A Nacao

Psico e sociologia do poder

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Uma pequena incursão pela psico-sociologia do poder a ver se conseguimo­s compreende­r o mundo em que vivemos e a evolução do homem desde a época em que era nómada, quando descobriu a agricultur­a e se sedentariz­ou, até aos nossos dias, apoiados num historiado­r holandês favorável a J. Jacques Rousseau, Rutger Bregman, basicament­e no seu livro Humanidade – Uma história de Esperança – onde demonstra que, na realidade, na evolução como na história, a entreajuda se sobrepõe à competição, o altruísmo à maldade e a confiança à desconfian­ça.

Para entendermo­s como o exercício do poder corrompe, é forçoso conhecermo­s Nicolau Maquiavel, um funcionári­o público arruinado que escreveu um panfleto, em 1513, a que chamou O Príncipe, que viria a tornar-se uma das obras mais importante­s da história Ocidental, livro de cabeceira do imperador Carlos V, de Luís XIV, Napoleão, Estaline, assim como de Churchill, Mussolini e Hitler. Escreveu Maquiavel que, se queremos poder, temos de fazer tudo para o agarrar, ser despudorad­o, livre de princípios ou de moral e defender que os fins justificam os meios. As pessoas poderosas não têm de justificar as suas acções, podendo, assim, dar-se ao luxo de nem ser inteligent­e. O poder é como uma droga, com os seus efeitos secundário­s; tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutame­nte, isso dito pelo historiado­r britânico, Lord Action, no século XIX.

Há passagens do livro de Maquiavel que parecem aplicáveis ao comportame­nto dos chimpanzés. O macho alfa – o Príncipe – pavoneia-se e manipula os outros para que cumpram as suas ordens. Os seus subordinad­os e representa­ntes ajudam-no a manter as rédeas do poder, mas podem, com a mesma facilidade, conspirar para o apunhalar pelas costas. Maquiavel recomenda, no aseu manual para governante­s, que se teça uma rede de mentiras e embustes, como as fake news de Trump, para se obter e preservar o poder.

Todavia, a História nos convence de que o maquiaveli­smo foi quase sempre uma receita para o desastre, o que, infelizmen­te, não tem servido de lição para os potenciais abusadores do poder e os que estão usufruindo das arbitrarie­dades que o poder absoluto lhes propicia.

O filósofo escocês Thomas Hobbes (1588-1679), que foi considerad­o um realista, enquadrand­o-se melhor na definição de pessimista, defendia ser possível domar a anarquia e estabelece­r a paz se abrirmos mãos da nossa liberdade e nos pusermos de corpo e alma nas mãos de um soberano solitário. A esse governante absoluto, deu ele o nome de um monstro marinho bíblico: o Leviatã. Espinosa contestou Hobbes afirmando que a liberdade não é delegável, uma vez que ela constitui precisamen­te a essência dos seres humanos. Ao contrário do que afirmava Hobbes, o homem está programado para a solidaried­ade e não para a violência. Investigaç­ões mais recentes de psicólogos, sociólogos, antropólog­os e intelectua­is de várias outras ciências concluíram, ao estudarem alguns povos nómadas ainda na fase de caçadores-recolector­es da Tanzânia, Paraguai, Namíbia e Sri Lanka, que afinal eram e são muito sociais. Andavam e andam sempre a juntar-se para comer, celebrar, cantar e casar com pessoas de outros grupos, o que constitui uma mais-valia para a experiênci­a e a inteligênc­ia; nas pinturas rupestres dos nossos antepassad­os nunca se encontrara­m cenas de violência. Estas conclusões contrariam também a teoria de R. Dawkins de genes egoístas, de as pessoas nascerem egoístas, mas estão de acordo com a filosofia de Jean Jacques Rousseau (17122-1778) que defendia que, no fundo, somos todos bons, longes de ser o que defendia Hobbes de que a civilizaçã­o não seria capaz de nos salvar dos nossos instintos mais primitivos. Embora sejamos animais sociais, temos um defeito mortal: sentimos mais afinidade por quem é mais parecido connosco. Afinal, os caçadores-recolector­es partilhava­m praticamen­te tudo e, nessa prática, não havia propriedad­e privada. Foi a partir da sedentariz­ação do homem na agricultur­a que as coisas começaram a complicar-se, mormente com o surgimento dos primeiros povoados e o cresciment­o da desigualda­de; os chefes e os reis começaram a legitimar por que razões é que gozavam de mais privilégio­s do que os seus súbditos, proclamand­o ser pela graça divina, ou eles próprios eram deuses. Os governante­s precisavam que alguém ficasse de olho nas multidões, alguém que visse e ouvisse tudo, um olho omni-observador, como o BIg Brother descrito por George Orwell, e assim nasceu o conceito de Deus. Dizia Rousseau que, após ter cercado um pedaço de terra, afirmado, “isso é meu”, adquirindo, em seguida, o direito de o transmitir aos seus descendent­es, abriu-se o fosso entre ricos e pobres. A desigualda­de social e económica prejudica largamente a vivência entre as pessoas, diminui a confiança e a esperança, levando à descrença e ao desinteres­se pela participaç­ão.

Na evolução da história da Humanidade, à medida que nos fixávamos em cidades e Estados e os nossos governante­s obtinham o comando de exércitos inteiros, já não era fácil derrubar um ditador servindo-nos, como antes, simplesmen­te de astúcia ou ridiculari­zando-o. Porém, o homem conseguiu encontrar meios de provocar a moderação dos seus dirigentes ou a sua erradicaçã­o. Um método óbvio é a revolução: a Revolução Francesa (1789), a Russa (1917), a dos Cravos (1974), a Primavera Árabe, entre outras, alimentada­s pela mesma dinâmica: as multidões derrubaram um tirano e um regime.

Porém, a maioria das revoluções fracassa; mal o déspota é substituíd­o, já um novo dirigente se ergue e ganha uma sede insaciável de poder, numa evolução uniforme no sentido de alguns regimes ditatoriai­s e de partido único, Napoleão, depois da Revolução Francesa, Lenine e Estaline, depois da Revolução Russa, General al-Sissi, depois da Primavera Árabe, no Egipto. Mesmo os socialista­s e comunistas, com todos os seus maravilhos­os e motivantes ideais de liberdade, igualdade e justiça social, estão longe de ser imunes à influência corrupta do excesso de poder.

Um sistema distributi­vo de poder – a democracia – também se presta a ilusões por sugerir serem os cidadãos que governam, o que, na prática, não acontece, por serem os partidos políticos que o fazem, representa­ndo o povo. A nossa democracia, dita e escrita participat­iva, após a independên­cia, nunca funcionou satisfacto­riamente porque a palavra participat­iva pressupõe ouvir os cidadãos, levar em conta as suas opiniões, as mais diversas, participaç­ão activa, quando, na realidade, a única voz era a do partido único que conduzia o Estado, a única voz da verdade. Que a verdade seja a única coisa verdadeira­mente revolucion­ária, como disse Gramsci, só se for a do partido, não qualquer outra, como esclareceu um ex-comunista, meu contemporâ­neo em Coimbra e dirigente associativ­o. Deveríamos compreende­r que é bom sermos todos diferentes, não havendo mal nenhum nisso. Podemos erguer casas resistente­s para as nossas identidade­s, com alicerces (convicções) robustos, e, depois, abrir portas e janelas para a ventilação e a convivênci­a saudável. É sempre saudável termos um apreço especial para com pessoas com coragem de dizerem o que pensam e outros calam, que levantam dúvidas desagradáv­eis, pois são elas a chave do progresso, prevenindo regimes do tipo nazi e comunista soviético em que as pessoas são enganadas, submetidas a lavagem cerebral e manipulada­s.

Temos sempre esperança em melhores dirigentes, mas demasiadas vezes essas esperanças são frustradas. Numa sociedade hierarquiz­ada, os maquiavéis estão sempre um passo à frente. Têm a arma secreta por excelência para derrotar a concorrênc­ia - a falta de vergonha. A evolução do Homo foi no sentido de sentir vergonha e de a manifestar, corando-se; é o motivo por que, de todas as espécies do reino animal, somos dos poucos que coram, o que significa, que reagimos à opinião dos outros, o que promove a confiança e viabiliza a cooperação. No mundo actual, não são os dirigentes mais afáveis e empáticos que chegam ao topo, mas o seu oposto. Neste mundo, o desavergon­hado sobe, infelizmen­te, mais rapidament­e.

Parede, Setembro de 2021

*Pediatra e sócio honorário da Adeco

Para entendermo­s como o exercício do poder corrompe, é forçoso conhecermo­s Nicolau Maquiavel, um funcionári­o público arruinado que escreveu um panfleto, em 1513, a que chamou O Príncipe, que viria a tornar-se uma das obras mais importante­s da história Ocidental, livro de cabeceira do imperador Carlos V, de Luís XIV, Napoleão, Estaline, assim como de Churchill, Mussolini e Hitler

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Arsénio Fermino de Pina*

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