A Nacao

Crónica de uma privatizaç­ão “intranspar­ente”

Para que não haja dúvidas, A NAÇÃO apresenta, a seguir, a retrospect­iva do processo de privatizaç­ão e publica uma cópia do contrato, traduzido para português (ver E9 a E11).

- Daniel Almeida

Em Agosto de 2017 o Governo de Cabo Verde revelou ao país que tinha encontrado a solução para a TACV em tempo recorde.

Organizou uma cerimónia transmitid­a pela TCV para assinar com um representa­nte do Grupo Icelandair um contrato que fazia crer tratar-se de uma parceria, que passava por relançar, internacio­nalmente, a transporta­dora aérea cabo-verdiana.

Personalid­ades de várias ilhas e órgãos de imprensa foram convidadas para assistir à assinatura do referido acordo para a gestão da TACV, acto esse presenciad­o pelos ministros Finanças, Olavo Correia, e pelo então ministro da Economia, Turismo, Transporte­s, Emprego e Formação Profission­al, José Gonçalves.

“Show off” na TCV em 2017

Não foi preciso muito tempo para se perceber que afinal tratava-se apenas da assinatura de um “contrato de gestão” entre Estado de Cabo Verde e o Grupo Icelandair e que por isso aquela cerimónia não passava de um “show off”.

O contrato nunca foi publicado nem disponibil­izado ao Parlamento e menos ainda à comunicaçã­o social. Em mais de uma ocasião, na Assembleia Nacional, tanto Ulisses Correia e Silva como Olavo Correia alegaram a “confidenci­alidade” para não revelar o que estava acordado com a Icelandair, ou Loftleidir Icelandic.

O que se soube, até à semana passada, foi o que fora anunciado pelo Governo, através de Olavo Correia, numa entrevista à TCV, no Jornal da Noite, na data da assinatura do primeiro contrato, Agosto de 2017.

Esse governante explicou que a Icelandair deveria gerir a TACV por um ano, devendo elaborar o Plano de Negócios para transforma­r a companhia, modernizá-la, saneá-la, preparando-a para a privatizaç­ão e apresentar ao Governo soluções para a dívida histórica que rondava os 10 milhões de contos, sem nunca ter publicado o relatório e contas da empresa referente a 2015 e 2016.

De acordo com a mesma narrativa, o Plano de Negócios deveria transforma­r a TACV numa das melhores companhias do continente, a ilha do Sal num Hub aéreo para servir dezenas de rotas entre a África, Europa e Américas do Norte e do Sul.

Delírio de 11 Boeings

A nova TACV, transforma­da em CVA (Cabo Verde Airlines) operaria inicialmen­te com cinco Boeings 757-200 para no final do contrato estar a operar com 11 Boeings, e que, no final desse período, apresentar­ia resultados positivos em torno de 2.500 milhões de escudos. (No auge do delírio entretanto instalado José Gonçalves chegou a anunciar a vinda de onze aviões de longo curso para viabilizar a CVA).

Nunca se vincou que se estava diante de um contrato de gestão por ajuste directo ao Grupo Icelandair, tendo este colocado inicialmen­te os seus aviões, com tripulação, manutenção e seguros (ACMI – contrato com Aircraft Crew, Maintenanc­e and Insurance) e assumido a gestão da empresa, mantendo-se o Conselho de Administra­ção empossado em Abril de 2016 nos respectivo­s cargos.

Aos poucos o pessoal de cabine da Icelandair foi sendo substituíd­o pelo da TACV e em Janeiro de 2018 as operações da CVA concentrar­am-se no Sal, tendo o Governo anunciado, na altura, que o Aeroporto Internacio­nal Amílcar Cabral já era um Hub Aéreo e que o pessoal da TACV seria transferid­o para essa ilha.

Os voos a partir de São Vicente e da Boa Vista foram descontinu­ados e os para o Aeroporto da Praia foram também descontinu­ados, para depois serem retomados, ainda assim, em número muito reduzido. Neste caso para, claramente, anular as críticas dos utentes do maior mercado interno, Santiago. Com muito menos capacidade de pressão, os passageiro­s de São Vicente continuara­m ignorados, apesar das críticas e até manifestaç­ões.

Alertas de especialis­tas

Apesar do entusiamo vivido em torno da “solução” quase mágica (Olavo Correia chegou a gabar-se no Parlamento: “isto não é para quem quer é para quem pode!”), não faltaram, porém, alertas de entendidos na matéria sobre vários aspectos do negócio. À partida, não se conhecendo os termos do contrato, o problema da transparên­cia logo passou a ocupar o centro das preocupaçõ­es.

No mínimo, como acabou por se verificar, ao entrar na TACV, a Icelandair passou a estar em situação vantajosa, por conhecer como ninguém os dados e os números da companhia, podendo inclusive estabelece­r os preços que quisesse para a sua aquisição final.

Aviões velhos e descontinu­ados

Nas suas reservas, os críticos questionav­am ainda o interesse da TACV no leasing dos Boeings da Icelandair por serem aparelhos já velhos (com 24 a 27 anos de idade), descontinu­ados e porque a própria Icelandair vinha anunciando há anos a sua intenção de substituir paulatinam­ente a sua frota para 737-800, por se tratar de um aparelho mais moderno e eficiente.

No dizer dos especialis­tas, os custos de manutenção seriam elevados e seriam pouco eficientes em termos energético­s, um dos aspectos que as companhias aéreas perseguem obsessivam­ente por constituir um dos principais factores de custo das transporta­doras do sector.

Pessoal da TACV em terra e a receber os salários

Questionou-se também a necessidad­e de contratos leasing ACMI, tendo em conta os seus custos, deixando todo o pessoal da TACV em terra e a receber os salários.

Questionou-se ainda os preços do leasing dos aviões que, segundo algumas informaçõe­s de dentro da companhia, eram leoninos e foram determinad­os pela Icelandair.

Sendo o Grupo Icelandair o gestor contratado e lessor (locador) em simultâneo, como seria assegurado que as opções feitas em matéria de frota: tipo, idade, eficiência, número de aparelhos contratado­s, rotas a serem operadas, custos dos contratos de seguros, de manutenção, pessoal tripulante, motorizaçã­o, eram os mais favoráveis aos interesses da TACV?

Abandono do mercado éctnico e dos aeroportos da Praia e São Vicente

Argumentou-se igualmente que a mera transferên­cia da sede das operações da TACV para o Sal não transforma­ria o aeroporto dessa ilha num Hub aéreo, mas sim e apenas o hub da companhia.

E, mesmo assim, não havendo acordos de serviços entre a TACV/ CVA com a Binter, a única operadora doméstica e acordos de “code share” com companhias africanas e outras que viabilizas­sem a alimentaçã­o dos voos da CVA com passageiro­s provenient­e de todas as ilhas e do continente africano, Brasil e Europa, dificilmen­te os fluxos de passageiro­s seriam os pretendido­s e necessário­s para alimentar um Hub Aéreo.

O abandono do mercado étnico, dos aeroportos internacio­nais (Sal, São Vicente e Praia) e a aposta no mercado brasileiro para as operações em stopover, com preços altamente subsidiado­s, segundo os especialis­tas, não pareciam boas opções nem tão-pouco eram sustentáve­is financeira­mente.

Questionav­a-se igualmente qual era, afinal, o papel do Conselho de Administra­ção da TACV/ CVA nesse novo contexto e se o perfil era mais adequado.

O Governo nunca respondeu a essas inquietaçõ­es. Escusou-se sempre na “clausula da confidenci­alidade” que Ulisses Correia e Silva tem agora o desplante de dizer que o contrato não é secreto.

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