Décimo Aniversário da entrada em vigor da lei de Violência Baseada no Género (VBG): - Ganhos, desafios e estratégias.
“A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota”. Jean-Paul Sartre
A questão de fundo, passa por uma mudança de mentalidade e de atitude a ponto de desconstruirmos e reconstruirmos a conceção de masculinidade. Isso tem de passar pelo reforço de ações de formação e informação, criação e implementação de sistemas junto às instituições públicas e privadas, mas a cima de tudo, implica linhas de ação mútua com a sociedade civil para que a informação chegue a jusante, isto é, na comunidade
Comemorou-se na passada sexta-feira, 26, o décimo aniversário de entrada em vigor da lei de VBG. O evento realizou-se no Auditório da Reitoria da UNICV, Plateau. Foi organizado pela Associação Cabo-verdiana de Luta Contra a Violência Baseada no Género em parceria com a Universidade de Cabo Verde. Numa conferência alusiva à data, conferencistas de renome nacional e internacional - expertise na matéria - passaram em revista os 10 anos de vigência da lei de VBG. Além disso, foram rubricados protocolos de cooperação. A Associação está de parabéns e a luta contra a violência saiu reforçada! Bem-haja!
Efetivamente, o diploma que regula a VBG foi aprovado pela Lei nº 84/VII/2011, publicada na I Série, B.O. nº 2, de 10 de janeiro e regulamentada pelo Decreto-lei nº 8/2015, de 27 de janeiro. Entrou em vigor no dia 10 de março, conforme prevê o artigo 44.º do diploma sub judice “A presente lei entra em vigor sessenta dias após a sua publicação”. Estive presente no evento e foi um momento de partilha e muito aprendizado.
Resumidamente diria que a lei, como sempre, tem sido fruto de um intenso labor jurídico, científico, político e administrativo desenvolvida por uma equipa multidisciplinar composta por parlamentares, consultores nacionais e estrangeiros, ativistas sociais de entre outras… Estudos apontam que se bebeu da experiência na Lei Maria da Penha de 2004 e a lei espanhola de 2006, que criam mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar em conformidade com a Constituição e os tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro e espanhol, respetivamente, servindo de elementos históricos e interpretativos de feitura. No plenário, o projeto de lei, foi discutido e aprovado a 8 de dezembro de 2010; promulgado e publicado entrou em vigorar na ordem jurídica cabo-verdiana. Uma lei magnífica, não só pela sua natureza sui generis e de conseguir de, per si, tutelar condutas a 3P (Prevenção, Participação e Promoção) mas acima de tudo, por o legislador, com sapiência, ter concretizado aspetos de género, de forma tão peculiar sem tocar no núcleo essencial do direito fundamental tutelado. Afastou-se qualquer hipótese de inconstitucionalidade como vozes fizeram soar na altura. É de registar isso! Dai sua magnitude! Porventura uma lei perfeita?! Obviamente que não!!! De tudo, importante e necessária no papel que tem tido no combate à violência de género.
10 anos passados sobre a vigência da lei na ordem jurídica, Cabo Verde registou ganhos incomensuráveis, sem olvidar do muito por fazer e conseguir. É o óbvio! A educação de e para igualdade trazida à sociedade civil na questão de género e os programas específicos implantados, destacam-se. Os sistemas de proteção, de prevenção e de promoção de igualdade de género junto às instituições públicas e privadas funcionando como canais de denuncias e as políticas públicas implementadas em prol da VBG, sobressaem-se. A formação especializada e ministrada aos Stakeholders no combate à dicotomia de género, o reforço da legislação e a tipificação do crime de VBG como crime de natureza pública e de tratamento prioritário, são aspetos incontornáveis. No entanto, Cabo Verde pode vangloriar-se pela conquista da igualdade e equidade de género, porém a guerra está longe de ser ganha e muitas batalhas por travar. Enquanto existem mulheres e meninas a sofrerem desigualdades; enquanto existem raparigas e moças violentadas sexualmente e não só; enquanto assistimos casos de discriminação de género e enquanto as mulheres têm de lutar o triplo para empoderar pessoal e profissionalmente, temos de convergir ideias, unir esforços e travar lutas contra essa causa que é uma questão de saúde pública. A união faz a força! A VBG é hoje, e mais do que nunca, uma realidade face às notícias de feminicídios e crimes hediondos em quase todas as ilhas e na nossa diáspora. Registo satisfatoriamente o papel e forte engajamento das autoridades nacionais, da sociedade civil e dos parceiros internacionais em prol dessa causa.
Por outro lado, a discriminação de vítimas de VBG atiça indelével no contexto sociopolítico nacional. As autoridades têm papeis basilares na implementação de políticas públicas e ações que visam a assistência, o acompanhamento e a proteção da reserva da vida privada de vítimas de VBG para que os crimes fossem denunciados, e reduzir, assim, as tais “zonas de sombra”. Urge trabalhar o agressor, reduzir a reincidência e ressocializar, através de políticas sociais básicas. Um grande desafio a vencer nessa luta é a denúncia de crimes por parte de autoridades públicas, num dever jurídico processual legitimado, ao tomarem conhecimento de casos de VBG. Refiro-me, in concretu, aos serviços de saúde, sem prejuízo de demais outros. Por seu turno, a polícia tem de reforçar o seu papel na prevenção e preparação técnica de seu pessoal e do gabinete de atendimento às vítimas de VBG. Melhorar sua capacidade de alcance no enquadramento de condutas que tipificam a natureza de crimes de VBG, torna-se premente, não pelo facto de ser tarefa da polícia a qualificação de crimes, mas para perceber melhor o contexto jurídico-social e gerir espectativas versus procedimentos a posteriori, junto à pessoa da vítima. Registo com alguma preocupação uma certa insensibilidade no tratamento das vítimas e casos de VBG por parte daqueles que lidam com essa questão, a todos os níveis. Repudio veementemente a conceção de masculinidade e certos estereótipos que imperam na nossa cultura. Ciente é o facto da tutela penal do crime de VBG que passou sua tipificação da lei de VBG para o Código Penal revisto, a vigorar a partir de maio, com a revogação dos artigos 23.º a 27.º. Cabe o desafiante trabalho em harmonizar tais alterações a ponto de ultrapassar incongruências que podem delas advir, face à materialização do CP à luz do direito adjetivo processual. Sinto um esvaziar para não dizer o exterminar paulatino da lei de VBG. Pena! Cabe ao tempo desvendar.
Portanto, temos de traçar estratégias para fazer face à VBG. A questão de fundo, passa por uma mudança de mentalidade e de atitude a ponto de desconstruirmos e reconstruirmos a conceção de masculinidade. Isso tem de passar pelo reforço de ações de formação e informação, criação e implementação de sistemas junto às instituições públicas e privadas, mas a cima de tudo, implica linhas de ação mútua com a sociedade civil para que a informação chegue a jusante, isto é, na comunidade. De igual modo, urge encontrar alternativas fiáveis que permitem mais abertura para que homens venham a trabalhar a questão de género, quebrando estereótipos de que “trabalhar o género é trabalhar mulheres”. Se conseguirmos levar avante essas duas estratégias, acredito que teremos uma sociedade mais sadia em questão de género, mais igualitária e a dar passos significativos no combate à desigualdade e materializar, a breve trecho, o objetivo 5 dos ODS para a agenda 20-30 e contribuir para um Cabo Verde mais desenvolvido e próspero como todos almejam.