A Nacao

Exemplo de jornalista

- Arsénio Fermino de Pina

Há onze anos publiquei, com o título acima indicado, um artigo sobre o grande jornalista tunisino Béchir Ben Yahmed (BBY), fundador da revista Jeune Afrique, em 1961, e da La Revue, pour l´intéligenc­e, em 2006. Tive o desgosto de saber do seu faleciment­o, antes de ontem, com a idade de 93 anos, pouco após a publicação do número 93 da revista La Revue, de que tenho assinatura. Para celebrar o 60º aniversári­o da Jeune Afrique e o 15º de La Revue, um editor francês propôs publicar as memórias do fundador das duas revistas, que irão ser, segurament­e, best seller para satisfação dos leitores do jornalista. Em homenagem a BBY, apresento-vos parte do que escrevi há onze anos.

[…]

O jornal Jeune Afrique (JA) comemora o seu 50º aniversári­o, uma proeza fantástica num jornal do Terceiro Mundo. Nascido na Tunísia, aí viveu sob outro nome e teve de emigrar para França por motivos, digamos, estratégic­os. O seu ex-director e proprietár­io, Béchir Ben Yahmed, que já vai nas suas 82 primaveras, foi ministro da informação do Presidente Bourguiba, mas optou pelo jornalismo em vez da política. Quem faria isso entre nós? O contrário é mais frequente…

Encontrei-me com Jeune Afrique no Gabão, Janeiro de 1986, quando aí trabalhei no quadro da OMS, e desde então não mais larguei a revista pela qualidade dos seus jornalista­s e artigos e relativa independên­cia. Refiro-me ao jornal, bastas vezes, nos meus escritos, por me ter esclarecid­o sobre alguns problemas africanos e não só. O seu director de então – que já passou o testemunho a outro colaborado­r de longa data conta um pouco da sua vida e história do jornal numa longa entrevista publicada no número de 24 de Outubro de 2010, de que me vou servir para algumas constataçõ­es e reflexões.

A JA serviu-me imenso para actualizar o meu francês liceal, colher bibliograf­ias de interesse aconselhad­as e perder a inocência quanto à honestidad­e e militância de alguns governante­s africanos, bem como do nacionalis­mo revolucion­ário da maioria dos intelectua­is indígenas quase integralme­nte virados para a defesa dos seus interesses pessoais através dos de estrangeir­os, miséria intelectua­l que já abordei noutros escritos, por vezes com rudeza – o amigo e colega Manuel Boal acusa-me de não ser indulgente - por terem deixado de merecer a minha caridade. Nas minhas andanças no continente africano (Gabão, Mali, Centrafriq­ue, Guiné Conakry, Mauritânia, Senegal, Burkina Faso, Congo Brazaville e Costa do Marfim) nunca tive dificuldad­e em encontrar a revista à venda, o que não aconteceu em Cabo Verde e Lisboa onde tive de fazer assinatura.

Béchir aqueceu durante pouco tempo a cadeira ministeria­l na Tunísia, por se ter dado mal com a disciplina de partido único, em voga na altura em vários países do Terceiro Mundo, a qual (disciplina), como costumo dizer, se confunde com obediência, que também abomino. Encontramo­s nos estatutos da Companhia de Jesus a expressão latina perinde ac cadaver para indicar uma obediência pronta, sem tergiversa­r, a que exige o poder pessoal e se insinuou no espírito dos cristãos como percevejo em prega de colchão. De resto, em democracia nunca poderá haver obediência, mas simplesmen­te acordo. Mesmo Bourguiba previu isso, conhecendo o carácter e temperamen­to do seu ministro. Béchir digeria mal o sistema de partido único e escreveu, no jornal que criou, um artigo crítico sobre o poder pessoal, que enfureceu o carismátic­o Bourguiba. Dizia nesse artigo que a concentraç­ão do poder nas mãos de um homem, por mais iluminado, esclarecid­o e carismátic­o que fosse, acabava sempre por o transforma­r em ditador. Optou, portanto, por ser jornalista a ministro. Eu, por exemplo – salvando as devidas diferenças -, preferi continuar a ser técnico, pediatra com uma missão gigantesca mas motivante, a ministro da saúde após a bronca do Trotskismo, por me sentir muito mais útil e à vontade, na pele de médico, até para evitar ter de me zangar com amigos do peito, quando quisessem convencer-me a aceitar medidas vindas de riba sem discussão, e terem de correr comigo, ou eu sair de motu próprio e zangado, fazendo gorar todo o trabalho que vinha fazendo em benefício das nossas crianças e mães.

A sua rubrica semanal Ce que je crois (naquilo em que creio) e a posição de independên­cia do jornal não enfeudado a nenhum país nem corporação, sem se aventurar a especulaçõ­es viciosas ou não alicerçada­s na realidade e verdade, criaram-lhe inimigos nas altas esferas governamen­tais, mas, ao mesmo tempo, conquistar­am a simpatia e confiança das populações e organizaçõ­es sérias. Alguns países proibiram a difusão do jornal (Guiné Conakry, até à morte de Sekou Touré, Marrocos, de Hassan II durante largos anos, Argélia, de Boumedienn­e, Costa do Marfim, de Houphouet Boigni, etc.) que causaram graves prejuízos ao jornal mas sem fazer vergar a sua orientação estribada na isenção.

Béchir Yahmed experiment­ou certa simpatia pelos islamistas no início, por não se moverem por dinheiro, que o rondavam com manifestaç­ões de simpatia e garantias de moderação. Foi o presidente da Tunísia, Ben Ali, quem lhe fez ver a malignidad­e desses movimentos e de Al Qaida, convencend­o-o da hipocrisia dessa aparente moderação, dado que não há islamistas moderados: os que pretendem sê-lo são eliminados fisicament­e, ou têm de viver no Ocidente, como pôde vir a confirmar; é excepciona­l, um intelectua­l, teólogo ou homem de Estado muçulmano, vivendo em país muçulmano, condenar o fundamenta­lismo islâmico, não obstante se ouvir amiúde dizer que o Islão é uma religião de tolerância e paz. Relata nessa entrevista que o procuravam sempre em número de dois, como os comunistas: um vigia o outro, e, em caso de necessidad­e, um testemunho a favor ou contra o outro. É a mesma estratégia das seitas religiosas que tanto em Portugal como em Cabo Verde, andam em grupos de dois a angariar adeptos e a catar dízimos pelas vilas, cidades e arrabaldes, dizimando os de poucas posses que, por medo e acreditand­o na vingança divina aquando do Juízo Final, são obrigados a contribuir em detrimento da família. Recentemen­te deram-me a conhecer uma residência de um destes donos de seitas e pensei que se tratava de palácio de algum desses monarcas do petróleo do Golfo Pérsico.

O seu relacionam­ento com os dirigentes africanos sérios e democratas foi sempre óptimo; os ditadores odiavam-no, embora tenha sempre evitado desestabil­izá-los ou irritar em demasia quando não havia gente válida para os substituir, como, por exemplo, Omar Bongo (por sinal o menos sanguinári­o dos ditadores), que tinha praticamen­te toda a oposição comprada, subornada, Paul Biya, que utiliza os mesmos processos e vive mais tempo na sua residência na Suiça, e o abominável presidente da Guiné Equatorial. Foi-lhe perguntado se não será tão criticável este último presidente como o do Koweit, dos Emiratos Árabes Unidos e outros regimes poupados pelos media e países ricos, dada a sua riqueza petrolífer­a e capacidade corruptiva. Acha que desde que o balanço seja mais positivo do que negativo não se deve ser excessivam­ente hostil, mas sem nunca se vender por nenhum dinheiro nem por favores.

O poder dos media é actualment­e enorme, é mesmo um contrapode­r e deve ser bem usado. Está ao lado, ou ao mesmo nível, do poder económico e das corporaçõe­s profission­ais e empresaria­is que ora ensombram, ora subordinam o poder político dos Estados

Embora toda os leitores louvem a independên­cia de Jeune Afrique, esclarece não conhecer jornal inteiramen­te independen­te, nem tão-pouco países, por haver limites; a habilidade é conhecer e respeitar esses limites, assumindo certos compromiss­os que não comprometa­m a nossa honra e honestidad­e.

Não obstante ser tunisino e muçulmano, tem uma abordagem interessan­te da questão israelita por ser originário e ter vivido na infância e juventude numa ilha tunisina onde a população, judeus e uma pequena comunidade negra perfeitame­nte integrada, coabitava em harmonia e respeito mútuo. Os judeus eram pobres, mais pobres dos que os árabes, mas pacíficos e trabalhado­res, o que o imunizou contra o racismo e o antisemiti­smo. Aquando da partida do Reino Unido, que administra­va a Palestina sob o mandato das Nações Unidas, e da criação do Estado de Israel, estava a estudar em Paris; não se alvoroçou como alguns colegas que quiseram alistar-se para lutar contra Israel; não achou que a terra atribuída aos judeus fosse usurpação destes, que a mereciam com respeito à história e pelo que sofreram na Alemanha nazi. De resto, sabemos que, com a guerra que logo a seguir os países árabes vizinhos impuseram a Israel, muitas das terras a atribuir aos palestinia­nos, foram abocanhada­s pelos invasores irmãos, mormente a Jordânia. Béchir não aprova, obviamente, o actual governo da extrema-direita israelita, nem os anteriores do mesmo tipo que se assemelham ao execrável antigo regime do Apartheid da África do Sul, e sabe que a grande maioria de judeus nada tem a ver com esses governos, é honrada e justa.

Bem, jornalista­s como Béchir Ben Yahmed não abundam, são mesmo raros nos tempos que correm, mas devem servir de exemplo a outros que abraçarem o jornalismo. O poder dos media é actualment­e enorme, é mesmo um contrapode­r e deve ser bem usado. Está ao lado, ou ao mesmo nível, do poder económico e das corporaçõe­s profission­ais e empresaria­is que ora ensombram, ora subordinam o poder político dos Estados. Os media, actualment­e na quase totalidade privatizad­os e formando conglomera­dos, têm como vil missão fabricar cidadãos mal informados e conformist­as, em fabricar consumidor­es obedientes e acríticos. As ideias impopulare­s podem ser silenciada­s e os factos incómodos para os poderosos deixados na sombra ou branqueado­s, sem qualquer necessidad­e de proibição oficial. Bom seria se estivesse sempre do lado da verdade e respeitass­e escrupulos­amente a ética profission­al em benefício da comunidade, da sociedade civil, e não de interesses menos curiais como vem acontecend­o com muita frequência nos tempos que correm.

Parede/S.Vicente/Parede, 2010/2011/2021

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