“A fotografia enquanto arte é para todos, mas ao mesmo tempo ela não está ao alcance de todos”
A arte fotográfica cabo-verdiana é o segredo mais bem guardado do nosso mundo artístico. Não é por acaso. Isto resulta de ela ser a disciplina artística mais ignorada e a mais desprezada de todas. Hélder Paz Monteiro é um dos segredos mais valiosos que esse segredo publicamente “esconde”. Esta entrevista é um contributo herético contra este status quo. À pergunta, “Quem é Hélder Paz Monteiro?” como é que responderias, em breves palavras?
Hélder Paz Monteiro, é pai do Heller e da Hellen, arquiteto e urbanista de formação e fotógrafo de coração! Fotografo para educar e desenvolver o olhar, ou seja, fotografo para aprender. Sou uma pessoa que adora ver o mundo através de um retângulo.
O retângulo fotográfico não é demasiado pequeno ou cabe lá o mundo inteiro?
Muito pelo contrário, dentro do retângulo cabe muita coisa. O mais difícil é saber o que devemos deixar fora, pois na maioria das vezes é o que deixamos fora que define os enquadramentos excecionais, fora do comum, onde as mensagens são mais fáceis de serem percebidas/entendidas.
Lembras-te de quando decidiste que a fotografia era a tua praia? Fala-nos desse momento inaugural, desse despertar para a fotografia. Como foi?
Para falar verdade, acho que não aconteceu nenhum momento inaugural que me fez pensar que a fotografia era a minha praia. Lembro-me sim, de iniciar neste mundo da fotografia durante o período que estudava arquitetura e urbanismo no Rio de Janeiro.
Estudaste fotografia ou és autodidata?
Gostaria de ter estudado fotografia, mas sou autodidata.
Qual a relação entre o fotógrafo e o arquiteto. É pacífica, natural, cúmplice?
Não é a primeira vez que me fazem essa pergunta e penso que vou responder da mesma forma. A relação é muito pacífica, natural e existe, sim, uma cumplicidade. Mas uma coisa é certa, nem o arquiteto/urbanista atrapalha o fotógrafo, nem o contrário acontece.
Num país onde imperam as desigualdades sociais, do ponto de vista urbano é o caos que se vê e arquitetonicamente são raríssimas as construções que merecem atenção, tudo isto seria matéria de sobra para arquitetos, urbanistas, paisagistas, engenheiros, artistas, intervirem ativamente. No entanto parece que não se passa nada. Nem críticas, nem debates, nem reflexões, nem denúncias. Como é que o técnico e o artista vêm este estado de coisas?
Na minha opinião, em determinada altura já houve criticas, debates, reflexões e denuncias, mas talvez não foram feitas por quem de direito e com a determinação que a situação realmente exige ou exigia.
Vivemos numa sociedade onde praticamente tudo é politizado. Reina a “mentalidade da boiada”, ou seja, ninguém está a fim de traçar os seus próprios rumos ou mesmo contestar os caminhos que alguns decidem
que devemos seguir, basicamente pelos mesmos motivos: casa e alimentação. Ninguém quer perder a sua “casota e o seu ossinho” falando dessas coisas, que trazem sempre interligados, interesses outros.
Tenho uma coleção de imagens, que é uma proposta para uma exposição, que denominei “(Gamboa) show antes do (David) Chow”. Fui apresentar essa proposta a uma instituição do estado encarregue de promover as artes e a cultura e sabe o que me disseram? Que eu tinha que, necessariamente, mudar o nome da exposição caso quisesse ter um possível patrocínio dessa mesma instituição, pois isso poderia interferir com questões outras relacionadas com a Câmara Municipal da Praia. Que outro nome dar a isto senão censura.
O que é uma boa fotografia e o que faz um bom fotógrafo?
Para mim uma boa fotografia tem que trazer necessariamente a intenção do fotógrafo e tem que estar subjacente uma expressão artística. Tal como qualquer outra arte, não tem que ter necessariamente uma mensagem explícita, nem um propósito interventivo. Se estes estiverem presentes, tanto melhor, mas a boa fotografia é, acima de tudo, uma representação externa do mundo interior do fotógrafo, ou, pelo menos, uma exteriorização da forma como este vê ou interpreta o mundo.
Quanto à outra pergunta “O que faz um bom fotógrafo?”,
posso dizer o seguinte. Existem oportunidades na vida que favorecem as mentes preparadas, ou seja, um bom fotógrafo é aquele que tem a mente preparada, um olhar treinado/educado/desenvolvido que é capaz de olhar para o ordinário e ver o extraordinário, alguém que sabe ler, pensar e trabalhar as imagens.
Um bom fotógrafo é aquele que tem muita sensibilidade na forma como olha e enxerga o mundo em que vivemos. Resumindo é alguém que sabe escutar com os olhos.
Fico com a ideia de que em S. Vicente/Mindelo as coisas são muito mais organizadas e de que a dinâmica é outra. Das outras ilhas nem se fala.
Em São Vicente as coisas têm estado a funcionar melhor, porque eles se juntam em torno da mesma causa e quando assim é, tudo fica mais fácil. Todos os anos eles promovem atividades em torno de fotografia.
Infelizmente, que eu me lembro, uma das últimas e importantes tentativas de se agrupar os fotógrafos aqui em Santiago, aconteceu com o MOSF em 2009.
Claro está que, se já é difícil acontecer alguma atividade relacionado com fotografia nessas duas ilhas, Santiago e São Vicente, nas outras ilhas nem se fala.
Há aquele velho ditado que diz que “santos de casa não fazem milagres”. Sabe sempre a alguma ingratidão ter-se mais sucesso fora de portas do que “em casa”, ser-se mais conhecido e apreciado lá fora do que na tua própria terra. Como é que isso te afeta se é que afeta?
Penso que isso não me afeta, apesar de ter a consciência que é a mais absoluta verdade este ditado “santos de casa não fazem milagres”. O mais importante para mim é saber o que quero com a fotografia, quais as minhas expectativas, independentemente do sucesso que possa vir daí, aqui, ou fora do país. Eu quero, e pretendo, ser conhecido enquanto autor nesta área da fotografia e sei muito bem que para isso tenho um percurso árduo pela frente e só depende de mim fazer ou não esse percurso.
Tens tido alguma reação do público?
Sim, tenho. São poucos os que reagem, mas são os que a mim interessam, ou seja, são poucos, mas bons. Hoje então, com as redes sociais, existe sempre a possibilidade de termos muitas mais reações que antigamente.
E dos teus colegas?
Deduzo que esteja a fazer referência a outros fotógrafos. Infelizmente não há tanta reação como eu acho que deveria e desejaria. Cada um vive no “seu mundo”, e na sua zona de conforto. Fica difícil alguém pronunciar-se em relação ao trabalho do outro. Acho mesmo que as pessoas não são sinceras, preferem aquelas criticas banais de sempre ao invés de uma crítica construtiva. Sem contar que às vezes falta a natural capacidade de pronunciamento de forma fundamentada.
E da comunicação social?
As vezes há que dizer aquilo que realmente tem de ser dito, salvaguardando muito poucas exceções, é claro! Na minha última exposição “A (LUZ) QUE (NÃO) VEMOS”, que aconteceu na cidade da Praia, no IILP de 7 a 18 de dezembro 2020, fizemos questão de organizar uma “abertura” somente para a comunicação social. Enviamos os convites com antecedência necessária a todos os meios de comunicação social, alguns até confirmaram presença. Sabe o que aconteceu? Simplesmente não apareceu ninguém. Penso eu que não preciso dizer absolutamente mais nada.
Da crítica nem é bom falar porque, simplesmente, não existe, certo?
Não existe e isto faz falta no nosso país. Melhor dizendo, se existe eu desconheço. Muito embora isso de “críticos”, às vezes é tipo “táxis”. Eles nos levam até onde temos dinheiro para pagar, salvo algumas exceções.
Apoios, estímulos, desafios, encomendas, deste e dos outros ministérios da cultura, de municípios, entidades???
Falando por mim, e sem entrar em muitos detalhes, absolutamente nada.
Avintes foi, até agora, o ponto alto da tua carreira?
Sim, houve uma reação ao qual aproveito a oportunidade para agradecer e muito, da parte da Televisão de Cabo Verde, do programa “Revista”, apresentado pela jornalista Matilde Dias. A reportagem que fizeram comigo acabou sendo noticia no telejornal da RTC. Uma vez mais aproveito para agradecer e muito.
Cada exposição tem vida própria e representa um momento tanto de exibição como de reflexão. O que distingue esta exposição das outras e o que pretendeste mostrar ao público?
Eu não tenho dúvidas que esta exposição mostra o resultado deste constante “treinar/exercitar/educar” o olhar, algo que tenho como objetivo principal desde que entrei neste mundo fotográfico.
Como diz e bem, cada exposição tem vida própria e representa um momento tanto de exibição como de reflexão. Acrescento mais, mostra de certa forma o nosso evoluir, ou não, em termos fotográficos. Comparativamente com outras exposições, mesmo sendo suspeito para falar, sinto que um dos propósitos que sempre tive em conta é o de provocar as pessoas com as propostas que apresento. Acabou por acontecer também com esta exposição.
Tens trabalhado em algumas séries, como é o caso dos trabalhos desta exposição. É esse o teu método ou gostas mais da fotografia acidental e intuitiva?
Houve uma altura, no inicio desta minha jornada, em que a minha preocupação era sair à rua e fotografar e, consequentemente, as minhas fotografias refletiam esse caracter acidental e intuitivo, e isto faz parte do processo de aprendizagem. Hoje em dia interessa-me muito mais trabalhar com séries fotográficas. Uma ou outra fotografia boa, qualquer um pode fazer, mesmo que acidentalmente, o que não acontece quando trabalhamos com séries de imagens. E como resultado desta preocupação, hoje, posso dizer que tenho um trabalho muito mais consistente, a ponto de muitas vezes, ser eu identificado a partir de imagens por mim feitas.
Como classificarias o teu olhar sobre o mundo atual (otimista, pessimista, obscuro, triste, alegre…) ?
Muito sinceramente, acho que sou um otimista consciente. Acredito muito nas pessoas, gosto das pessoas e tento sempre entendê-las. Infelizmente estamos a viver tempos conturbados, segundo uns, por nós causado, mas espero que iremos ultrapassar esta fase menos boa.
Quais são os teus próximos projetos?
Neste momento quero e pretendo levar esta exposição “A (LUZ) QUE (NÃO) VEMOS” para outros lugares (ilhas) aqui em Cabo Verde, caso consiga reunir as condições para tal.
Pretendo ainda levar ao público outras propostas, que estão prontas faz tempo. Costumo dizer que as minhas propostas fotográficas não têm prazo de validade.
Tens uma divisa, qual é?
SER, FAZER, TER E COMPARTILHAR. Ou seja, ser FELIZ.
Escolhe: três séries tuas, que te tenham dado mais gozo, e escolhe uma palavra para cada uma delas;
Vou ao invés de falar de séries falar de 3 exposições, por assim dizer, séries, que me deram mais gozo:
PRAIA GLOCAL, junho 2007: uma palavra, “Visão”
BLUE, junho e agosto 2012: uma palavra, “Doideira”
A (LUZ) QUE (NÃO) VEMOS, dezembro 2020: uma palavra “Olhar”
Três imagens tuas que consideres insuperáveis?
Muito sinceramente nunca pensei nisto e nem tenho essa preocupação, pois são tantas as imagens que eu fiz. Vou substituir a palavra ‘insuperável’, se me permite, por 3 imagens que me deram muito gozo fazer.
(Esta entrevista foi conduzida entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021)
Três fotógrafos?
Henri Cartier-Bresson Sebastião Salgado Chema Madoz
Três fotografias que te tenham marcado/impressionado?
Qualquer fotografia desses 3 fotógrafos me impressionam.
*A entrevista completa será publicada no ancao.cv