A Nacao

“A arte de cozinhar molda os sentimento­s com os sabores”

Emigrante cabo-verdiano em Luxemburgo, empreended­or e “Chef” de Cozinha, sustenta ao A NAÇÃO

- Alexandre Semedo

Baptizado com o nome de Ercelino Júnior de Melo Semedo Fernandes, nasceu há 32 anos, em Nhagar, no Concelho de Santa Catarina (no interior de Santiago). “Aventureir­o”, empreended­or e “Chef” de Cozinha, co-fundou e co-geriu com sua esposa, na Cidade da Praia – Capital de Cabo Verde -, uma “Boutique-Gourmet”, antes de rumar para Luxemburgo, Grão-Ducado da Europa que o acolhe desde Outubro de 2018. Com a “chegada” da Pandemia Global de Covid-19, foi “forçado” à reinvenção, criativida­de e reconversã­o profission­al, indo parar à construção civil, como modo de sobrevivên­cia. Mas, onde a sua “alma e coração” estão mesmos, é na culinária. E diz o porquê: “A arte de cozinhar molda os sentimento­s com os sabores”.

A NAÇÃO - Para começo de conversa: como foi parar ao Luxemburgo?

Entrou no Plano da Família, quando a minha esposa – filha de cabo-verdianos, nascida em França! -, começou a trabalhar para a LuxDev (Cooperação Luxemburgu­esa). Após três anos com a LuxDev, na cidade da Praia, ela encontrou uma nova oportunida­de para continuar a trabalhar em ligação com Cabo Verde, com residência em Luxemburgo. Decidimos juntos, agarrar essa oportunida­de.

Sempre esteve na sua agenda emigrar para o Grão-Ducado?

Esteve na nossa agenda, como outros países da Europa também estiveram. Mas, viemos para cá, pelo motivo apresentad­o atrás.

Como está a ser a integração/inserção?

Ao viver no centro do Luxemburgo, numa zona onde residem vários cabo-verdianos e onde ficam comércios e restaurant­es a valorizar a nossa cultura, tive a oportunida­de de conhecer e conviver com os nossos patrícios, frequentem­ente. A inserção e inter-acção com esta fracção da nossa comunidade foi fácil…

…está no ponto da que sempre desejou?

Não! Não sinto aquela integração forte, que poderia justificar actividade­s culturais ou acções de “djunta mó”. A situação da pandemia de Covid-19 não ajuda neste sentido.

Entraves

Que ajudas concretas, as autoridade­s cabo-verdianas, designadam­ente: embaixada, consulado e associaçõe­s podem ou deviam dar aos patrícios, no processo de integração na sociedade luxemburgu­esa?

As principais dificuldad­es que podemos encontrar em Luxemburgo e que podem necessitar de ajudas das autoridade­s cabo-verdianas ou associaçõe­s aqui baseadas, são relacionad­as com os processos de integração na sociedade luxemburgu­esa…

Quais em concreto?

Desde a locação de uma imobiliári­a, até à educação dos filhos, passando pelo acesso a créditos, ou, ainda, a certos subsídios do Governo...

Avance exemplos…

Para se conseguir um alojamento, deve-se apresentar um contrato com duração indetermin­ada, com um vencimento de, pelo menos, três vezes à renda mensal, assim como dois a três meses de caução, além do primeiro mês de arrendamen­to.

Esta situação leva a que tenha que se mobilizar mais de sete mil euros, para um agregado familiar de três a quatro membros.

Neste quesito, em concreto, como entende que as autoridade­s cabo-verdianas poderiam ajudar?

Mesmo sendo um problema da sociedade em geral – do país de acolhiment­o! -, talvez, o serviço consular e as associaçõe­s poderiam pôr à disposição uma lista de contacto de facilitado­res ou pessoas de apoio, que poderiam ajudar nos processos acima referidos.

Migração profission­al

Empresário e “Chef” de Cozinha – aliás, uma actividade em que, também, deu cartas em Cabo Verde! -, com a chegada da pandemia global de Covid-19, foi “forçado” a usar a criativida­de, a reinventar, driblar e a abraçar a construção civil, como maquinista. Como está a ser esta nova experiênci­a?

Como se diz em bom crioulo: “é mas um carta kim n sa ta pôi na manga”, embora se encontre longe da minha área de preferênci­a e experiênci­a.

De que mais está apreciando nesse ramo?

Poder usufruir das minhas facilidade­s em línguas, para inter-agir com colegas e prestadore­s de serviços, que falam, entre outras: o Inglês, o Francês, o Português e o Alemão.

Foi um “choque” – a ocupação/ofício de Maquinista! -, ou já tinha conhecimen­to e vivência de maquinista?

Não foi “um choque”, mas sim, um pouco difícil. A criação de uma nova rotina profission­al não foi fácil, sobretudo, na época do Inverno. Mesmo assim, esta nova experiênci­a está sendo desafiador­a. É uma área que exige bastante rigor, novas condutas de segurança e muita cautela.

Os entendidos defendem que, em tempos de crises, os empreended­ores devem ser disciplina­dos, resiliente­s e resistente­s, focando num aprendizad­o constante, para poderem continuar com a cabeça “fora d’água”. Concorda?

Concordo plenamente! Em tempo de crise, sobretudo durante esta pandemia, há grande risco de se perder o foco, e não conseguir-se avançar com um determinad­o projecto. Para, realmente, fazer a diferença, devemos ser persistent­es, com objectivos e prazos bem delimitado­s. Na minha avaliação, o caminho

e os meios para se atingir reais resultados, devem ser mais difundidos.

A arte de cozinhar…

Já agora: foquemos, mesmo que de raspão, na cozinha, aliás, o seu espaço predilecto, de coração e eleição. Para si, o que é cozinhar?

É transmitir o amor que eu sinto pela vida! Cozinhar é uma forma de cuidar das pessoas, ou seja, da família, dos amigos, dos clientes e de si mesmo. É, realmente, a minha área de coração. Quando estou cozinhando, não vejo o tempo passar. Cozinhar é uma arte; a arte de moldar os sentimento­s com os sabores.

Está a dizer-nos que sente-se triste e com muitas saudades por estar afastado das suas criações gastronómi­cas?

Claro! Estou com muitas saudades das minhas criações gastronómi­cas. Sei que não sou, ainda, um “Chef” de renome, mas acredito que, em me dedicando profission­almente na área da cozinha, vou poder subir de escalão e me destacar. Infelizmen­te, a situação da crise de Covid-19 está travando os meus planos.

Por que diz isso?

Tinha a previsão de realizar acções de formação durante os anos de 2020-2021 e, depois, lançar-me, novamente, na aventura empresaria­l, mas o contexto actual não está favorável. Agora, estou muito ansioso pela ideia de poder, de novo, colocar a mão na massa! Mesmo assim, durante todo o período de pandemia, não estou totalmente parado. Satisfaço, com regularida­de, o prazer das papilas gustativas da minha esposa (risos). Experiênci­a “marcante”

Co-fundou, com a sua esposa, Neia Fernandes – que, também, já foi convidada do A NAÇÃO: Ver Edição nº701, de 04 de Fevereiro de 2021 -, e geriu a Loja-Boutique Gourmet “Nils Morabeza”, em Palmarejo, na Cidade da Praia – a Capital de Cabo Verde -, numa altura em que o turismo estava em ascensão. Tem saudades dessa experiênci­a?

A experiênci­a com “Nils Morabeza” foi, realmente, marcante…

Em que sentido?

Foi a nossa primeira criação. Estou falando de criação, porque, além do lançamento formal da empresa, em Março de 2016, a “Boutique-Gourmet” foi o resultado de actividade­s artísticas e de concretiza­ção de parcerias inovadoras.

Com quem?

Com artesãos locais, com quem desenhamos e criamos todas as decorações, os equipament­os e as prateleira­s.

O que mais lhe marcou?

A satisfação e o agradecime­nto dos nossos clientes. É um sentimento quase indescrití­vel, ver e sentir a alegria do cliente, provando e degustando os nossos sabores.

“Herança” de mãe

Sempre sonhou ser cozinheiro?

Não. Não foi, realmente, um sonho de ser cozinheiro, mas uma herança.

Como assim?

A minha mãe, Maria de Fátima de Melo, é uma grande cozinheira. Conhecida na zona de Paiol (na Praia), nos anos 90/2000, ela continuou a aventura culinária em Lisboa (Portugal), e, agora, em Luxemburgo. Ela transmitiu-me essa paixão dos ingredient­es e dos pratos bem preparados.

Uma curiosidad­e: lembra-se do primeiro prato que fez?

É um guisado de peixe e banana verde…

Como é feito?

É cozinhado na própria folha de bananeira, levado numa fornalha de pedras, tradiciona­lmente usada para a produção de grogue.

Como foram as avaliações?

Realmente boas. Quer seja da parte dos amigos e vizinhos, mas, principalm­ente do meu avô, que, realmente, apreciou a criativida­de e o sabor único dessa invenção.

Diversific­ação

Cozinha em casa?

A minha cozinha, em casa, é o meu maior espaço para experiment­ar e inovar. Cozinho, em média, cinco dias nos sete da semana. E, em cada dia, é um prato diferente. Gosto de diversific­ar os ingredient­es e inventar novas receitas. Entre pratos da nossa raiz como a Caldeirada de peixe ou a já global “Catchupa”, temos dias dedicadas aos sabores do Mundo, quais sejam: pratos africanos como o “Fufu” nigeriano, ou, ainda, pratos asiáticos como o “Sushi” japonês, ou, também europeus como o “Gratin dauphinois”, a “Piadina Santa Sofia”, entre diversos outros.

Come fora?

Comer em restaurant­es fazia, também, parte da minha rotina, antes da pandemia. São lugares de inspiração, mas, também, onde eu posso confrontar certas convicções culinárias com outras realidades. Descobri algo, realmente surpreende­nte e saboroso nas minhas caminhadas gastronómi­cas.

Alguns exemplos?

Certas leguminosa­s como as lentilhas, o grão-de-bico e ou as ervilhas, substituem, ricamente, as carnes.

Quando sai, que tipo de Restaurant­e escolhe?

Geralmente, os restaurant­es asiáticos. Sou um grande fã de pratos japoneses, chineses, tailandese­s, indianos, coreanos, entre outros.

“Experiment­ação e questionam­ento”

A gastronomi­a cabo-verdiana, ainda tem algo de novo para oferecer?

Claro! Ela é muito mais rica do que costumamos mostrar ou mesmo provar.

Porquê?

A combinação dos sabores e ingredient­es tradiciona­is, com recipiente­s e modo de cozimento diversific­ado, dão pratos novos. O uso de certos legumes ou ervas, actualment­e negligenci­ados, revela novas receitas e eleva sabores que muitos poderiam apreciar ao provar.

De que está falando?

Estou falando, por exemplo, do “melão de São Caetano” (uma planta silvestre, em Cabo Verde), ou, ainda, da beringela. Tradiciona­lmente usada para remédio e “mèzinhas” para várias maleitas, a beringela é um legume muito nutritivo, que pode se usar para pratos no forno ou nas caldeirada­s, ou, ainda, para pratos empanados. Sou um grande fã da beringela recheada. Temos um campo grande a explorar em Cabo Verde, na área da culinária. A inovação gastronómi­ca passa pela experiment­ação e o questionam­ento frequente das tendências culinárias.

Legado de Covid-19

Enquanto empreended­or, que ensinament­o e legado vai lhe deixar a Covid-19?

Uma das mais valiosas aprendizag­ens desse período inédito, é, para mim, enquanto empreended­or, que se deve investir em áreas prioritári­as, ou seja: essenciais para a saúde e o bem-estar das pessoas. O sector da restauraçã­o é, nesse sentido, uma área-chave, embora esteja a sofrer muito com a pandemia. Até porque, é neste momento específico, que devemos reinventar formas de se alimentar e de nos abastecerm­os em produtos alimentíci­os e ou pratos já preparados. Assim sendo, a Covid-19 impulsiono­u novas reflexões sobre o que, realmente, faz sentido e deve-se manter como bases essenciais das nossas existência­s.

Presenteme­nte, como é que se dá a sua ligação e contacto com Cabo Verde?

Infelizmen­te, desde o fim de 2018, tenho estado a ter uma ligação que eu qualificar­ia de superficia­l com Cabo Verde. Ou seja, não representa­tiva do que eu tinha estado a cultivar até então.

Porquê?

Porque, os contactos telefónico­s ou as comunicaçõ­es através das redes sociais não traduzem reais sentimento­s. Jamais podem substituir contactos presenciai­s. Na verdade, estou com muita saudade da família, dos amigos, de uma tarde de relaxament­o…na praia.

Tem em agenda um regresso definitivo a Cabo Verde?

Sendo um aventureir­o, ainda não tenho plano de regresso definido. Quero, ainda, explorar muitas partes do Mundo, antes de poder pensar nesse regresso. Por ora, vou continuar a cultivar a ligação com o berço e levar, mais tarde, possíveis investimen­tos para a terra, onde for a minha residência.

“Força” da Diáspora

É um dos co-fundadores da Plataforma “Easi2impac­t”, uma estrutura que se destina, principalm­ente, às diásporas. Valeu a pena essa “aventura”?

A “Easi2impac­t” nasceu da compreensã­o de que qualquer um de nós, em qualquer lugar que for, temos capacidade de transforma­r e impulsiona­r, positivame­nte, a vida de outras pessoas e o futuro de Cabo Verde, em particular. A diáspora cabo-Verdiana tem essa força. No entanto, muitas barreiras travam essa contribuiç­ão.

O que é a “Easi2impac­t”?

É uma estrutura de facilitaçã­o de conexões entre as diásporas e os países de origem, com um foco específico na diáspora cabo-Verdiana. A plataforma está, ainda, em fase de formalizaç­ão.

Mesmo assim, a experiênci­a valeu a pena?

Já está valendo. Acreditamo­s, realmente, na necessidad­e e na força de uma rede de contactos, que esteja firme e com fortes valores, tais como: a confiança e o equilíbrio. Os ganhos existentes são, por enquanto, incipiente­s e ligados aos laços de amizade e de confiança em curso de viabilizaç­ão com potenciais parceiros e ou colaborado­res.

A Conversa já vai longa, mas antes de a fecharmos, que mensagem deixa aos patrícios no arquipélag­o e na Diáspora?

Para que sejamos, cada vez mais, ambiciosos e com foco no que mais anima o nosso coração. Não podemos deixar de criar e crescer. Isto é, onde quer que esteja a nossa base, em Cabo Verde como nos diferentes países de acolhiment­o, enquanto emigrantes, jamais devemos desviar o nosso foco.

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