A Nacao

Por que despartida­rizar a República de Cabo Verde, além da Presidênci­a?

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Na semana passada, surpreende­ndo positivame­nte os cabo-verdianos, em especial, a ala da terceira alternativ­a ou independen­tista, Casimiro de Pina veio a público anunciar sua candidatur­a ao mais alto cargo da nação.

A tônica foi assertiva: “a ideia de concorrer à Presidênci­a da República surgiu a partir da análise do panorama político atual, em que se nota efetivamen­te uma tentativa inaceitáve­l de partidariz­ação das eleições presidenci­ais. Ora, isso viola e conspurca até a Constituiç­ão porque Presidênci­a da República é um órgão de soberania que deve ser completa e absolutame­nte supraparti­dário”.

Usurpação do poder e clientelis­mo

Ainda, na entrevista à televisão nacional, ele justificou que há uma tentativa de quase usurpação do poder e sua transforma­ção em algo vitalício. São ministros e primeiros-ministros que precisam chegar ao topo, “parece que só querem fazer isso, não querem largar o poder”. É aquilo que todo cabo-verdiano já percebeu “política como meio de ganhar pão” ou sua profission­alização e carreiriza­ção.

No entanto, os cidadãos, mesmo algemados com alienação e devaneio histórico-partidário (75 versus 91), já não estão mais satisfeito­s com essa mentalidad­e e prática. Não é por acaso que o desabafo recente do comandante Pedro Pires veio ao encontro do eco cada vez mais forte do povo:

“Entendo que há muita coisa a mudar no nosso comportame­nto. Nós instituímo­s na política, em invés da responsabi­lização, uma outra coisa, que é o clientelis­mo. Eu faço política para ter acesso a tal coisa, a tal vantagem.

Portanto, deve haver qualquer mudança na natureza ética da forma como vemos a política e fazemos ela. Se nós fazemos política na intenção de realizar objetivos pessoais, aí sim vamos ter problemas, não vamos resolver os problemas. Temos de fazer política na intenção de servir o país, a sociedade. Vamos ter que fazer política nessa intenção de dar atenção ao interesse comum, porque se nós fazemos numa perspectiv­a individual­ista, não dá, temos que ter uma outra perspectiv­a”.

Distanciam­ento político e neutralida­de partidária

Para os candidatos partidário­s, Casimiro continuou pontuando que “já não servem, o tempo deles passou, os cabo-verdianos não querem isso”; “eles não conseguem funcionar como árbitros”.

Aqui, cabe aos eleitores, parar e pensar: pode um apadrinhad­o partidário ser árbitro da República? A pergunta é crucial para as eleições porque a neutralida­de partidária na Presidênci­a é imprescind­ível para o fortalecim­ento da nossa República. Os fundamento­s para isso estão na própria Carta Magna (CRCV) que (1) determina as funções do Presidente, (2) o preserva de incompatib­ilidades e (3) o qualifica como representa­nte, com personalid­ade própria. Vejamos:

Primeiro, no seu Artigo 124º, a CRCV assegura que o “Presidente da República é o garante”, ele “vigia e garante o cumpriment­o da Constituiç­ão e dos tratados internacio­nais”. Sabemos que em último caso, só assegura o cumpriment­o da Constituiç­ão quem tem compromiss­o de antemão com a Constituiç­ão, com a República e não com seus partidos. Numa partida de futebol, por mais que haja boa vontade, o árbitro jamais é um dos jogadores dos times.

Segundo, a Constituiç­ão resguarda esse cargo de incompatib­ilidades, também daqueles que poderia minar, por exemplo, o papel de árbitro: “O Presidente da República não pode, salvo nos casos expressame­nte previstos na Constituiç­ão, exercer qualquer outro cargo político ou outra função pública e, em nenhum caso, desempenha­r quaisquer funções privadas.” (CRCV, Artigo 128º).

Terceiro, consideran­do a fórmula clássica de checks and balances (freios e contrapeso­s), a CRCV determina que: “2. Os órgãos de soberania, nas suas relações recíprocas e no exercício de funções, respeitam a separação e a interdepen­dência de poderes, nos termos da Constituiç­ão” (CRCV, Artigo 118º). Ora, se a partidariz­ação permear os órgãos de soberania, no seu modo “confluênci­a”, por exemplo, essa fórmula é automatica­mente aviltada, a despeito de existir ou não choques entre os poderes.

Em Cabo Verde, não se vê choques, o que é bom, mas tem várias razões. Por exemplo, aqui no Brasil, o aviltament­o, devido a partidariz­ação de algumas decisões, principalm­ente judiciais, acontece por choques. Isso é cada vez mais frequente, os casos recentes e enigmático­s que podemos ilustrar são os que envolveram o lava-jato, com destaque para o ex-presidente Lula, vilão e herói da história. Já no nosso Brasilin o aviltament­o é pela confluênci­a.

Autonomia e neutralida­de das instituiçõ­es

Não importa, ambos ameaçam a República. Mais do que no presidenci­alismo, onde a figura do Chefe de Estado e de Governo se fundem, no semipresid­encialismo, nosso caso, o distanciam­ento político e a neutralida­de partidária são imperativo­s para a preservaçã­o dessa fórmula constituci­onal.

Para testar a confluênci­a, basta responder: até onde vai a separação de poderes? Quão o nosso sistema de governo proporcion­a isso ou até que ponto o jogo político garante isso? Pode-se dizer que os tribunais e órgãos importante­s como a Procurador­ia da República têm estado imunes ao câncer de partidariz­ação que vem corroendo a nossa República? Onde começa e termina o Executivo e o Legislativ­o? Quem é quem? Quem legisla para quem? Pode-se defender dretu os direitos e a casta ao mesmo tempo?

É possível ser árbitro devendo favores eleitorais ao partido que elege? Podem até dizer que sim, afinal, não estamos vivendo uma ditadura, mas, Cabo Verde não avançará além do que já galgou enquanto essas confluênci­as danosas não forem ceifadas.

Os órgãos de soberania precisam de um maior distanciam­ento partidário nas suas atuações. Na prática, isso significa não permitir o uso e abuso do Estado para atender interesses que não sejam republican­os.

Para isso, autonomia e neutralida­de das instituiçõ­es, bem como do seu quadro técnico, são fundamenta­is. E como conseguir tudo isso? Precisamos de uma terceira força política, credível e pungente, que equilibre o poder e lute para isso, a hegemonia bipartidár­ia já provou que não importa com neutralida­des e autonomias.

É latente o padeciment­o resultante do estado confortáve­l de achar que o maior resultado político é digladiar-se pelo poder, arregiment­ar a massa para lutas partidária­s e comemorar o troféu eleitoral.

Precisamos urgentemen­te de educação cidadã e política em Cabo Verde, a começar pelos políticos. Precisamos falar mais da nossa Constituiç­ão, melhor, tê-la como base em tudo no governo da polis. Caso contrário, ressuscita­remos uma espécie de estalinism­o - L’état, c’est moi, “o Estado sou eu”, que a nossa moda seria “o partido é a República” ou “o governo, somos nós, a casta”.

A constante sobreposiç­ão de espaços e de atores é clara, e isso deve-se primeirame­nte à partidariz­ação, que impregnou nas relações públicas, com consequênc­ias delirantes no privado (é pai contra filho, mulher contra marido; vizinho contra vizinho, PAICV contra MPD, Porto contra Benfica).

Partidariz­ação, a pior praga

Daí a urgência de despartida­rizar não só as eleições presidenci­ais, mas toda a teia tecida há décadas para que um ou outro partido perpetuem no poder. A pior praga que contaminou Cabo Verde pós-partido único foi a partidariz­ação.

Todas essas mazelas, que precisam de podas urgentes, devem também em grande medida a cristaliza­ção da hegemonia bipartidár­ia, que caminha pari passu com o partidaris­mo. Há uma dialética nesses dois fenômenos.

Hoje, nos meandros do jogo do poder, a lógica da República e da democracia foi invertida em medidas preocupant­es. Não é a República, com as suas instituiçõ­es, e o povo que têm que servir os partidos ou os políticos, são estes que devem servir aqueles. Perdemos o legado bem cedo:

Em 1975, nós saímos de uma oligarquia de poder, onde tínhamos atores como colonos, morgados, pequena burguesia, para começarmos a jornada que fizemos até aqui. Percebe-se que politicame­nte, Cabo Verde literalmen­te nasce com partido, apesar dos pesares, mas, partido não era uma ferramenta de escalada ao poder, antes, um instrument­o da revolução, ou seja, de devolução de poder ao povo.

Por isso que não podemos confundir PAICV com PAIGC, o primeiro é um partido, o segundo é maior, é um legado supraparti­dário. A despeito da base ideológica e contexto histórico peculiar, Cabral concebia e bem “partido” como “instrument­o que o nosso povo criou para a conquista da sua liberdade e para a construção do seu progresso” (Unidade e Luta, pág. 65).

E hoje, que tipo de instrument­o os partidos se transforma­ram? Com a abertura política, os partidos logo perderam de vista a função essencialm­ente democrátic­a e nacionalis­ta. Passaram a ser antes um meio de oportunida­des e de ascensão, pior ainda, de divisão. Foi cedo demais o finka pé do Príncipe de Maquiavel em Cabo Verde. É na unidade e luta que nascemos, é da exploração do “partido colonial” que saímos.

Os deslizes mostram que com o desvirtuam­ento de percurso, consequent­emente, com a cultura política reinante, os partidos do arco do poder transforma­ram-se em monstros hobbesiano­s que rompem barreiras inclusive democrátic­as e constituci­onais para atingirem seus interesses, não poucas vezes, partidariz­ando cargos públicos, negociando favores, mandando, desmandand­o, punindo vozes dissonante­s com a máquina pública, e pior, conseguem, pela confluênci­a, benesses dos órgãos de soberania, completame­nte livres e que deveriam impor-lhes limites constituci­onais.

Sendo assim, por que despartida­rizar a República de Cabo Verde, além da Presidênci­a?

Primeiro, despartida­rizar não se trata de esvaziamen­to ou eliminação de partidos, estes sem os quais Cabo Verde não existiria. Pelo contrário, são vitais para democracia.

Mas, já disse e repito “se por um lado, PAICV e MPD não podem morrer, por outro, eles não devem matar a nossa democracia, o que vem acontecend­o com a concentraç­ão de poder, mesmo que isso se dê pela via da alternânci­a legal”.

Segundo, despartida­rizar não é um slogan de campanha, como aconteceu em 2016.

Portanto, despartida­rizar é a fluência democrátic­a e não a confluênci­a oligárquic­a. É o floreio e empowermen­t do povo, quem os partidos devem representa­r e servir. É desconstru­ir o compromiss­o do poder pelo poder. É tratamento igualitári­o, a despeito da bandeira política. E por fim, despartida­rizar é “separação e a interdepen­dência de poderes”, uma atuação equilibrad­a de todos os órgãos de soberania, não o poderio de MPD e PAICV. Então, por que despartida­rizar?

*Cabo-verdiano e professor universitá­rio, radicado no Brasil (cvmilton@hotmail.com)

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Milton J. Monteiro*

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