Solução para a Câmara Municipal de S. Vicente? A aplicação, pura e simples,do estatuto dos municípios!
1.Introdução
A 22 de Abril os vereadores da UCID e do PAICV na Câmara Municipal de São Vicente retiraram a confiança política ao presidente do município, Augusto Neves, por considerarem estar perante o que consideram ser uma violação deliberada dos estatutos do município, discriminação dos vereadores e inactividade da autarquia.
A 27 de Abril o presidente da Câmara Municipal de São Vicente afirmou que tem pautado a sua acção pela harmonia e aponta dedo ao que classifica de “criação de factos e atritos superficiais”
E desde então baixou o silêncio sobre o assunto. A comunicação social estatal e a comunicação social privada limitaram-se a transcrever as declarações emitidas e pouco mais.
Impõe-se assim refletir sobre o assunto e procurar vislumbrar solução para este “desencontro” . Daí esta partilha .
2. Enquadramento legal da figura presidente de Câmara
Julgamos necessário fazer uma incursão prévia sobre a abordagem legal para ajudar a enquadrar as figuras Câmara Municipal , Presidente da Câmara e a relação entre a Câmara Municipal e o Presidente da Câmara.
O Decreto Lei nº 121/91 de 20 de Setembro, no seu artigo 9º, indica como órgãos representativos do Município a Assembleia Municipal ,a Câmara Municipal e o Presidente da Câmara.
O Decreto Lei nº 122/91 de 20 de Setembro define no seu artigo 11º o modo de eleição , com os titulares da Assembleia Municipal e da Câmara Municipal a serem eleitas por listas plurinominais apresentadas em relação a cada órgão e sendo eleito Presidente da Câmara o primeiro candidato da lista mais votada.
O mesmo Decreto Lei estabelece no seu artigo 15º (Critério de eleição) que a conversão de votos em mandatos para a Assembleia Municipal e para a Camara Municipal se faz em obediência ao método de representação proporcional (Hondt).
Mais estabelece que se uma das listas concorrentes obtiver a maioria absoluta dos votos validamente expressos , ser-lhe-á conferida a totalidade dos mandatos .
A Constituição da República de Cabo Verde de 1992 , no seu art. 230º (Organização das autarquias) vem dispor o seguinte:
1.A organização das autarquias locais compreende uma assembleia eleita, com poderes deliberativos e um órgão colegial executivo responsável perante aquela .
2. A assembleia é eleita pelos cidadãos eleitores residentes na circunscrição territorial da autarquia, segundo o sistema de representação proporcional.
Assim fica claro que a figura de Presidente de Câmara não tem qualquer referência constitucional , ao contrário do órgão colegial executivo.
Conforme se pode constatar dos resultados oficiais publicados no Boletim Oficial , os eleitores elegem vereadores ,sendo Augusto Neves um dos nove vereadores membros da actual Câmara.
Assim todos os vereadores têm igual legitimidade enquanto eleitos pelos cidadãos votantes .
A lei 134/IV/95 de 3 de Julho, no seu artigo 45 º , refere o Presidente da Câmara como um dos órgãos representativos do município , introduzindo uma efectiva desafinação com o texto constitucional .
Pode-se afirmar que para haver Presidente tem que haver Câmara de onde provém e tem assento.
Onde há um órgão colegial , tem que haver, de entre os seus membros, um “líder”, um “chefe”, um “coordenador” , que a lei designou de Presidente de Câmara, talvez por lembrança da figura colonial que, recorde-se, não era eleita mas sim designada .
O Presidente é a figura de coordenador que qualquer órgão colegial executivo que não funciona permanentemente necessita . E pressupõe, na sua actuação , a aceitação dos seus actos pelos restantes membros ,ou , pelo menos, da maioria dos seus integrantes .
A prática corrente até agora de se “aceitar” como Presidente o primeiro da lista mais votada impõe a este o “risco” de ser um Presidente minoritário no órgão colegial Câmara . É o que parece acontecer actualmente na Câmara Municipal de S.Vicente . E nesse caso como funcionar nessa situação ?
3.Enquadramento político da figura presidente
O Presidente dum órgão colegial deve assegurar uma maioria de apoio nesse órgão ,formal ou informalmente.
A maioria é formal quando ele dispõe da maioria absoluta no órgão, caso em que a nossa legislação lhe confere a exclusividade de membros da sua lista no mesmo .
Nesse caso o Presidente tem o poder absoluto porque tem o apoio da sua maioria.
Quando ele só dispõe de maioria relativa no órgão, ele pode garantir a maioria absoluta associando pelo menos uma lista que, com os seus membros eleitos, lhe assegura a desejada maioria absoluta.
Para isso, ele deve ter a capacidade para “negociar” esse apoio, o que no caso de S.Vicente foi sendo conseguido até 2020.
Mesmo sem conseguir apoio formal de outra força política o Presidente pode ter a habilidade de, “jogando” com as sensibilidades, ir conseguindo o acordo ora duma ora doutra lista e ir levando a sua agenda avante .
Após eleições de Outubro de 2020 a UCID não se dispôs a “fazer acordo” e o MPD não pode (ou não quis) negociar outros apoios .
A eleição da mesa da Assembleia Municipal o MPD acabou por mostrar essa sua incapacidade (ou falta de vontade) e a sua faceta menos “democrática “.
Primeiro, não conseguir associar a UCID ou o PAICV no processo de constituição da Mesa, sabendo do desejo público da UCID para assumir a Presidência desse órgão .
Depois, vendo-se derrotada na eleição desse órgão, saiu-se com tiradas de “assaltantes”, de ”djagacida” e outras afrontas que selaram definitivamente o afastamento da UCID do MPD.
O recurso do MPD ao Tribunal Constitucional resultou na sua derrota com o Tribunal a lembrar no Acórdão 52/2020 que, citando, “Sendo assim, não se pode dizer que houve algum desrespeito pelo princípio democrático, considerando que a regra da maioria está no centro do princípio democrático de decisão”.
Mas apesar da pedagogia do Tribunal Constitucional o MPD e Augusto Neves parecem não ter aprendido que novos tempos se avizinhavam e continuaram com a mesma atitude de pretender mandar absolutamente sem terem o poder para isso.
O processo de atribuição de pelouros foi cartada de Augusto Neves que, fiel ao velho mas sempre proveitoso princípio de dividir para reinar , “lançou a confusão” na frente UCID/PAICV, ao igualá-los em termos de profissionalização de pelouros “dando” 1,5 tempo para cada um ,sabendo da sua diferente “força” visto que no órgão Câmara a UCID dispõe de 3 vereadores enquanto PAICV tem 2 vereadores.
A sombra dum eventual entendimento clandestino , não do MPD com o PAICV ,mas sim dos “amigos” Augusto Neves e Albertino Graça, chegou a planar nas mentes mindelenses .
A aprovação do orçamento da CMSV com abstenção dos vereadores da UCID e do PAICV poderá ter levado Augusto Neves a julgar que a batalha estava ganha.
Mas rapidamente se percebeu que as acções “habilidosas” de Augusto Neves e o retomar progressivo da sua habitual atitude, no mínimo pouco dialogante, traziam com elas, não a divisão da UCID
O Estatuto dos Municípios define não só o quadro para o devido funcionamento da Câmara Municipal mas também indica os caminhos a seguir para uma situação de não cumprimento. Daí o nosso entendimento que a solução da situação na CMSV é, pura e simplesmente, a aplicação do Estatuto dos Municípios
e do PAICV mas pelo contrário, o desenvolvimento duma coligação que se afirmava e ganhava força à medida do tempo.
As peripécias da aprovação pela Assembleia Municipal da profissionalização dos vereadores e do orçamento municipal e a novela das reuniões da Câmara, sucessivamente adiadas umas ,iniciadas outras mas não concluídas , vieram a agravar os desencontros entre Augusto Neves e a maioria UCID/PAICV na Câmara Municipal de S.Vicente que tiveram desfecho nas conferências de imprensa de 22 de Abril e 27 de Abril últimos.
E aqui chegados que solução para resolver a situação ?
4.O que o Estatuto dos Municípios estabelece sobre as questões em discussão na Câmara
Artigo 91º (Reuniões)
1. A Câmara Municipal terá uma reunião ordinária quinzenal.
2. A Câmara Municipal poderá estabelecer dia e hora certos para as reuniões ordinárias, devendo neste caso publicar editais que dispensarão outras formas de convocação.
3. Poderá a Câmara Municipal reunir-se extraordinariamente por iniciativa do Presidente ou a pedido da maioria dos Vereadores, não podendo, neste caso, ser recusada a convocatória.
4. As reuniões serão convocadas e dirigidas pelo Presidente.
Assim sendo ,é evidente que, não reunindo a Câmara Municipal com a regularidade legalmente estabelecida (quinze em quinze dias) nem extraordinariamente ,a pedido da maioria dos vereadores (facto alegado pelos cinco vereadores da UCID/PAICV) ,estamos perante um claro incumprimento da lei.
Artigo 46º (Ordem de trabalho)
1. Para cada reunião de um órgão municipal haverá uma ordem de trabalho proposta pelo respectivo Presidente e remetida aos demais membros com a convocatória, no prazo regimental.
2. Da ordem de trabalhos deverão constar, obrigatoriamente, todos os temas e assuntos para o efeito apresentado por escrito ao Presidente, por qualquer membro, desde que sejam da competência do órgão respectivo, até cinco dias antes do termo do prazo regimental de convocatória.
Parece que o Presidente não tem levado alguns temas e assuntos
apresentados por escrito pelos membros ,contrariando o estabelecido no ponto 2.
O argumento deste ou aquele ponto não ser da competência do órgão não colhe pois não é competência do Presidente ser juiz.
Tendo dúvidas , deveria apresentá-las na Câmara e inclusive, se for o caso disso , votar contra eventual deliberação, reservando o direito de promover, no local próprio, a discussão da sua legalidade.
Não deve nem pode pretender que a Câmara só possa discutir o que ele , Presidente ,bem ou mal ,entende.
Artigo 47º (Quorum)
1. Os órgãos municipais só podem funcionar e deliberar em primeira convocação com a presença da maioria do número legal dos seus membros.
2. Não comparecendo a maioria do número legal dos seus membros, será convocada uma nova reunião, com o intervalo de , pelo menos 48 horas, com a presença de qualquer número de membros, desde que superior a um terço.
3. Pode ainda a assembleia deliberar validamente se iniciada a reunião nos termos do número 1 deste artigo deixar de existir quorum no decurso da mesma por abandono de uma parte dos membros.
4. Para efeito de determinação do quorum não se contam os membros impedidos nos termos da lei.
Resulta evidente que a reunião da Câmara ,uma vez iniciada, pode deliberar validamente mesmo sem quórum por abandono duma parte dos membros.
Ora ,o Presidente da Câmara tem abandonado algumas reuniões a meio “declarando “o seu encerramento , tipo reunião não se pode efectuar sem minha presença.
Ora a lei , no seu ponto 3. ,permite que haja deliberação sem quórum ,quando haja abandono de parte dos seus membros ,como tem sido o caso do Presidente que ,convém não esquecer, é membro do órgão .
Artigo 48º (Deliberação)
As deliberações dos órgãos municipais são tomadas por pluralidade de votos.
Pluralidade quer dizer regra da maioria que está no centro do princípio democrático de decisão” ,citando o Tribunal Constitucional no acórdão Nº 52/2020 .
Todas as decisões do órgão são tomadas por maioria . A começar pela ordem dos trabalhos que é proposta ao órgão para aprovação como é prática corrente .
As deliberações ,se alguém as achar “ilegais”, podem e devem ser discutidas em fórum próprio , por quem as considerar como tais e proceder coerentemente.
Artigo 49º (Actas)
1. Será lavrada acta que registe o que de essencial se tiver passado nas reuniões , nomeadamente as faltas verificadas, as deliberações tomadas, os resultados das votações, os votos de vencido e qualquer outra matéria imposta pelo regimento.
2. Quando assim for deliberado pelo órgão, as deliberações mais importantes poderão constar de simples minutas aprovadas no termo da reunião e assinadas pelos membros presentes.
Havendo cumprimento da lei, as actas ou a sua minuta elaboradas pelo Secretário Municipal) são (serão) comprovantes do que se passa(ou) no funcionamento da Câmara.
Os registos magnéticos são (serão) provas a não negligenciar num eventual apuramento dos factos face a eventual inexistência de registos escritos.
Artigo 50º (Auto de não - realização)
Se não for possível efectuar uma reunião o Secretário lavrará auto de não realização na qual consigna as razões determinantes desse facto, os membros que faltaram e o mais que o regimento determinar.
A existência (ou não) de Auto de não - realização é comprovativo do cumprimento ou não da Lei e do funcionamento da Câmara Municipal.
Artigo 99º (Dever de informar)
1. O Presidente da Câmara Municipal submeterá à Câmara Municipal, na primeira reunião a seguir à sua recepção, todo o expediente respeitante à competência desse órgão, nomeadamente os ofícios, as cartas, as petições e queixas, e de uma maneira geral todos os documentos que concernem a esse órgão.
2. O Presidente informará ainda à Câmara Municipal do estado de execução das suas deliberações.
O Presidente da Câmara vem falhando no cumprimento do estabelecido legalmente ao não levar à consideração deste Órgão expediente respeitante a esse órgão .
Faz isso ,de forma deliberada, sabendo ele que esse expediente já é do conhecimento dos vereadores, antes da reunião proposta.
5. Consequência legais em que pode incorrer o presidente da Câmara Municipal
Pelos actos de não cumprimento da Lei acima indicados pelo Presidente da Câmara Municipal , este pode ser objecto de processo de perda de mandato .
O Estatuto dos Municípios , no seu Artigo 59º (Perda do mandato) determina que 1. Perdem o mandato os titulares de órgãos municipais que: c) Incorram por acção ou omissão em ilegalidade grave ou numa continuada pratica de actos ilícitos, verificados em inspecção, inquérito ou sindicância, ou expressamente reconhecidas por sentença judicial definitiva .
5.1 Tutela inspectiva
O recurso à tutela inspectiva poderia ser um caminho “rápido” para verificar a ilegalidade grave ou continuada prática de actos ilícitos pelo Presidente da Câmara .
Infelizmente a tutela parece hoje ser uma mera formalidade da Lei e a isso não é alheia a manipulação política partidária do Estado pelos detentores do Poder.
A Inspecção da Administração Local foi extinta há vários anos e os seus sucedâneos são meras formulações institucionais do tipo “já que se prevê tutela, há que existir um órgão com essa competência, ainda que não a exerça ,ou quando a exerça ,fá-lo a mando e conveniência do Poder instituído e não para garantir o adequado funcionamento do Estado.
Contudo não deixa de ser um instrumento que pode ser utilizado.
5.2 Ilegalidade Grave com recurso aos Tribunais Judiciais
Estabelece o Artigo 134º (Ilegalidades graves) que 1. Salvo ocorrência de causa justificativa, constitui grave ilegalidade, nomeadamente:
b) A não realização periódica das sessões da Assembleia, nos termos do artigo 75º e das reuniões das Câmaras, nos termos legais;
Ora parece claro que estamos em clara situação de não realização periódica das reuniões da Câmara sem causa justificativa .
A isso se pode adicionar a não realização, quando legalmente requerida, pela maioria dos seus membros como parece ter acontecido .
Como conclusão pensamos ser evidente que o Estatuto dos Municípios define não só o quadro para o devido funcionamento da Câmara Municipal mas também indica os caminhos a seguir para uma situação de não cumprimento.
Daí o nosso entendimento que a solução da situação na CMSV é, pura e simplesmente, a aplicação do Estatuto dos Municípios.