França admite culpas no genocídio do Ruanda
O Estado francês admitiu na semana passada que “fechou os olhos” durante o conflito do Ruanda, que acabou por dizimar mais de 800 mil mortos nesse país africano. Solicitada pelo próprio governo francês, a investigação veio confirmar o papel, nalguns casos por omissão, da França no conflito que opôs os hutus aos tutsis. O documento aponta para a responsabilidade política do então presidente François Mitterrand.
Agora é oficial. No mínimo, a França “fechou” os olhos diante dos eventos que culminaram no genocídio de Ruanda em 1994 e, com isso, teria “uma responsabilidade pesada e avassaladora” no massacre. Esta é a conclusão do relatório de uma investigação, solicitada há dois anos pelo governo francês, divulgado na sexta-feira, 26 de Março, em Paris.
Ao fechar os olhos para o que se estava a passar no terreno, em nome dos seus interesses próprios, o Estado francês permitiu que os hutus perpetrassem um dos maiores genocídios de que se tem memória em África contra os tutsis.
Conduzido por uma comissão de especialistas, o relatório divulgado no passado fim de semana, em Paris, indica uma série de falhas graves, omissões e imprudências por parte do governo francês da época, que foi incapaz de perceber os preparativos que resultaram no genocídio de 800 mil pessoas, principalmente da minoria tutsis, entre Abril e Julho de 1994.
O Ruanda é uma antiga colónia alemã, que depois da Segunda Guerra Mundial passou para a gestão da ONU, tendo a
Bélgica como autoridade administrativa. Na busca da sua penetração nessa parte do continente, a França de François Mitterrand aliou-se ao presidente Juvenal Habyarimana, contra outras forças da oposição.
A 6 de Abril de 1994, Habyarimana e o seu homologo do Burundi, Cyprien Ntaryamira, foram assassinados quando o avião em que viajavam foi atingido por fogo no momento em que aterrava em Kigali, capital do Ruanda. Nos três meses seguintes, militares e milicianos mataram cerca de 800 mil tutsis e hutus moderados, naqui
lo que ficou conhecido como o Genocídio do Ruanda.
Entretanto, na guerra que se seguiu a Frente Patriótica Ruandesa (RPF), liderada por Paul Kagame, apoiado pelo Uganda, ocupou várias partes do país e, em 4 de Julho entrou vencedor na capital Kigali, enquanto tropas francesas de “manutenção da paz” ocupavam o sudoeste, durante a “Opération Turquoise”.
Paul Kagame ficou como vice-presidente e o pastor Bizimungu como presidente mas, em 2000, os dois entraram também em conflito. Bizimungu renunciou à presidência e Kagame ficou como presidente. Em 2003, Kagame foi finalmente eleito para o cargo, no que foram consideradas as primeiras eleições democráticas depois do Genocídio. Entretanto, cerca de 2 milhões de hutus refugiaram-se na República Democrática do Congo, com medo de retaliação pelos tutsis.
A principal conclusão do inquérito indica o longo envolvimento do Estado francês com “um regime que encorajava massacres étnicos, tornando-se cega diante da preparação do genocídio”. O relatório afirma que Paris aceitou plenamente a lógica estabelecida pelo então governo de Ruanda, presidido por Habyarimana, de que os rebeldes tutsis seriam um perigo real para o regime autoritário ruandês.
O texto também aponta a responsabilidade do então presidente François Mitterrand, amigo íntimo de Habyarimana, assassinado em 6 de Abril de 1994. Esta morte desencadeou o brutal genocídio que durou 100 dias. “Essa amizade explica a extensa implicação de todos os serviços do Palácio do Eliseu” na política em relação à Ruanda, diz o relatório.
Cumplicidade descartada
A comissão presidida pelo historiador Vicent Duclert, porém, destacou que não foi encontrado “nenhum documento” que mostre “a cúmplice da França” no genocídio. O especialista, no entanto, afirmou que Paris “tem uma responsabilidade inegável” no acontecido por ter apoiado um governo cada vez mais extremista.
Duclert apontou ainda o “fracasso” da política externa francesa, que se concentrou em assegurar “a estabilidade do Estado ruandês”. O historiador afirmou ainda que Mitterrand, em vez de tentar acabar com as políticas étnicas contra a minoria tutsi, apoiou Habyarimana que se aproximava cada vez mais de extremistas da sua etnia, hutu. “Nada foi previsto e foi insistido numa lógica neocolonialista”, acrescenta.
Com quase mil páginas, o relatório analisou documentos diplomáticos e notas confidenciais. Além da relação pessoal entre Mitterrand e Habyarimana, a investigação revelou ainda que havia uma obsessão em fazer de Ruanda um território de defesa da Francofonia, o que justificou “a entrega de milhares de armas e munições ao regime de Habyarimana, assim como a participação de militares franceses no treinamento das Forças Armadas ruandesas”.
O relatório mostra que o governo francês ignorou alertas de ONGs, diplomatas e do serviço secreto sobre o avanço do extremismo no Ruanda e o risco de um genocídio contra tutsis. Além disso, destaca que, quando o massacre começou, Paris demorou a romper com o regime ruandês e também se recusou posteriormente a prender os mentores do genocídio, que fugiram para zonas de controle francesa.
Passo importante
Em comunicado, o presidente Emmanuel Macron afirmou que espera que o relatório possa ajudar Paris a se reaproximar do Ruanda. “Ao mesmo tempo, a França continuará seus esforços na luta contra a impunidade dos responsáveis pelo genocídio”, acrescentou.
Criminosos
Vários suspeitos de participarem do massacre fugiram para a França, Bélgica, EUA e outros países. Poucos deles foram a julgamento, nomeadamente, pelo TPI, Tribunal Penal Internacional. Ainda recentemente foi preso, em França, o empresário Félicien Kabuga, que estava foragido há 26 anos, por destacado papel no genocídio. O comunicado da polícia francesa, aquando da sua detenção, descreveu-o como “um dos fugitivos mais procurados do mundo”.
Já o Ruanda afirmou que o relatório é “um passo importante para esclarecer o papel da França” no genocídio, conforme vinha exigindo o presidente Paul Kagame. Hoje, o pequeno país do leste africano é elogiado como exemplo de estabilidade. O país tem crescido economicamente de forma firme e sustentada.
Esse êxito é atribuído principalmente à liderança firme de Paul Paul Kagame. “Ele fez um excelente trabalho para promover o desenvolvimento do país e atrair investidores internacionais”, afirma Patrick Hajayandi, do Instituto Sul-Africano de Justiça e Reconciliação (IJR).
Muitos observadores temem que as tensões na região possam se transformar em violência aberta. Mas é improvável que o Ocidente venha a fazer mais pressão sobre o governo de Kagame para que este normalize seu relacionamento com os vizinhos. “Ruanda ainda depende muito de ajuda financeira, mas Kagame explora com maestria as fraquezas do Ocidente”, aponta o analista Phil Clark.
Os governos dos países ricos teriam que dar explicações aos seus cidadãos por que teriam a obrigação de ajudar os países pobres: “Os doadores internacionais estão num verdadeiro dilema. Os governos, que querem usar sua ajuda como uma forma suave de pressão, aponta Ruanda como um exemplo de mudança positiva e que pode ter sucesso através da ajuda ocidental”. Retratar Ruanda como o vilão da história, afirma, iria contra essa estratégia.