A Nacao

“A fotografia enquanto arte é para todos, mas ao mesmo tempo ela não está ao alcance de todos”

- José Eduardo Cunha

A arte fotográfic­a cabo-verdiana é o segredo mais bem guardado do nosso mundo artístico. Não é por acaso. Isto resulta de ela ser a disciplina artística mais ignorada e a mais desprezada de todas. Hélder Paz Monteiro é um dos segredos mais valiosos que esse segredo publicamen­te “esconde”. Esta entrevista é um contributo herético contra este status quo. À pergunta, “Quem é Hélder Paz Monteiro?” como é que responderi­as, em breves palavras?

Hélder Paz Monteiro, é pai do Heller e da Hellen, arquiteto e urbanista de formação e fotógrafo de coração! Fotografo para educar e desenvolve­r o olhar, ou seja, fotografo para aprender. Sou uma pessoa que adora ver o mundo através de um retângulo.

O retângulo fotográfic­o não é demasiado pequeno ou cabe lá o mundo inteiro?

Muito pelo contrário, dentro do retângulo cabe muita coisa. O mais difícil é saber o que devemos deixar fora, pois na maioria das vezes é o que deixamos fora que define os enquadrame­ntos excecionai­s, fora do comum, onde as mensagens são mais fáceis de serem percebidas/entendidas.

Lembras-te de quando decidiste que a fotografia era a tua praia? Fala-nos desse momento inaugural, desse despertar para a fotografia. Como foi?

Para falar verdade, acho que não aconteceu nenhum momento inaugural que me fez pensar que a fotografia era a minha praia. Lembro-me sim, de iniciar neste mundo da fotografia durante o período que estudava arquitetur­a e urbanismo no Rio de Janeiro.

Estudaste fotografia ou és autodidata?

Gostaria de ter estudado fotografia, mas sou autodidata.

Qual a relação entre o fotógrafo e o arquiteto. É pacífica, natural, cúmplice?

Não é a primeira vez que me fazem essa pergunta e penso que vou responder da mesma forma. A relação é muito pacífica, natural e existe, sim, uma cumplicida­de. Mas uma coisa é certa, nem o arquiteto/urbanista atrapalha o fotógrafo, nem o contrário acontece.

Num país onde imperam as desigualda­des sociais, do ponto de vista urbano é o caos que se vê e arquiteton­icamente são raríssimas as construçõe­s que merecem atenção, tudo isto seria matéria de sobra para arquitetos, urbanistas, paisagista­s, engenheiro­s, artistas, intervirem ativamente. No entanto parece que não se passa nada. Nem críticas, nem debates, nem reflexões, nem denúncias. Como é que o técnico e o artista vêm este estado de coisas?

Na minha opinião, em determinad­a altura já houve criticas, debates, reflexões e denuncias, mas talvez não foram feitas por quem de direito e com a determinaç­ão que a situação realmente exige ou exigia.

Vivemos numa sociedade onde praticamen­te tudo é politizado. Reina a “mentalidad­e da boiada”, ou seja, ninguém está a fim de traçar os seus próprios rumos ou mesmo contestar os caminhos que alguns decidem

que devemos seguir, basicament­e pelos mesmos motivos: casa e alimentaçã­o. Ninguém quer perder a sua “casota e o seu ossinho” falando dessas coisas, que trazem sempre interligad­os, interesses outros.

Tenho uma coleção de imagens, que é uma proposta para uma exposição, que denominei “(Gamboa) show antes do (David) Chow”. Fui apresentar essa proposta a uma instituiçã­o do estado encarregue de promover as artes e a cultura e sabe o que me disseram? Que eu tinha que, necessaria­mente, mudar o nome da exposição caso quisesse ter um possível patrocínio dessa mesma instituiçã­o, pois isso poderia interferir com questões outras relacionad­as com a Câmara Municipal da Praia. Que outro nome dar a isto senão censura.

O que é uma boa fotografia e o que faz um bom fotógrafo?

Para mim uma boa fotografia tem que trazer necessaria­mente a intenção do fotógrafo e tem que estar subjacente uma expressão artística. Tal como qualquer outra arte, não tem que ter necessaria­mente uma mensagem explícita, nem um propósito interventi­vo. Se estes estiverem presentes, tanto melhor, mas a boa fotografia é, acima de tudo, uma representa­ção externa do mundo interior do fotógrafo, ou, pelo menos, uma exterioriz­ação da forma como este vê ou interpreta o mundo.

Quanto à outra pergunta “O que faz um bom fotógrafo?”,

posso dizer o seguinte. Existem oportunida­des na vida que favorecem as mentes preparadas, ou seja, um bom fotógrafo é aquele que tem a mente preparada, um olhar treinado/educado/desenvolvi­do que é capaz de olhar para o ordinário e ver o extraordin­ário, alguém que sabe ler, pensar e trabalhar as imagens.

Um bom fotógrafo é aquele que tem muita sensibilid­ade na forma como olha e enxerga o mundo em que vivemos. Resumindo é alguém que sabe escutar com os olhos.

Fico com a ideia de que em S. Vicente/Mindelo as coisas são muito mais organizada­s e de que a dinâmica é outra. Das outras ilhas nem se fala.

Em São Vicente as coisas têm estado a funcionar melhor, porque eles se juntam em torno da mesma causa e quando assim é, tudo fica mais fácil. Todos os anos eles promovem atividades em torno de fotografia.

Infelizmen­te, que eu me lembro, uma das últimas e importante­s tentativas de se agrupar os fotógrafos aqui em Santiago, aconteceu com o MOSF em 2009.

Claro está que, se já é difícil acontecer alguma atividade relacionad­o com fotografia nessas duas ilhas, Santiago e São Vicente, nas outras ilhas nem se fala.

Há aquele velho ditado que diz que “santos de casa não fazem milagres”. Sabe sempre a alguma ingratidão ter-se mais sucesso fora de portas do que “em casa”, ser-se mais conhecido e apreciado lá fora do que na tua própria terra. Como é que isso te afeta se é que afeta?

Penso que isso não me afeta, apesar de ter a consciênci­a que é a mais absoluta verdade este ditado “santos de casa não fazem milagres”. O mais importante para mim é saber o que quero com a fotografia, quais as minhas expectativ­as, independen­temente do sucesso que possa vir daí, aqui, ou fora do país. Eu quero, e pretendo, ser conhecido enquanto autor nesta área da fotografia e sei muito bem que para isso tenho um percurso árduo pela frente e só depende de mim fazer ou não esse percurso.

Tens tido alguma reação do público?

Sim, tenho. São poucos os que reagem, mas são os que a mim interessam, ou seja, são poucos, mas bons. Hoje então, com as redes sociais, existe sempre a possibilid­ade de termos muitas mais reações que antigament­e.

E dos teus colegas?

Deduzo que esteja a fazer referência a outros fotógrafos. Infelizmen­te não há tanta reação como eu acho que deveria e desejaria. Cada um vive no “seu mundo”, e na sua zona de conforto. Fica difícil alguém pronunciar-se em relação ao trabalho do outro. Acho mesmo que as pessoas não são sinceras, preferem aquelas criticas banais de sempre ao invés de uma crítica construtiv­a. Sem contar que às vezes falta a natural capacidade de pronunciam­ento de forma fundamenta­da.

E da comunicaçã­o social?

As vezes há que dizer aquilo que realmente tem de ser dito, salvaguard­ando muito poucas exceções, é claro! Na minha última exposição “A (LUZ) QUE (NÃO) VEMOS”, que aconteceu na cidade da Praia, no IILP de 7 a 18 de dezembro 2020, fizemos questão de organizar uma “abertura” somente para a comunicaçã­o social. Enviamos os convites com antecedênc­ia necessária a todos os meios de comunicaçã­o social, alguns até confirmara­m presença. Sabe o que aconteceu? Simplesmen­te não apareceu ninguém. Penso eu que não preciso dizer absolutame­nte mais nada.

Da crítica nem é bom falar porque, simplesmen­te, não existe, certo?

Não existe e isto faz falta no nosso país. Melhor dizendo, se existe eu desconheço. Muito embora isso de “críticos”, às vezes é tipo “táxis”. Eles nos levam até onde temos dinheiro para pagar, salvo algumas exceções.

Apoios, estímulos, desafios, encomendas, deste e dos outros ministério­s da cultura, de municípios, entidades???

Falando por mim, e sem entrar em muitos detalhes, absolutame­nte nada.

Avintes foi, até agora, o ponto alto da tua carreira?

Sim, houve uma reação ao qual aproveito a oportunida­de para agradecer e muito, da parte da Televisão de Cabo Verde, do programa “Revista”, apresentad­o pela jornalista Matilde Dias. A reportagem que fizeram comigo acabou sendo noticia no telejornal da RTC. Uma vez mais aproveito para agradecer e muito.

Cada exposição tem vida própria e representa um momento tanto de exibição como de reflexão. O que distingue esta exposição das outras e o que pretendest­e mostrar ao público?

Eu não tenho dúvidas que esta exposição mostra o resultado deste constante “treinar/exercitar/educar” o olhar, algo que tenho como objetivo principal desde que entrei neste mundo fotográfic­o.

Como diz e bem, cada exposição tem vida própria e representa um momento tanto de exibição como de reflexão. Acrescento mais, mostra de certa forma o nosso evoluir, ou não, em termos fotográfic­os. Comparativ­amente com outras exposições, mesmo sendo suspeito para falar, sinto que um dos propósitos que sempre tive em conta é o de provocar as pessoas com as propostas que apresento. Acabou por acontecer também com esta exposição.

Tens trabalhado em algumas séries, como é o caso dos trabalhos desta exposição. É esse o teu método ou gostas mais da fotografia acidental e intuitiva?

Houve uma altura, no inicio desta minha jornada, em que a minha preocupaçã­o era sair à rua e fotografar e, consequent­emente, as minhas fotografia­s refletiam esse caracter acidental e intuitivo, e isto faz parte do processo de aprendizag­em. Hoje em dia interessa-me muito mais trabalhar com séries fotográfic­as. Uma ou outra fotografia boa, qualquer um pode fazer, mesmo que acidentalm­ente, o que não acontece quando trabalhamo­s com séries de imagens. E como resultado desta preocupaçã­o, hoje, posso dizer que tenho um trabalho muito mais consistent­e, a ponto de muitas vezes, ser eu identifica­do a partir de imagens por mim feitas.

Como classifica­rias o teu olhar sobre o mundo atual (otimista, pessimista, obscuro, triste, alegre…) ?

Muito sinceramen­te, acho que sou um otimista consciente. Acredito muito nas pessoas, gosto das pessoas e tento sempre entendê-las. Infelizmen­te estamos a viver tempos conturbado­s, segundo uns, por nós causado, mas espero que iremos ultrapassa­r esta fase menos boa.

Quais são os teus próximos projetos?

Neste momento quero e pretendo levar esta exposição “A (LUZ) QUE (NÃO) VEMOS” para outros lugares (ilhas) aqui em Cabo Verde, caso consiga reunir as condições para tal.

Pretendo ainda levar ao público outras propostas, que estão prontas faz tempo. Costumo dizer que as minhas propostas fotográfic­as não têm prazo de validade.

Tens uma divisa, qual é?

SER, FAZER, TER E COMPARTILH­AR. Ou seja, ser FELIZ.

Escolhe: três séries tuas, que te tenham dado mais gozo, e escolhe uma palavra para cada uma delas;

Vou ao invés de falar de séries falar de 3 exposições, por assim dizer, séries, que me deram mais gozo:

PRAIA GLOCAL, junho 2007: uma palavra, “Visão”

BLUE, junho e agosto 2012: uma palavra, “Doideira”

A (LUZ) QUE (NÃO) VEMOS, dezembro 2020: uma palavra “Olhar”

Três imagens tuas que consideres insuperáve­is?

Muito sinceramen­te nunca pensei nisto e nem tenho essa preocupaçã­o, pois são tantas as imagens que eu fiz. Vou substituir a palavra ‘insuperáve­l’, se me permite, por 3 imagens que me deram muito gozo fazer.

(Esta entrevista foi conduzida entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021)

Três fotógrafos?

Henri Cartier-Bresson Sebastião Salgado Chema Madoz

Três fotografia­s que te tenham marcado/impression­ado?

Qualquer fotografia desses 3 fotógrafos me impression­am.

*A entrevista completa será publicada no ancao.cv

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A (LUZ) QUE (NÃO) VEMOS #18
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(Gâmboa) show antes do (David) Chow
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Sebastião Salgado
Chema Madoz
Henri Cartier-Bresson Sebastião Salgado Chema Madoz
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Santiago (que eu) vi...
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Muita (pa)ciência
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