Rap enquanto plataforma política: Wise e 1 voz riba silensiu
Jean Marc-Ela, sociólogo camaronês, escreveu nos idos anos de 1990 que devido ao sentimento de desespero de muitos jovens africanos, o risco de desenvolverem uma cultura de violência e participarem em motins urbanos era bastante elevado. Igualmente, afirmou que, à la limite, muitos desses jovens, ao invés de pegarem em pedras, armaram-se com microfones e expressaram agressivamente a sua revolta. Por outras palavras, Mamadou Diouf, historiador senegalês, afirmou que como resposta às políticas de ajustamento estrutural, os jovens africanos inventaram espaços marginais fora das lógicas de controlo institucional, regulamentos comunitários e de vigilância estatal, proporcionando simultaneamente geografias de delinquências e resistências.
Em Cabo Verde, sobretudo nos maiores centros urbanos, com maior destaque nas cidades da Praia e do Mindelo, pude observar esta dinâmica. Gangues de rua e grupos de rap a funcionar como formas de protesto e espaços de inclusão comunitária e urbana. Cingindo-me ao universo lírico, diria que os processos de mercantilização, institucionalização e higienização do hip-hop, iniciados na primeira metade da década de 2010, de certo modo vieram suavizar e modificar uma parte do cenário rap nacional, ao ponto de fragmentar uma realidade já por si só fragmentada, entre o chamado rap positivo e negativo. Diga-se de passagem, o mesmo processo verificado em Portugal após o “Programa Escolhas”, medida política vendida a Cabo Verde nesse período, ou pelo menos uma parte dela, carregando o nome “Bo Ki Ta Disidi”.
Esta contextualização serve para pontuar a pertinência de 1 voz riba silensiu de Wise. Não que ele seja a primeira pessoa a fazê-la, visto muitos outros o têm feito de forma insurgente nos últimos anos, como por exemplo Gol Waine no Mindelo, Dogg Son na Praia ou PCC na Assomada, só para citar alguns, mas pela repercussão mediática que teve ao atacar diretamente e sem rodeios alguns nomes empoderados do atual cenário rap cabo-verdiano. A importância política e sociológica dessa música foi ter evidenciado a principal função do rap: espelhar as contradições sociais e tornar público os discursos infrapolíticos.
Torna-se, portanto, evidente que a potência narrativa que Wise colocou nela incorpora o discurso de muitos cabo-verdianos, como se pode constatar pelo resultado de todas as sondagens de opinião divulgadas nas últimas décadas. Um apelo à classe político-partidária, recorrendo à política do desespero, para a necessidade de pôr em prática uma política de dignidade em substituição da política de inimizade reproduzida. Entretanto, como é percetível, a passagem de uma para a outra só será possível através de uma política de indignação, este sim o verdadeiro papel do rap, percebido como elemento oral de uma cultura e estética urbana transgressora.
Ainda assim, à boa maneira cabo-verdiana, amplificada agora pelas redes sociais, não se tem centrado no essencial da mensagem: por um lado, o desleixo, a colonização e a instrumentalização político-partidário, a transformação da disputa política num espetáculo irresponsável e deprimente, a violência política e a segregação dos sonhos e das oportunidades. Por outro lado, falando diretamente à dita sociedade civil, que também o rap faz parte, a crise identitária e a mercenarização social e política, ambos obstáculos para a construção de uma política que se quer e se espera emancipadora.
A demissão política desta dita sociedade emana de uma política de higienização social continuada no período pós-independência e reproduzida por certas fações do movimento rap cabo-verdiano e a redefinição que se fez do termo respeito. Não negando a ideia de que a liberdade termina quando invade a liberdade do outro e que embora se diga o contrário, ainda há respeito em muitas relações sociais no país, o que tenho notado é que em alguns contextos o termo confunde-se com reverência. Partindo desta ótica, em muitos casos a exigência do respeito mais não é de que uma tentativa dissimulada de hierarquização e legitimação de lógicas de obediência e silenciamento social, sobretudo de alguns grupos em situação de precariedade e desespero.
Há umas semanas atrás, uma jovem ativista disse algo certeiro em relação a isso numa reunião da rede das associações comunitárias e movimentos sociais da Praia: “ao cidadão, sobretudo jovem, se pede que tenha respeito, deveres e obrigações, mas se esquece constantemente que ele é também um sujeito de direitos. O político dito profissional e os agentes institucionais, ao contrário, tendem a colocar em primeiro lugar os seus direitos, mas demitem-se dos seus deveres, obrigações e respeito pelos outros”. Precisamente estes que, no papel de empreendedores da moral, ditam quem é cumpridor das regras e quem é desviante. Ou dita por outras palavras, quem é respeitoso e quem não o é, na velha lógica colonial dicotómica entre civilizados e selvagens.
A narrativa de Wise e de muitos outros rappers invisibilizados pela sua estética agressiva ou simplesmente desconhecidos do cenário mainstream são normalmente tidos como fazendo parte desta segunda categoria. Contudo, são estes que tem clamado pela essência irreverente do rap enquanto género cultural e musical que toca frontalmente e de forma bastante crua e assertiva assuntos sociais e políticos fraturantes e apelado para a necessidade da sua utilização enquanto mecanismo de rompimento com formas de violência simbólica emergentes. Não que os visados não o têm feito, embora de forma conceptualmente e esteticamente mais elaborada, seguindo os parâmetros da indústria musical que hoje fazem parte com bastante mérito.
Polémicas à parte, entendo que o pertinente a salientar é que 1 voz riba silensiu deve ser encarada como uma transposição artística de experiências individuais e/ou coletivas, visto fornecer o contexto dentro do qual as representações sociais se desenvolvem. De igual modo, porque a relação substantiva da vida pública, sobretudo na esfera política, embora observada da diáspora, constitui-se no elemento central na sua construção.
Enquanto sujeito social e político, Wise fez a sua declaração e promete não ficar por aqui. Enquanto fenómeno identitário, pós e contra-colonial, transnacional, localizado, transcultural, transurbano, político e pan-africano, o rap que ele apresenta simboliza a fala do subalterno insurgente, assim como revela o mundo de baixo. Enquanto fenómeno social e sociológico, representa uma das formas de protesto social, político e juvenil que brotou nos centros urbanos africanos nos anos de 1990 e que Jean Marc-Ela apelou para que os pesquisadores das ciências sociais tivessem em atenção, caso pretendessem romper com os formalismos científicos e burocráticos coloniais ainda reproduzidos em grande parte dos contextos em África.
Em Cabo Verde, sobretudo nos maiores centros urbanos, com maior destaque nas cidades da Praia e do Mindelo, pude observar esta dinâmica. Gangues de rua e grupos de rap a funcionar como formas de protesto e espaços de inclusão comunitária e urbana