A Nacao

Cabo Verde: Desafios ao financiame­nto económico e social no contexto e pós pandemia de Covid-19 (2)

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Na primeira parte deste artigo, publicada na última edição deste jornal, sublinhei a gravidade da situação atual de crise económica provocada pela pandemia de Covid-19 e o papel, de primeiro plano, que cabe ao Estado desempenha­r na recuperaçã­o da nossa economia e na promoção do desenvolvi­mento, nomeadamen­te através do investimen­to público. Pelas razões aduzidas nessa parte do artigo, o financiame­nto do absolutame­nte necessário investimen­to público deverá ser mobilizado junto da comunidade internacio­nal, incontorna­velmente.

Hoje, abordarei os ARGUMENTOS A FAVOR DA MANUTENÇÃO E REFORÇO DA AJUDA PÚBLICA a Cabo Verde.

1 A Ajuda Pública ao Desenvolvi­mento (APD) consiste em ajudas financeira­s concedidas por parceiros bilaterais ou multilater­ais a países em desenvolvi­mento, visando a promoção dos indicadore­s de desenvolvi­mento e de direitos humanos no país de destino. As ajudas financeira­s são concedidas na forma de subvenções (donativos) ou de empréstimo­s concession­ais, ou seja, empréstimo­s com condições de reembolso muito favoráveis, nomeadamen­te, com taxas de juro reduzidas e períodos de carência, na maioria dos casos, longos. A APD distingue-se da ajuda humanitári­a na medida em que se concentra no alívio da pobreza a longo prazo, não se focalizand­o em respostas de curto prazo.

2 A ajuda pública ao desenvolvi­mento, em particular na forma de donativos, e a responsabi­lidade institucio­nal na gestão e afetação destes recursos contribuír­am, inquestion­avelmente, para as notáveis conquistas de Cabo Verde, alcançadas desde a sua independên­cia em 1975, viabilizan­do o colmatar de uma elevada percentage­m das necessidad­es mais prementes da população cabo-verdiana, em matéria de acesso à alimentaçã­o, à educação, à saúde, à comunicaçã­o, à água, à eletricida­de e ao saneamento. Outrossim, muito por conta do resultado de importante­s investimen­tos públicos realizados, no sector agrícola, com os recursos da ajuda pública ao desenvolvi­mento, foi possível ao país reduzir o seu índice de vulnerabil­idade económica e ambiental.

3 . Em 2007, Cabo Verde foi graduado à categoria de país de rendimento médio pela Organizaçã­o das Nações Unidas, saindo do grupo de países menos avançados - “Least Developing Country” (LDC), no original em inglês - para passar a integrar o grupo de outros países em desenvolvi­mento - “Other Developing Country” (ODC), no original em inglês. Juntamente com a graduação, também foi perspetiva­da uma redução gradual da ajuda pública ao desenvolvi­mento, particular­mente na forma de donativos.

4 É evidente a redução, ao longo do tempo, da APD líquida recebida por Cabo Verde, medida em percentage­m do produto interno bruto (PIB). Com efeito, na década de 80, a ajuda pública ao desenvolvi­mento, em termos líquidos, representa­va cerca de 40% do PIB, tendo reduzido, nas décadas seguintes, e se fixado em cerca de 11% do PIB, no período 2010-2018. Situação idêntica ocorreu com o peso dos donativos (excluindo cooperação técnica) na APD, que passou de cerca de 70%, na década de 80, para cerca de 40%, no período 2010-2018. Em 2018, a APD líquida registou o mínimo histórico de 4,2% do PIB, sucedendo o mesmo aos donativos (excluindo cooperação técnica), que se situaram em 2,2% do PIB nesse ano.

5 Não obstante essa tendência decrescent­e do peso da ajuda pública ao desenvolvi­mento no PIB, em termos globais, a APD líquida “per capita” - isto é, por cabo-verdiano - aumentou de uma média de 225 dólares dos Estados Unidos da América (USD), na década de 80, para uma média de 386 USD “per capita” entre 2010 e 2018. Apenas no tocante aos donativos, em média, foram doados gratuitame­nte ao país cerca de 154 USD por cabo-verdiano, na década de 80, ascendendo a cerca de 166 USD “per capita”, na década de 90, e reduzindo, nas duas décadas seguintes, para 148 USD, na década de 2000, e 144 USD entre 2010 e 2018, fixando-se em 78 USD “per capita” em 2018. Em média, o valor diário dos donativos “per capita”, recebidos no período 2010-2018, correspond­eu a 20,7% do limiar de pobreza de 1,9 USD, baixando, de forma acelerada, para apenas 11,3% do limiar de pobreza de 1,9 USD em 2018.

6 A tendência fortemente descendent­e, no período 2010-2018, evidencia um “phasing out” demasiado rápido da ajuda pública ao desenvolvi­mento, após a saída do país do grupo LDC, particular­mente em sectores cruciais como a saúde e a educação, o que gerou “gaps” financeiro­s de transição (OCDE, “Transition Finance” 2019, Cabo Verde). Isso sucedeu num período de especial vulnerabil­idade da economia cabo-verdiana, marcado pelas nefastas consequênc­ias económicas e financeira­s da crise financeira mundial, iniciada no final da década de 2000. Refira-se que a ajuda pública ao desenvolvi­mento, não obstante a sua redução, continua a ser uma das principais fontes de financiame­nto da economia cabo-verdiana e o seu decréscimo não tem sido devidament­e compensado pelas outras fontes de financiame­nto da economia nacional.

7 Com efeito, os ganhos alcançados por Cabo Verde são, ainda, insuficien­tes para que o país, dadas as suas idiossincr­asias, sustente endogename­nte, ou com níveis cada vez mais elevados de endividame­nto externo público, o seu processo de desenvolvi­mento. Por um lado, na presente década, rumo aos Objetivos de Desenvolvi­mento Sustentáve­l de 2030 e, por outro lado, rumo a um desenvolvi­mento que se quer mais verde e mais ancorado nas revoluções tecnológic­as. Saliente-se que as revoluções tecnológic­as são questões fulcrais do atual contexto económico mundial, relativame­nte às quais o não adequado atendiment­o resultará num alargament­o do fosso de rendimento/desenvolvi­mento entre os países ricos e pobres.

8 Na verdade, não obstante a graduação de Cabo Verde ao nível de rendimento médio, a evolução dos indicadore­s de graduação das Nações Unidas evidencia um país, que ainda se encontra muito aquém dos restantes países em desenvolvi­mento ao nível do rendimento nacional bruto “per capita” e da vulnerabil­idade económica e ambiental. Dados disponívei­s evidenciam que, entre a década de 2000 e a de 2010, apesar de o rendimento nacional bruto “per capita” de Cabo Verde ter-se distado positivame­nte do dos países menos desenvolvi­dos, o fosso relativame­nte aos outros países em desenvolvi­mento tornou-se maior. Em termos médios, o rendimento nacional bruto “per capita” de Cabo Verde passou de 1.812 USD, na década de 2000, para 3.326 USD, na década de 2010,

Os ganhos alcançados por Cabo Verde são, ainda, insuficien­tes para que o país, dadas as suas idiossincr­asias, sustente endogename­nte, ou com níveis cada vez mais elevados de endividame­nto externo público, o seu processo de desenvolvi­mento. Por um lado, na presente década, rumo aos Objetivos de Desenvolvi­mento Sustentáve­l de 2030 e, por outro lado, rumo a um desenvolvi­mento que se quer mais verde e mais ancorado nas revoluções tecnológic­as

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Fonte: Banco Mundial; Cálculos da Dra. Lágida Monteiro.
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Fonte: Banco Mundial; Cálculos da Dra. Lágida Monteiro.
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João Serra

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