Crónica de uma privatização “intransparente”
Para que não haja dúvidas, A NAÇÃO apresenta, a seguir, a retrospectiva do processo de privatização e publica uma cópia do contrato, traduzido para português (ver E9 a E11).
Em Agosto de 2017 o Governo de Cabo Verde revelou ao país que tinha encontrado a solução para a TACV em tempo recorde.
Organizou uma cerimónia transmitida pela TCV para assinar com um representante do Grupo Icelandair um contrato que fazia crer tratar-se de uma parceria, que passava por relançar, internacionalmente, a transportadora aérea cabo-verdiana.
Personalidades de várias ilhas e órgãos de imprensa foram convidadas para assistir à assinatura do referido acordo para a gestão da TACV, acto esse presenciado pelos ministros Finanças, Olavo Correia, e pelo então ministro da Economia, Turismo, Transportes, Emprego e Formação Profissional, José Gonçalves.
“Show off” na TCV em 2017
Não foi preciso muito tempo para se perceber que afinal tratava-se apenas da assinatura de um “contrato de gestão” entre Estado de Cabo Verde e o Grupo Icelandair e que por isso aquela cerimónia não passava de um “show off”.
O contrato nunca foi publicado nem disponibilizado ao Parlamento e menos ainda à comunicação social. Em mais de uma ocasião, na Assembleia Nacional, tanto Ulisses Correia e Silva como Olavo Correia alegaram a “confidencialidade” para não revelar o que estava acordado com a Icelandair, ou Loftleidir Icelandic.
O que se soube, até à semana passada, foi o que fora anunciado pelo Governo, através de Olavo Correia, numa entrevista à TCV, no Jornal da Noite, na data da assinatura do primeiro contrato, Agosto de 2017.
Esse governante explicou que a Icelandair deveria gerir a TACV por um ano, devendo elaborar o Plano de Negócios para transformar a companhia, modernizá-la, saneá-la, preparando-a para a privatização e apresentar ao Governo soluções para a dívida histórica que rondava os 10 milhões de contos, sem nunca ter publicado o relatório e contas da empresa referente a 2015 e 2016.
De acordo com a mesma narrativa, o Plano de Negócios deveria transformar a TACV numa das melhores companhias do continente, a ilha do Sal num Hub aéreo para servir dezenas de rotas entre a África, Europa e Américas do Norte e do Sul.
Delírio de 11 Boeings
A nova TACV, transformada em CVA (Cabo Verde Airlines) operaria inicialmente com cinco Boeings 757-200 para no final do contrato estar a operar com 11 Boeings, e que, no final desse período, apresentaria resultados positivos em torno de 2.500 milhões de escudos. (No auge do delírio entretanto instalado José Gonçalves chegou a anunciar a vinda de onze aviões de longo curso para viabilizar a CVA).
Nunca se vincou que se estava diante de um contrato de gestão por ajuste directo ao Grupo Icelandair, tendo este colocado inicialmente os seus aviões, com tripulação, manutenção e seguros (ACMI – contrato com Aircraft Crew, Maintenance and Insurance) e assumido a gestão da empresa, mantendo-se o Conselho de Administração empossado em Abril de 2016 nos respectivos cargos.
Aos poucos o pessoal de cabine da Icelandair foi sendo substituído pelo da TACV e em Janeiro de 2018 as operações da CVA concentraram-se no Sal, tendo o Governo anunciado, na altura, que o Aeroporto Internacional Amílcar Cabral já era um Hub Aéreo e que o pessoal da TACV seria transferido para essa ilha.
Os voos a partir de São Vicente e da Boa Vista foram descontinuados e os para o Aeroporto da Praia foram também descontinuados, para depois serem retomados, ainda assim, em número muito reduzido. Neste caso para, claramente, anular as críticas dos utentes do maior mercado interno, Santiago. Com muito menos capacidade de pressão, os passageiros de São Vicente continuaram ignorados, apesar das críticas e até manifestações.
Alertas de especialistas
Apesar do entusiamo vivido em torno da “solução” quase mágica (Olavo Correia chegou a gabar-se no Parlamento: “isto não é para quem quer é para quem pode!”), não faltaram, porém, alertas de entendidos na matéria sobre vários aspectos do negócio. À partida, não se conhecendo os termos do contrato, o problema da transparência logo passou a ocupar o centro das preocupações.
No mínimo, como acabou por se verificar, ao entrar na TACV, a Icelandair passou a estar em situação vantajosa, por conhecer como ninguém os dados e os números da companhia, podendo inclusive estabelecer os preços que quisesse para a sua aquisição final.
Aviões velhos e descontinuados
Nas suas reservas, os críticos questionavam ainda o interesse da TACV no leasing dos Boeings da Icelandair por serem aparelhos já velhos (com 24 a 27 anos de idade), descontinuados e porque a própria Icelandair vinha anunciando há anos a sua intenção de substituir paulatinamente a sua frota para 737-800, por se tratar de um aparelho mais moderno e eficiente.
No dizer dos especialistas, os custos de manutenção seriam elevados e seriam pouco eficientes em termos energéticos, um dos aspectos que as companhias aéreas perseguem obsessivamente por constituir um dos principais factores de custo das transportadoras do sector.
Pessoal da TACV em terra e a receber os salários
Questionou-se também a necessidade de contratos leasing ACMI, tendo em conta os seus custos, deixando todo o pessoal da TACV em terra e a receber os salários.
Questionou-se ainda os preços do leasing dos aviões que, segundo algumas informações de dentro da companhia, eram leoninos e foram determinados pela Icelandair.
Sendo o Grupo Icelandair o gestor contratado e lessor (locador) em simultâneo, como seria assegurado que as opções feitas em matéria de frota: tipo, idade, eficiência, número de aparelhos contratados, rotas a serem operadas, custos dos contratos de seguros, de manutenção, pessoal tripulante, motorização, eram os mais favoráveis aos interesses da TACV?
Abandono do mercado éctnico e dos aeroportos da Praia e São Vicente
Argumentou-se igualmente que a mera transferência da sede das operações da TACV para o Sal não transformaria o aeroporto dessa ilha num Hub aéreo, mas sim e apenas o hub da companhia.
E, mesmo assim, não havendo acordos de serviços entre a TACV/ CVA com a Binter, a única operadora doméstica e acordos de “code share” com companhias africanas e outras que viabilizassem a alimentação dos voos da CVA com passageiros proveniente de todas as ilhas e do continente africano, Brasil e Europa, dificilmente os fluxos de passageiros seriam os pretendidos e necessários para alimentar um Hub Aéreo.
O abandono do mercado étnico, dos aeroportos internacionais (Sal, São Vicente e Praia) e a aposta no mercado brasileiro para as operações em stopover, com preços altamente subsidiados, segundo os especialistas, não pareciam boas opções nem tão-pouco eram sustentáveis financeiramente.
Questionava-se igualmente qual era, afinal, o papel do Conselho de Administração da TACV/ CVA nesse novo contexto e se o perfil era mais adequado.
O Governo nunca respondeu a essas inquietações. Escusou-se sempre na “clausula da confidencialidade” que Ulisses Correia e Silva tem agora o desplante de dizer que o contrato não é secreto.