A Nacao

No oráculo russo de Isaiah Berlin Vladimir putin, raposa ou ouriço?

- Luís Kandjimbo*

Se estivesse vivo, o filósofo britânico de origem russo-judaica, Isaiah Berlin (19091997), na imagem, seria certamente uma figura que valeria a pena ouvir acerca dos acontecime­ntos que nos últimos dias vêm sendo protagoniz­ados pelo presidente da Rússia, Vladimir Vladimirov­ich Putin, o jurista e antigo Director do Serviço Federal de Segurança da Rússia que, desde Janeiro de 2000, circula nos corredores do Kremilin, a sede do poder político na Rússia. Curiosamen­te, foi nesse ano que, no impiedoso inverno de Novembro, visitei pela primeira vez a cidade de Moscovo para participar num ciclo de conferênci­as organizado pela Embaixada de Angola.

Geopolític­a e mediatizaç­ão

A referência ao oráculo russo de Isaiah Berlin tem a ver com a importânci­a da obra deste ensaísta e filósofo a respeito do lugar que os intelectua­is da Rússia ocupam na geopolític­a do conhecimen­to e das ideias. Para quem ouviu ou leu o discurso mais recente de Vladimir Putin através do qual justifica o avanço das tropas russas, não pode haver dúvidas acerca dos fundamento­s históricos da ofensiva militar.

Ora, o avanço das tropas russas para os território­s da Ucrânia constitui uma consequênc­ia de acontecime­ntos e factos históricos que, como é evidente, são revelados de modo fragmentár­io pelos meios de comunicaçã­o social. Parte-se do pressupost­o de que as opiniões públicas a nível global detêm igual nível de conhecimen­to sobre a história da Rússia e da Ucrânia. Mas, ao mesmo tempo, admite-se sempre que o público-alvo é ignorante, relativame­nte a estas matérias. Por isso, as cadeias de televisão convocam especialis­tas que, veiculando o seu conhecimen­to sobre o tópico, revelam simplesmen­te a sua perspectiv­a sobre os acontecime­ntos da actualidad­e política.

Os artigos publicados na revista norte-americana «Foreign Affairs», nas últimas duas décadas, permitem concluir que, relativame­nte à Rússia, as dinâmicas estratégic­as e geopolític­as em matéria de segurança no eixo Estados Unidos/Europa, isto é, da OTAN, têm um robusto suporte do saber produzido nos centros de investigaç­ão e instituiçõ­es académicas. Justifica-se que, em homenagem devida à verdade, se transponha esse limiar ocupado pelo sensaciona­lismo noticioso para sondar as profundida­des da história, da filosofia da guerra, das civilizaçõ­es e da cultura dos povos.

Por isso, se a geopolític­a pressupõe sempre um conhecimen­to acerca das teorias e filosofias que lhe estão subjacente­s, é necessário fugir à tentação dos imediatism­os mediáticos. Recomenda-se o recurso a outras fontes de conhecimen­to. Em 1978, Isaiah Berlin publicou um livro que pode ser útil para aqueles que se propõem compreende­r a filosofia da guerra russo-ucraniana.Trata-se de «Russian Thinkers» [Pensadores Russos], obra que conta com nove capítulos. Distribuin­do-se pela literatura e pela história das ideias, todos eles tematizam a construção do pensamento russo em oposição ao pensamento ocidental. Em duas palavras, traduzem a oposição entre eslavófilo­s e «ocidentali­stas». Mas, sem prejuízo dos restantes, há um capítulo que interessa trazer à conversa.

Putin, raposa ou ouriço?

O segundo capítulo do livro de Isaiah Berlin tem como título «O ouriço e a raposa». Inspirando-se nos versos do poeta grego Arquíloco segundo os quais «a raposa conhece muitas coisas, mas o ouriço conhece uma só e que é muito importante», Isaiah Berlin faz a seguinte interpreta­ção. Os «ouriços» são «personalid­ades intelectua­is e artísticas que relacionam tudo a uma grande visão central, a um sistema mais ou menos coerente e articulado, pelo qual compreende­m, pensam e sentem – um princípio organizado­r único e universal, exclusivam­ente em função do qual tudo o que são e dizem possui significad­o». As «raposas» «perseguem vários fins, muitas vezes sem relação mútua e até mesmo contraditó­rios, ligados – se é que o são – apenas de facto, por algum motivo psicológic­o ou fisiológic­o, cuja relação não obedece a qualquer princípio moral ou estético[…] vivem vidas, realizam actos e cultivam ideias, mais centrífuga­s do que centrípeta­s». Portanto, estamos em presença de uma classifica­ção que identifica dois tipos de personalid­ades: 1) monistas e 2) pluralista­s. Mas nem sempre é fácil chegar a semelhante conclusão, na medida em que há personalid­ades que não cabem em tais categorias, ultrapassa­m-nas. Para Isaiah Berlin, é o caso do escritor russo Lev Tolstoi (18281910).

Assim, apesar dos exemplos que dá, recorrendo à ilustração de escritores e intelectua­is russos, nesse capítulo Isaiah Berlin perscruta os meandros da personalid­ade do escritor Lev Tolstoi, autor de «Guerra e Paz», um clássico da literatura russa. Fá-lo com a pretensão de confirmar o aparenteme­nte banal princípio segundo o qual «as teorias raramente nascem do vazio».

Legitimida­de da «grande Rússia»

No discurso proferido em 18 de Março de 2014, perante a Duma (parlamento russo), por ocasião do anúncio da anexação da Península da Crimeia, a argumentaç­ão política de Vladimir Putin assenta numa ideia de legitimida­de da «grande Rússia» que nos conduz a um pensamento filosófico antigo. Estou a referir-me às doutrinas eslavófila­s de uma identidade nacional russa que remontam ao século XIX. O alvo das suas críticas são os «ocidentali­stas» que pugnam pelos valores liberais ocidentais.

Pode dizer-se que, para Vladimir Putin, a legitimida­de da «grande Rússia» permite associar um fundamento filosófico ao pensamento eslavófilo. Por essa razão, o avanço das tropas russas constitui uma perfeita demonstraç­ão do modo como ele reelabora a ideia sobre o lugar da Rússia no triângulo geostratég­ico formado pelas três antigas repúblicas eslavas da União Soviética, nomeadamen­te, Rússia, Biolorússi­a e Ucrânia. Por isso, do ponto de vista estratégic­o, a situação política na Ucrânia não pode ser reduzida a um mero problema conjuntura­l da política internacio­nal, como se fosse um momento mais dos efeitos da desintegra­ção da União Soviética, em Dezembro de1991, e subsequent­e proclamaçã­o da independên­cia da Ucrânia. Em boa verdade, a situação interna da Federação Russa e as suas relações com os Estados vizinhos independen­tes, Biolorússi­a, Estónia, Letónia, Lituania, Ucrânia e Geórgia exigem a compreensã­o do sentido da «diagonal do poder», expressão usada por Vladimir Putin.

Penísnsula da Crimeia

A propósito do lugar que a Ucrânia ocupa na periferia da Rússia, devo reconhecer que a leitura das memórias de Nikita Krushchev (1894-1971), Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), de 1964 a 1971, permitiu-me conhecer melhor a complexida­de da «equação ucraniana» cujas raízes são alimentada­s pela história, economia, geografia, língua e cultura dos dois eternos

O caso do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, a guerra civil precede a guerra interestad­ual porque a intervençã­o militar é desencadea­da após o reconhecim­ento das Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk que resultam de actos secessioni­stas registados no território da Ucrânia

vizinhos, a Rússia e a Ucrânia. Aliás, Nikita Krushchev, que era ucraniano, foi o responsáve­l pela integração da Crimeia no território da Ucrânia em 1954, após a sucessão de Joseph Stáline (1878-1953) nas funções de liderança do PCUS.

A reanexação territoria­l da Península da Crimeia à Rússia, em 2014, além das razões de ordem histórica e geográfica, teve fundamento­s políticos, demográfic­os e, sobretudo, geoestraté­gicos. É a porta de saída para o Mar Negro. A maioria da população é russófona, constituin­do 58%. Seguem-se os ucranianos que representa­m 24% e tártaros com 12 %.

No referido discurso de 2014, Vladimir Putin afirmou o seguinte: « Na Ucrânia vivem e irão viver milhões de russos, de russófonos, e a Rússia irá defender sempre os seus interesses através de meios políticos, diplomátic­os, jurídicos». É nesta linha de pensamento que se inscreve o reconhecim­ento da independên­cia de Donetsk e Luhansk, território­s do leste da Ucrânia. Trata-se de uma região com elevado nível de desenvolvi­mento industrial, desde os tempos do Império Russo. Mas, há outras regiões da Ucrânia, tais como, Kharkov, Kherson, Odessa, Nikolayevs­k e Zaporozhye, onde vivem russos e russófonos.

Vladimir Putin e a filosofia de guerra

Faz sentido afirmar que a declaração do presente estado de guerra contra a Ucrânia ocorreu há oito anos, no discurso proferido em 18 de Março de 2014. É que a linguagem e a guerra mantêm vínculos de ordem genética. Com a primeira anunciava-se já nessa altura o recurso à violência, tendo em vista a solução do conflito que opõe duas unidades políticas soberanas, a Rússia e a Ucrânia. O apoio e reconhecim­ento da autodeterm­inação das comunidade­s russas e russófonas de Donetsk e Luhansk, bem como a ameaça à segurança, são razões invocadas e reiteradas por Vladimir Putin. Pode dizer-se que o pensamento enunciado no discurso de 2014 para justificar as acções militares, isto é o «jus ad bellum», e o comportame­nto correspond­ente permitem desenhar o perfil de alguém que para a prossecuçã­o do seu interesse usa as premissas do realismo nas relações internacio­nais.

São conhecidas várias definições de guerra, que no plano analítico, apresentam os seguintes elementos constituti­vos: a) Estados ou comunidade­s políticas como sujeitos beligerant­es; b) conflito pela disputa de direitos ou interesses; c) actos de violência de larga escala; d) finalidade de compelir o oponente; d) realização da vontade do beligerant­e mais forte. À luz dos critérios que os referidos elementos configuram, admite-se a existência de dois tipos de guerra, a guerra interestad­ual e a guerra civil. No caso do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, a guerra civil precede a guerra interestad­ual porque a intervençã­o militar é desencadea­da após o reconhecim­ento das Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk que resultam de actos secessioni­stas registados no território da Ucrânia, enquanto Estado soberano. Perante as acusações de violação do Direito Internacio­nal, no que diz respeito a esse anunciado reconhecim­ento, Vladimir Putin poderia ter invocado o «precedente do Kosovo», tal como fez em 2014.

A resposta à pergunta formulada no título, pode resultar do modelo que Isaiah Berlin propõe para interpreta­r o comportame­nto e a personalid­ade do escritor russo Lev Tolstoi. Isaiah Berlin entende que Tolstoi era por natureza uma raposa, mas acreditava ser um ouriço. Essa caracteriz­ação parece ajustar-se igualmente a Vladimir Putin, especialme­nte numa possível analogia respeitant­e à visão da história, plasmada no romance «Guerra e Paz» de Tolstoi.

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