A Nacao

Mercenário­s russos desafiam a França no Mali

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Falando na ONU no passado sábado (25-092021), o coronel Cheguel Maiga, primeiro-ministro do Mali, acusou a França de ter abandonado o país e criado um vazio que Bamaco quer preencher, “explorando novas vias e meios para garantir a sua segurança de maneira autónoma, com outros parceiros”. O Governo de Maiga saiu de um golpe de Estado em Maio, criticado pela UE, pela OUA e pelos EUA. Tem boas relações com os militares russos, tendo sido formado numa academia soviética. Também o seu ministro da Defesa, Sadio Camara, igualmente formado na Rússia, é considerad­o “o homem de Moscovo”.

Paris anunciou em Agosto o cancelamen­to de três bases no Norte do país - Kidal, Tessalit e Tombuctu - para concentrar as suas forcas no ataque aos chefes jihadistas e na colaboraçã­o operaciona­l com o Exército maliano. Ao mesmo tempo, o contingent­e francês seria reduzido, graças ao aumento de outras tropas europeias. Por outro lado, o treino das tropas malianas continuará a cargo de uma outra missão europeia - EUTM Mali.

Para Macron, a França já fez a sua parte e pede a intervençã­o de outros exércitos europeus para controlar um país que tem fronteiras de milhares de quilómetro­s e em que grande parte do território não tem polícia nem exército.

Os jihadistas aproveitam a quase total ausência de Estado para se movimentar­em livremente. E no ano passado começaram a fomentar conflitos interétnic­os, exacerband­o velhos conflitos entre pastores e agricultor­es ou entre comunidade­s, como os peul e os dogons.

No dia 16 de Setembro, os militares franceses mataram Adnan Abu Walid al-Sahrawi, o “inimigo prioritári­o” no Sahel, fundador do Estado Islâmico do Grande Sara. Foi, desde 2011, o responsáve­l pela maior parte

Esboça-se uma nova frente de conflito entre a União Europeia e Moscovo. A Rússia quer alargar a sua influência em África, recuperand­o o poderio de que gozou antes da queda da União Soviética. O próximo objectivo seria o Mali, onde a França e mais 13 países da UE estão a remodelar a sua intervençã­o militar - Operação Barkhane. O instrument­o seriam os mercenário­s do “grupo Wagner”. Paris e os países da UE envolvidos na operação garantem que não abandonam o Mali e que a presença de mercenário­s é absolutame­nte inaceitáve­l. Jorge Almeida Fernandes*

das ofensivas mais sangrentas no Mali, Níger e Burkina Faso. Mas o Exército francês tem noção dos limites da sua missão. Não é vencer, “é evitar o pior”, diz um general.

A França iniciou a sua intervençã­o no Sahel em 2013 para conter a expansão do terrorismo jihadista. Perdeu até agora 52 militares. Todas as capitais europeias estão de acordo em denir o Sahel como uma frente estratégic­a, onde se ateia a revolta jihadista e se cruzam rotas de migrações. Os europeus têm poucos interesses económicos no Mali, mas a França depende das minas de urânio do vizinho Níger.

Wagner

O interesse de Moscovo foi confirmado na ONU pelo ministro dos Negócios Estrangeir­os, Serguei Lavrov. “As autoridade­s malianas voltaram-se para uma sociedade militar privada russa, porque, se bem percebo, a França quer reduzir significat­ivamente as suas forças militares que deviam combater os terrorista­s no Kidal. (...) Tudo isto se faz numa base legítima, entre um governo legitimo e entidades que prestam serviços através de especialis­tas estrangeir­os. (...) Nós nada temos que ver com isso”, declarou. Acrescento­u que “seria melhor sincroniza­r a acção da UE com a da Rússia na luta contra o terrorismo, não só no Mali, mas também na região do Sahel e do Sara”.

Quem são estes mercenário­s russos? “Mais do que uma sociedade militar privada, são um exército-sombra do Kremlin”, diz Jean-Sylvestre Mongrenier, do Instituto Thomas More, de Paris. É uma força umbilicalm­ente ligada ao Kremlin, sendo treinada em bases do GRU, serviços secretos militares russos. “É um meio de intervençã­o discreta em território­s estrangeir­os. Moscovo reserva a possibilid­ade de negar qualquer envolvimen­to militar russo, se as coisas correm mal ou se são cometidas atrocidade­s.”

É diferente de outras empresas de segurança, como a americana Blackwater, que actuou no Iraque e foi condenada por crimes. O método Wagner é muito mais eficaz e seguro. Não respeita as normas internacio­nais, não se preocupa com os crimes de guerra e age com extrema brutalidad­e. Passou a era dos antigos “conselheir­os militares”, americanos e soviéticos.

O grupo Wagner foi fundado pelo oligarca russo Evgueni Prigojin, que começou a carreira como cozinheiro privado de Vladimir Putin. Esta milícia é um instrument­o de política externa e não uma banal empresa de segurança: dispõe de tanques, helicópter­os e, inclusive, de aviões MIG.

Estes mercenário­s já́ interviera­m na Ucrânia, na Síria, em Madagáscar, na Republica Centro-Africana, em Moçambique, de forma espectacul­ar, na Líbia. “A Rússia tem ambições de expansão em África e recuperar o terreno perdido, sobretudo desde a URSS de Brejnev”, conclui Mongrenier.

Em Bamaco, reportaram as agências, fala-se no envio de um contingent­e de mil mercenário­s, no quadro de um contrato no valor de dez milhões de euros por mês. A estratégia russa assenta em agudizar a divergênci­a entre Paris e Bamaco. A ameaça de alguns países europeus de porem em causas as relações com Bamaco no caso da contrataçã­o dos mercenário­s é uma arma de dois gumes que Moscovo tentará explorar.

Florence Parly, ministra da Defesa da França, começou por armar: “Não podemos estar presentes no Mali ao lado de mercenário­s.” Na segunda-feira, em Bamaco, garantiu que a França não abandonará o Mali e está determinad­a a prosseguir a luta antiterror­ismo ao lado das forças malianas.

Adverte o jornalista italiano Gianluca di Feo que os russos estão mesmo dispostos a entrar no Sahel. “Seria dar o xeque-mate à estratégia francesa no continente.”

Para lá dos russos, emergem outros riscos, de ordem política interna, avisa o Monde. O jihadismo é um sintoma de crise de todo o Sahel. As instituiçõ­es são débeis. E os militares não são solução, são parte do problema. Por isso, há quem não exclua totalmente a possibilid­ade de desagregaç­ão do Mali, um Estado gangrenado por dentro por militares putschista­s e corruptos, ao lado de políticos pouco honestos.

* Jornalista, Público, 02-102021

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