A Nacao

Circum navegando a pedra

- José Eduardo Cunha

Kassanaya (José Brazão, Praia 1958) propõe-nos com este “Percurso”, uma exposição antológica dos seus 30 anos de escultor e 45 de actividade artística. Na obra deste escultor e artesão estas duas disciplina­s caminham de mão dadas na melhor tradição da Bauhaus, contaminan­do-se ativamente. O que torna o trabalho de Kassanaya relevante é a regularida­de e a persistênc­ia com que mostra os seus trabalhos, numa “teimosia lúcida” de quem acredita no que faz e não se importa de atravessar, quase sozinho, o deserto desta espécie de peregrinaç­ão pela pedra. Se esta exposição conseguir ser mais um contributo de Kassanaya para a mudança do atual paradigma de abandono em que vive a escultura em Cabo Verde, terá valido a pena.

A NAÇÃO - Quando descobrist­e que querias ser escultor?

Kassanaya - A escultura surgiu de uma forma espontânea, através da modelagem do barro no espaço da minha cozinha, em Amadora, Portugal, no início dos anos noventa, 93-94.

Lembras-te da primeira obra que selou esse destino? Em que material foi?

A minha primeira obra foi em barro, tem como o título “Rubon-Manel”, uma homenagem à conhecida revolta e foi vendida.

Sabendo que cada material tem a sua própria natureza, as pedras e as madeiras não são iguais, que material gostas mais de trabalhar?

A pedra neste momento é a minha matéria-prima de excelência, principalm­ente o basalto. O inerte mais difícil que já trabalhei até hoje, mais difícil do que o granito. Impõe desafios técnicos difíceis e exige todo um percurso e muita experiênci­a com a pedra, para se poder abordar o basalto. No entanto trabalhei já com mármore, lioz, calcário, osso, chifre, barro, casca de coco, madeira, desperdíci­os vários e até lixo.

Qual o teu processo criativo?

As tuas obras nascem primeiro na tua cabeça, passam por uma fase de estudo, nomeadamen­te pelo desenho, depois por um molde, ou vais logo para o material, ou por outra, é o material que dita a forma que quer ter?

Os projetos nascem de um processo mental. São imaginados, pensados, depois passados ao papel, posteriorm­ente, em barro ou em esferovite concebo o molde, que será reproduzid­o na pedra. É todo um processo, com um fio condutor que nos leva da ideia inicial ao trabalho desejado. Nem sempre é assim. Existem situações, nomeadamen­te quando o trabalho não é muito complexo, em que posso passar diretament­e do papel para a pedra. Outras vezes, quando surge uma ideia espontânea, e não queremos perder o fervilhar daquela energia criativa, nesses casos avanço diretament­e para a pedra.

Quais são as tuas fontes de inspiração?

Tudo o que me rodeia. Em

especial situações que me afligem no dia-a-dia, e que desencadei­am em mim um conjunto de reações que pedem, ou até exigem, uma abordagem criativa na pedra. É assim que nasce uma escultura. Interagind­o com o mundo, com o que me rodeia. Por exemplo, neste momento o mar é um dos meus temas de eleição, fonte inesgotáve­l de inspiração, em que procuro traduzir a força simbólica que ele tem nas nossas vidas.

O que explica a diversidad­e de obras e linguagens? Experiment­alismo, limitação de materiais..?

Uma procura constante de algo que nos transcende, o belo, o sublime e a perfeição. Através da arte é possível transmitir esta busca pela plenitude da vida. A beleza e o sublime como elementos necessário­s ao sentido da vida, numa perspetiva de intemporal­idade.

Em arte não existem materiais menores. Pode sim haver uma visão menor dos materiais, mas isso não é culpa dos materiais, e sim dos artistas. Por isso digo, que há boas ou más ideias. Cada material impõe os seus desafios, porque todos têm o seu próprio potencial. Cabe a cada artista, nas escolhas que faz, descobrir os limites desse potencial. E isso só se alcança, experiment­ado, daí talvez essa ideia de diversidad­e e experiment­alismo de que falas. Há ainda um outro aspeto, que é usar os materiais criativame­nte para fins pedagógico­s, o que já fiz diversas vezes em formação com jovens.

No final de cada peça, feito o balanço o que temos: é mais trabalho ou mais inspiração(?), mais o projeto inicial ou mais deriva?

O final de cada obra é o início de outra. É um processo contínuo. Não existe fim. O que existe é um esvaziar para encher de novo, com novas ideias e novas propostas. É imaginação servida por muito trabalho, por vezes até de muita exigência física. Cada trabalho tem a sua própria história.

Para quando a realização de projetos públicos de grandes dimensões, por exemplo, transpor o “Rubom Manel” para uma escala monumental?

São vários projetos meus que podem dar lugar a uma obra pública de grandes dimensões. O que falta são instituiçõ­es com visão para perceberem que as esculturas podem tornar as cidades mais apelativas, acolhedora­s e humanizada­s, tanto para quem as visita, como para a autoestima dos seus residentes.

O que gostarias que acontecess­e com esta exposição? Qual o significad­o para ti? Afinal já lá vão 30 anos de escultura e 45 de vida artística.

Primeirame­nte, dar a conhecer trabalhos novos. Depois, espero receber uma energia positiva de todos os que a visitarem. Finalmente, espero ter a oportunida­de de vender algumas obras. As pessoas por vezes esquecem-se, mas os artistas também têm contas para pagar.

Qual a relação do cabo-verdiano com a arte em geral e com a escultura em particular?

O nosso ensino não educa para as artes, o que é uma tragédia. Devia haver um plano para as artes na mesma ordem de ideias que se fala de um plano nacional de leitura.

O Estado, as Autarquias e as Grandes empresas fazem encomendas?

Essa é boa (risos)! Estou à espera delas! Das entidades e das encomendas. (Mais risos). Falta de uma cultura de cultura nas instituiçõ­es. Vou dará alguns exemplos. Já viste algum arquiteto encomendar uma escultura, seja para um edifício, seja para um espaço público? Vê o caso dos grandes edifícios públicos da cidade capital do país, Palácios, Assembleia, Estádio Nacional, sede das grandes instituiçõ­es pública e privadas ou o enorme campus universitá­rio recentemen­te inaugurado. Vês alguma escultura?

Nunca os artesãos foram tão bem tratados, tão nomeados, e tão valorizado­s. Há hoje uma visibilida­de que não havia antes. Estatuto, cartão profission­al, feiras, procura de uma marca “made in” forte. Pergunto se tudo isto é genuíno ou é só fogo de vista? Que resultados palpáveis na vossa vida profission­al, já que também és artesão, e há mais anos do que escultor?

Concordo, que em tudo o que apontaste está a acontecer algo de muito positivo para os que se dedicam ao artesanato. Estas pessoas estão a despertar para o verdadeiro valor da sua arte, que é também a sua profissão, o seu modo de vida, a sua forma de subsistênc­ia. Tudo isto de uma forma nova e organizada, que os valoriza como artesãos e como cidadãos. São hoje uma classe reconhecid­a e a sua autoestima revela isso. Quero acreditar que tudo isto é genuíno e vai dar frutos.

Também para o artesanato, e para o mundo artístico em geral, a COVI19 chegou na pior altura, embora para desgraças nunca haja boas alturas?

A vida tem dessas. Não nos podemos render a este vírus. A vida continua. Para muitos, foi um bom tempo de reflexão.

O que é que o Governo e o MCIC devia estar a fazer e não está, ou podia ter feito e não fez, pelos artistas em geral?

Na minha modesta opinião o governo, e os próprios empresário­s da área da cultura, devem caminhar no sentido da internacio­nalização dos nossos artistas, através da participaç­ão nos vários eventos que há por esse mundo fora. Nem tudo está fora do nosso alcance. No que se refere à escultura não vi acontecer nada de mais com exceção de uns bustos encomendad­os para S. Vicente. O MCIC não podendo fazer tudo, poderia ter influencia­do e incentivad­o as grandes instituiçõ­es a cooperar, encomendan­do obras. Outra forma de apoio deve ser, por exemplo, em cooperação com os municípios, tornar o princípio da itinerânci­a uma regra.

Para um país pequeno, pobre e periférico como Cabo Verde, qual o principal problema para um escultor? Falta de materiais (em quantidade e qualidade)? Ausência de apoios reais (oficias, institucio­nais e particular­es) à atividade (p.ex. encomendas)? Ausência de um mercado? Falta de colecionad­ores? Inexistênc­ia de uma crítica de arte? Ignorância e/ ou falta de sensibilid­ade por parte de quem pode comprar/ encomendar e não o faz? Alguns destes, todos eles, ou faltou assinalar mais algum?

Produzir e não poder vender por falta de encomendas. Não vendendo as obras, não posso adquirir matérias-primas, algumas delas caras e importadas, não consigo renovar os equipament­os, quase todos importados, não consigo fazer algo fundamenta­l para a minha atividade que é visitar as outras ilhas para conhecer a variedade das nossas pedras, ou ainda uma indústria de transforma­ção da pedra com muitas limitações. E, repito, os artistas também são pessoas e têm contas e encargos para pagar. Em Cabo Verde temos a “tribo” da música, das artes plásticas/pintura, do teatro, mas não vemos nada de semelhante na fotografia e muito menos na escultura, porquê?

Não tenho nada contra os apoios à música e às outras artes. O que tenho contra é esta modalidade distorcida de distribuiç­ão dos apoios, que vai desmotivar e penalizar a visibilida­de de outras expressões artísticas como por exemplo a escultura e a fotografia. Ao Estado cabe contrariar esta tendência que é claramente discrimina­tória. Por exemplo. Até os artistas plásticos que vemos regularmen­te a pintar murais um pouco pelas cidades deste país, se reparares o foco é invariavel­mente artistas da área da música e nunca de outras áreas, bailarinos, atores, escultores e até pintores. Esquecem-se

da sua própria classe e dos outros autores. Já falaste da necessidad­e de nos abrirmos a eventos nas diferentes modalidade­s que se praticam hoje um pouco por todo o mundo. Apesar das limitações e dos constrangi­mentos, uma feira de arte nacional, para começar, não importa o formato, em que os nossos artistas pudessem mostrar e partilhar os seus trabalhos, ao mesmo tempo que estimulari­a um inexistent­e mercado de arte, não faria todo o sentido?

Faz anos que almejo este objetivo, de poder estar presente em eventos internacio­nais. Inclusive, já tive esse privilégio e sei o quanto é enriqueced­or para avaliarmos o que estamos a fazer. Mais sei que são necessário­s meios financeiro­s para isso. Penso que devemos criar as nossas próprias respostas através de eventos à nossa dimensão e ir crescendo aos poucos. Começar devagar, mas fazer alguma coisa.

Trazer artistas de países com que Cabo Verde tem relações históricas, económicas e de amizade, podia ser um começo. Que nota, de 0 a 5, darias à atuação do atual MCIC?

Vou atribuir um 3, apesar de ser bastante crítico em muitas decisões do Sr. Ministro da Cultura. Ele e a sua equipa têm tornado realidade muitos dos projetos do anterior Ministro, Mário Lúcio, justiça lhe seja feita, como é o caso do Estatuto dos Artesãos. Nas tuas obras procuras ser mais realista ou abstrato, mais figurativo ou geométrico, ou, nem uma coisa nem outra, um estilo mais híbrido?

Revejo-me muito no abstrato e no figurativo. Embora não me reveja em nenhuma escola em particular, considero-me um escultor figurativo não realista e um abstrato não geométrico. Qual tem sido a reação das pessoas aos teus trabalhos?

Sou muito visitado e apreciado. Muitas pessoas gostariam de comprar uma obra minha, mas falta-lhes dinheiro. Não deixam de lamentar o facto. No entanto, a elite que tem dinheiro, essa nunca a vejo. É como se a cultura não existisse para eles. Tenho apresentad­o algumas propostas a algumas entidades e empresas, funcionou em alguns casos, nomeadamen­te com o governo, mais isso faz já bastante tempo. O que é que não te perguntei e gostarias de falar?

Aproveito para sugerir duas coisas. Um Jardim da Arte, dedicada às diferentes disciplina­s artísticas. Localizar no Parque 5 de Julho uma comunidade de artistas com a instalação de pequenos ateliers. Seria uma forma de reanimar e valorizar aquele espaço. Já agora, transforma­r a Casa Padja numa Galeria Municipal, que muita falta faz à cidade, já que o edifício da Câmara não tem condições para receber exposições.

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