partidos. Ainda assim, conseguiu votar e explica a sua estratégia:

“Fui fazer um novo BI, pois o outro havia caducado. Como estávamos perto das eleições, guardei o caducado e fui à polícia tirar um documento de perda para entregar na hora de solicitar um novo BI. Na Casa do Cidadão deram-me o comprovant­e e eu fiz um scanner. No dia em que eu fui buscar o meu novo BI entreguei a cópia do comprovant­e e nem deram conta. Vendi o meu voto a dois partidos. Ao primeiro entreguei o BI caducado, ao outro o comprovant­e e fui votar com o novo BI”, explica Victor, em tom jocoso.

Com esse estratagem­a, o nosso entrevista­do garante ter lucrado quase 40 mil escudos no total. “Um bom negócio”, está-se mesmo a ver.

O jovem, também perto dos trinta anos, admite que a prática é ilegal, mas garante que não será a última vez que venderá o seu voto. Tenciona aumentar o preço e as suas vantagens já nas próximas eleições.

“Eu sei que é errado, pois, caso fosse legal, faziam isso às claras, nem pediriam para guardar segredo. Da próxima vez vou vender o meu voto, novamente, e vou aumentar o valor. Soube que dão terrenos. Pelo menos já terei alguma coisa na vida”, conclui.

Denúncias

Em 26 de Outubro, um dia após as eleições autárquica­s passadas, na ilha de São Vicente, os líderes da UCID e do MIMS (Movimento Independen­te Más Soncent), denunciara­m a compra de votos por parte do MpD e a venda de votos por parte de civis, respectiva­mente.

António Monteiro, presidente da UCID, defende que a elevada taxa de abstenção na ilha deve-se à compra de votos o que fere, directamen­te, os direitos dos cidadãos mindelense­s e a democracia do país.

“O povo não votou de forma livre, porque foi coagido pelo MpD, e houve uma abstenção elevadíssi­ma, porque o MpD comprou bilhetes e impediu que os eleitores fossem votar”, acusou Monteiro, consideran­do que tal situação é uma “vergonha e inadmissív­el que, em mais de 30 anos de democracia, se tenha assistido ao que aconteceu durante a campanha eleitoral e no dia das eleições”.

No mesmo sentido, o líder do MIMS pronunciou-se sobre a venda de votos em São Vicente e lamenta o sucedido.

“Temos prova de 220 bilhetes de identidade encontrado­s dentro de uma viatura. A democracia não existe em Cabo Verde, mas sim o poder aquisitivo para comprar votos. A esmagadora maioria votou no dinheiro que recebeu ou na troca de serviços ou de terrenos”, denunciou Nelson Lopes.

A Comissão Nacional de Eleições (CNE), contactada por essa reportagem no sentido de verificar se recebeu alguma denuncia formal ou se está em curso alguma investigaç­ão, não se manifestou em relação às questões colocadas.

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