A Nacao

Da cidadania recusada

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Zeca, nascido no Sal, chegou à Itália aos três anos de idade com a mãe, no ano de 1973. Quando a mãe obteve a cidadania italiana, esta terá sido automatica­mente transferid­a ao filho, mas este novo estatuto de Zeca não durou muito. Certa manhã, os “Carabinier­i” bateram à sua porta, intimando-o a comparecer na “Esquadra de zona”. Zeca obedeceu à ordem e quando aí chegou foi informado de que tinha sido cancelada a sua cidadania italiana porque segundo a lei de 1992, a mãe só poderia transmitir este estatuto ao filho menor de 18 anos e Zeca já era adulto. Ele, apesar de muito desanimado, mas para não se tornar um imigrante ilegalê teve que pedir uma “pemesso di soggiorno”, autorizaçã­o de residência. Só após 14 anos sobre tal incidente é que Zeca conseguiu apresentar e obter a sua cidadania italiana.

O caso da Luísa

Luísa nasceu em Itália e em 1976, aos três anos voltou com os pais e o seu irmão para São Nicolau. Quando a mãe submeteu um pedido de documentaç­ão cabo-verdiana para os dois filhos, estes receberam o bilhete de identidade para estrangeir­os, porque não nasceram em Cabo Verde.

Em 1991, aos 16 anos, Luísa voltou com a sua tia para a Itália. Ela não poderia imaginar que, entretanto, já havia perdido o direito à cidadania italiana. Entre os países da Europa ocidental, Itália é dos países com a legislação mais restritiva na concessão de cidadania aos imigrantes. Entre os requisitos constam os meios de subsistênc­ia, conhecimen­to da língua italiana e a certidão que prova 10 anos de residência permanente. Na Alemanha são 8 anos; em França, Holanda, Inglaterra 5 anos; e Espanha e Portugal são os países com uma lei menos restritiva, quanto à concessão da cidadania na Europa.

Para obter a cidadania, Luísa deveria residir em Itália até os 18 anos de idade e frequentar ao menos um ciclo de escolarida­de. Mas ela estava obstinada, motivo que a levou a apresentou três vezes o pedido. Da primeira vez, o pedido lhe foi recusado porque o salário era baixo. Da segunda vez, a resposta foi negativa porque estava separada do marido italiano, apesar de ter uma filha menor italiana. Luísa tem a certeza que esta terceira vez ela vai obter a bendita cidadania.

O caso de Luca

Caso mais escandalos­o é o de Luca Neves, nascido em Roma em 1988, terceiro filho de um casal de S. Vicente. Ele sempre viveu em Roma onde frequentou a escola até terminar o liceu e inscreveu-se na escola de hotelaria onde fez um curso de cozinheiro. Pela lei italiana, os filhos dos imigrantes, nascidos em Itália, mantém a documentaç­ão dos pais até atingirem os 18 anos. Após a maioridade, têm um ano para apresentar o pedido de cidadania italiana. Passado esse prazo, perdem o direito de ser cidadãos do país que os viu nascer. É o que aconteceu com Luca. Desde esse dia, Luca travou uma batalha de denúncia incessante contra a discrimina­ção contra este caso de absurdo institucio­nal.

A luta de Luca para obter a cidadania transformo­u-se num verdadeiro calvário. Já passaram 14 anos e ainda não obteve cidadania . As suas reivindica­ções passaram por vídeos na sua página, no Facebook e no Youtube, mas também por eventos públicos, entrevista­s publicadas nos jornais mais lidos da Itália e do exterior, incluindo nos principais programas de televisão. Determinad­o como é, Luca dirigiu-se à nossa Embaixada em Roma e conseguiu o apoio desta instituiçã­o, no sentido de sensibiliz­ar e reforçar o seu pedido junto das autoridade­s italianas. Apesar do clamor gerado pelo seu caso, Luca ainda não conseguiu resolver o problema: obtenção daa cidadania italiana.

Ele é um jovem orgulhoso e muito resiliente. Mora com a namorada italiana, mas não quer casar com ela como recurso para obter o documento. Diz que não vai comprar o que é seu por direito. Jamais o faria. Luca foi à sede da Polícia para obter uma autorizaçã­o de residência e recebeu o “Foglio di via”, um convite para deixar a Itália. Ele não obedeceu. Em resposta, recorreu a um advogado e o Juiz da Paz impugnou o “Foglio di via”. Neste momento aguarda que o mesmo Juiz autorize o Comissaria­do a conceder-lhe a autorizaçã­o de residência para dar continuida­de ao seu pedido e também poder exercer a sua profissão de cozinheiro especializ­ado em cozinha internacio­nal, incluindo a cabo-verdiana.

A luta de Luca é uma luta que envolve todos os filhos de imigrantes nascidos em Itália. Uma luta que vem de longe, pois, graças ao contexto sociopolít­ico dos anos 80/90, surgiram várias associaçõe­s italianas e estrangeir­as (incluindo as nossas), em defesa dos direitos dos imigrantes e do reconhecim­ento da cidadania através de “ius soli” ou seja por direito à cidadania no pais onde nasceu. Esta luta iniciou-se com a primeira geração dos cabo-verdianos, juntamente com várias associaçõe­s italianas e de outras nacionalid­ades para continuar hoje com a segunda geração.

As associaçõe­s da segunda geração de diferente países de origem, sobretudo africanos, aumentaram nos últimos anos. Temos dois jovens de origem cabo-verdiana como presidente de duas destas associaçõe­s: O jovem arquiteto Irineu Spencer foi um dos fundadores e presidente da associação “Questa è Roma”, Paulo Barros foi também fundador e atual presidente da “Italians Black” e a associação “Black Lives Matter” conta com uma boa presença de jovens de origem cabo-verdiana. O lema destas associaçõe­s é a luta contra a discrimina­ção institucio­nal, contra o racismo estrutural e pela aprovação de “ius soli “, ou seja, cidadania automática pelos filhos dos imigrantes que nasceram em Itália, e “ius cultura” para os menores que não tendo nascido em Itália possuem ao menos um ciclo de escola italiana.

A resposta desta mensagem à sociedade civil italiana não demorou muito. Enrico Letta, novo secretário do PD (Partido democrátic­o) lançou novamente a proposta de “ius soli”, mas a reação dentro do seu partido não foi muito acolhedora. A direita continua a instrument­alizar e a incendiar os debates nos meios de comunicaçã­o contra imigração.

Já passaram 31 anos e nenhum governo de centro-esquerda conseguiu aprovar nas duas câmaras do Parlamento a proposta de lei que reconhece a cidadania italiana aos filhos de imigrantes nascidos em Itália. Varias foram as tentativas. A primeira apresentad­a em 1999 pela então Ministra da Solidaried­ade, Livia Turco, que foi chumbada. Houve mais tentativas, em 2006, 2009 e 2011, todas sem sucesso. Em 2015, conseguimo­s uma meia vitória: a proposta para a alteração da lei 91/1992 sobre a cidadania foi aprovada na Câmara mas bloqueada no Senado.

De nada serviram as petições a favor da reforma da cidadania, as manifestaç­ões dos imigrantes e da sociedade civil, as várias reuniões de sensibiliz­ação nas escolas italianas, a posição e o apoio das Igrejas e dos intelectua­is, dos estudantes e professore­s. Nem mesmo as sondagens a nível nacional, favoráveis à atribuição da cidadania aos filhos dos imigrantes.

Estamos em 2021 e na mesma situação. Portanto, até que essa lei seja aprovada no Senado, outras vozes de protesto hão de se levantar para reforçar à voz de Luca, na reivindica­ção do direito a serem reconhecid­os como cidadãos desta e não de outra nação.

Atualmente, e um pouco por toda Europa, os partidos da direita estão em ascensão. E, apesar da imigração ser cada vez mais necessária numa Europa envelhecid­a, as vozes desta direita populista e emergente erigiram a imigração e os seus direitos como as causas de todos os males das sociedades europeias. Por esta razão, e neste contexto sociopolít­ico, a nova proposta da lei da cidadania dificilmen­te será aprovada em Itália.

Já passaram 31 anos e nenhum governo de centro-esquerda conseguiu aprovar nas duas câmaras do Parlamento a proposta de lei que reconhece a cidadania italiana aos filhos de imigrantes nascidos em Itália. Varias foram as tentativas

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José Valdemiro Lopes

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