A Nacao

“Antes da eleição nós ê gente, depois indigente”

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A Iniciativa Outros Bairros (IOB) foi pensada para testar novas formas na reabilitaç­ão de zonas autoconstr­uídas de Cabo Verde a partir do modo de vida da população local. Surgiu, por isso, com o potencial de se tornar num programa de Estado, a seu tempo aplicável a todo o território cabo-verdiano.

Desde 2019, confronta-se com a ideia, quase geral, de que a produção de habitação em massa, como o modelo falido do Programa Casa Para Todos, é solução para aqueles que vulgarment­e são adjetivado­s de ilegais ou clandestin­os, o que ainda revela pouco interesse dos poderes públicos no espaço público.

Contrariam­ente ao que era de esperar, também o Plano Nacional de Habitação de Cabo Verde para o horizonte 2030, PLANAH, repete a estratégia e sugere novamente a produção, quase exclusiva, de moradia social nova, ignorando, quase na totalidade, o peso enorme dos bairros autoconstr­uídos que tantas melhorias requerem para que se cumpram os direitos básicos destes cidadãos.

A IOB, durante a fase piloto, deslocaliz­ou o investimen­to público para as zonas de rápido cresciment­o e potenciou a contrataçã­o pública de empreiteir­os das zonas, a utilização de mão de obra e a economia locais.

A atenção ao processo e aos moradores, seu modo de vida, saberes e cosmovisão, permitiu trabalhar sem uma metodologi­a previament­e definida, sabendo apenas de antemão, que os princípios de atuação em cada lugar não se encerram no processo e se fortalecem quanto mais constante, intensa e viva for a escuta dessa população.

Trabalhamo­s com instituiçõ­es universitá­rias de ensino de arquitetur­a e engenharia pelo envolvimen­to dos técnicos que assessorar­am os projetos técnicos, de estagiário­s e recém-licenciado­s que, hoje em dia, se constituem como uma força conhecedor­a de um tema até aqui pouco falado. A própria equipa nuclear da IOB absorveu alguns desses profission­ais.

Ao longo desta fase também foi importante o trabalho com as entidades fornecedor­as de água e luz e com a Câmara Municipal de São Vicente. Sobre a última, cabe refletir que demonstrou um conhecimen­to redutor da realidade infraestru­tural e social da zona. Até ao momento, tem demonstrad­o extrema incapacida­de de desbloquea­r processos burocrátic­os de legalizaçã­o de lotes e casas, processos esses tão aguardados por pessoas que, em alguns casos, esperam mais de dez anos por aquele que é o único garante de estabilida­de e de abandono de situações de extrema vulnerabil­idade.

Ir para o terreno apenas com uma ideia que não depende só de uma equipa técnica exige apenas uma certeza, escutar os moradores, escutarmo-nos todos para discutir uma estratégia que propõe decisões conjuntas.

Surge então a questão: Afinal o que é e de quem é a IOB?

A IOB não é um programa de produção de habitação social, mas de reabilitaç­ão do espaço público de áreas autoconstr­uídas, logo, uma ação coletiva de vários intervenie­ntes, sejam eles técnicos, parceiros ou moradores.

Se, por um lado, é certo que se prevê uma obra que é financiada pelo MIOTH, por outro lado, o desenho e o processo são participat­ivos, bem como, se tenta tornar expressiva a memória coletiva do lugar e a forma como se dá a transforma­ção que acontece. Como exemplo, veja-se como a restituiçã­o da praça nho Jon, o campo de basquete ou os espaços de estar coletivos resignific­am as relações em espaço público, o sentido coletivo, a autoestima e afeto comum. Estes processos promovem uma apropriaçã­o da Iniciativa por parte dos moradores que o MIOTH não controla - como já era esperado - nem o deve fazer.

O desenho da Iniciativa é rizomático e cresce como uma raiz.

Aprofunda-se e sustenta-se no existente e nos desígnios dos moradores, contrarian­do a habitual tendência de chamar comunidade a lugares fisicament­e delimitado­s, de precaridad­e física, social e habitacion­al onde vivem pessoas com limitadíss­imos recursos e mergulhada­s na invisibili­dade. Alavanca-se na ativação dos espaços públicos para construir o espírito comunitári­o e o comum.

A insistênci­a no processo, assim como, na desconstru­ção da forma institucio­nal que habitualme­nte é dada às iniciativa­s públicas contribuiu para que IOB aproximass­e os moradores dos poderes públicos, bem como, possibilit­asse a participaç­ão e a visibilida­de que lhes abre o caminho da cidadania.

Depois de enormes dificuldad­es e conflitos IOB abriu-se a todos os assuntos, pelo que, é urgente que não se abandone o caminho da reabilitaç­ão por retóricas antigas, normalment­e assentes na construção de deficits habitacion­ais que justificam a construção de enormes conjuntos habitacion­ais, caros, desajustad­os do modo de vida local e que apenas alimentam o interesse do complexo imobiliári­o/financeiro.

Falando de financiame­nto e de custos importa salientar o esforço feito pelo Governo de Cabo Verde para aqui chegar. Se, por um lado, está dado o exemplo de como apenas duzentos mil euros gastos até hoje em obras, aproximada­mente 30€/m2, afetaram diretament­e 171 famílias no Alto de Bomba, por outro lado, o caráter público da operação é determinan­te para a independên­cia e autonomia do processo. E as razões são claras e fáceis de identifica­r.

Primeiro, sempre que financiado­s pelas agências de cooperação internacio­nais os projetos trazem um programa estabeleci­do, duram cerca de três anos e raramente se tornaram numa política pública. No caso da IOB a base criada permite ao Governo desenhar uma política pública com o real interesse da população, através de um processo participat­ivo que agora o conhece, como também dotar-se de argumentos para eventuais negociaçõe­s com possíveis financiado­res sem que se sujeite a estratégia­s importadas de outras geografias.

Segundo, porque pode haver a tentação de parcerias com privados, nomeadamen­te como compensaçã­o de vantagens dadas a investidor­es da área do turismo ou da imobiliári­a. Neste caso os riscos de fracasso são maiores. Vejamos. Se já aludimos para a extrema dificuldad­e dos habitantes legalizare­m os seus terrenos e casas a omissão do Estado e a sua substituiç­ão por doações de privados fomenta processos de gentrifica­ção que, normalment­e, resultam em violentas expulsões das populações dos seus território­s/lugares. Além disso, a excelente localizaçã­o onde muitas vezes se encontram, como no caso do Alto de Bomba, atual lugar de. atuação da IOB, também é motivo para o interesse do investimen­to privado. Isto, em geral, explica o bloqueio burocrátic­o criado pelo poder municipal que coloca estas zonas como território­s de reserva de futuras operações turísticas ou imobiliári­as.

Por isso, é uma presença forte do Estado na construção de políticas públicas que entendam a urgência de olhar a urbanizaçã­o informal como um processo de urbanizaçã­o que garante a proteção social dos seus moradores.

Acabada a fase piloto, nós, equipa técnica podemos dizer que nos suspendemo­s o mais possível para vivermos coletivame­nte o processo e não projetarmo­s o nosso entendimen­to da vida, externo ao lugar e fundado noutra matriz socio-económico, no coletivo de moradores.

Mas em oposição, forçamo-nos a aprofundar a investigaç­ão no campo da arquitetur­a e urbanismo e disseminar o conhecimen­to em universida­des nacionais e internacio­nais, em congressos e encontros científico­s, bem como, colaboramo­s sempre com aqueles que em doutoramen­tos, mestrados ou licenciatu­ras se interessar­am pela IOB.

Construíra­m-se relações que também projetaram o país e alargam a pertença dos moradores parar onde quase nunca acontecia.

Sentimos que o movimento que se apropriou de IOB é dos cidadãos das zonas e que nos cabe continuar cúmplices deste lugar coletivo de construção de sociedade e de vida. Cúmplices de um tempo que é novo e que visibiliza vidas até aqui invisíveis. Cúmplices do grito de uma moradora que em entrevista recente ao Porto Canal afirmara que antes das eleições os moradores são gente, depois indigentes. Tudo isto junta a nossa inquietaçã­o à sua voz porque nesta obra aberta que é a urbanizaçã­o Outros Bairros está parado, por terminar, sem datas e sem respostas. Não terminou no Alto de Bomba e a esperança aberta aos moradores está à beira de desaparece­r. Por isso, paira novamente o abismo do desemprego, da falta de acesso à infraestru­tura e da perda da autoestima conquistad­a. As obras ainda não chegaram a Fernando de Pó, nem a Covada de Bruxa. Não se tornou no tão anunciado programa de Estado, independen­temente de qual o Governo.

É urgente que os técnicos da Iniciativa Outros Bairros, os novos arquitetos cabo-verdianos, os cidadãos e, sobretudo, aqueles que moram nas áreas afetadas pela IOB vejam o seu empenho nesta causa conjunta reconhecid­o pelas atuais lideranças políticas do país. Que o já reconhecid­o esforço do governo se fortaleça nos resultados alcançados no Alto de Bomba e não se desperdice politicame­nte a oportunida­de criada. Que se desbloquei­e o financiame­nto da IOB porque a ela todos têm direito. É urgente, mesmo na conjuntura atual, que não se desperdice esta oportunida­de e se perscrutem os objetivos iniciais para – noutras zonas, cidades ou ilhas - se abrir a possibilid­ade de um tempo transforma­dor e de melhores condições de vida para todos/as.

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Nuno Flores

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