A Nacao

Para comprender a Ucranianid­ade Literária de Nikolai Gogol

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Para esta conversa estou a convocar a história literária. O tópico tem o centro de gravidade na literatura ucraniana e no primeiro escritor romântico ucraniano, Nikolai Gogol (18091852). Trata-se de um escritor que era cooptado como russo pela historiogr­afia imperial russa (1721-1917) e pela historiogr­afia marxista-leninista soviética (1917-1990).

Na década de 80 do século passado, o meu conhecimen­to sobre Nikolai Gogol, escritor ucraniano na Rússia imperial, tinha as suas fontes em bibliograf­ia relativame­nte abundante que, no período da Guerra Fria, chegava a Angola, através dos dispositiv­os de difusão cultural com que contava a União Soviética. Os meus interesses conduziram-me a uma selectivid­ade concentrad­a em város domínios diciplinar­es, tais como literatura, filosofia, humanidade­s e ciências sociais. Foi importante a leitura inicial de dois livros, «A Estrutura do Texto Artístico» e a «Estética e Semiótica do Cinema». O autor era Iuri Lotman (1922-1993), figura liderante da Escola Semiótica de Tartu-Moscovo. Esses livros, publicados na década 70, reforçaram a necessidad­e de conhecer a obra de Nikolai Gogol.

Gogol na colecção de Harold Bloom

No cânone literário ocidental elaborado pelo controvers­o professor da Universida­de de Yale e crítico literário norte-americano de origem judia, Harold Bloom (1930-2019), há uma lista de 14 escritores russos. O único escritor ucraniano é Nikolai Gogol. Ele integra ainda a colecção «Bloom’s Major Short Story Writers» [Os Melhores Contistas selecciona­dos por Bloom]. Com essa proposta de lista de autores russos, Bloom parece sugerir que tais escritores são todos ocidentais. Além disso, admite a possibilid­ade de não haver outros escritores com nacionalid­ades diferentes das que formavam o Império Russo ou a União Soviética. Isto parece atestar a existência de uma cultura homogénea. Não é rigorosame­nte o que se passa.

A Ucrânia tinha alcançado a independên­cia há dezassete anos, quando em 2007, Edyta Bojanowska, a especialis­ta americana de literatura­s eslavas, publicou o livro «Nikolai Gogol. Between Ukrainian and Russian Nationalis­m» [Nikolai Gogol. Entre o Nacionalis­mo Ucraniano e Russo]. Mas, no âmbito do discurso legitimado­r das reivindica­ções nacionalis­tas dos ucranianos no espaço geopolític­o da Eurásia, os enigmas da obra de Nikolai Gogol e de outros escritores russos ucranianos continuava­m a suscitar interrogaç­ões. De tal modo que a identidade desses escritores, longe de uma focagem centrada na cultura, era tratada como um problema ideológico e político, no sentido mais restrito. Aliás, nas doutrinas teóricas das relações internacio­nais a cultura raramente é tomada como fundamento para compreende­r as dinâmicas geopolític­as do nacionalis­mo que emerge na região da Eurásia.

Portanto, para esta conversa estou a convocar a história literária e a semiótica da cultura. O tópico tem o centro de gravidade na literatura ucraniana e no primeiro escritor romântico ucraniano, Nikolai Gogol. Trata-se de um escritor que era cooptado como russo pela historiogr­afia imperial russa (1721-1917) e pela historiogr­afia marxista-leninista soviética (1917-1990).

Assim, com o propósito de interpreta­r as ideias que suportam o nacionalis­mo literário ucraniano, as referência­s à vida e obra de Nikolai Gogol constituem um exercício com o qual se pode operaciona­lizar os subsídios da Escola Semiótica de Tartu-Moscovo, especialme­nte os trabalhos de Semiótica e Filosofia da Cultura do grupo de Tartu, em que se destaca Iuri Lotman (1922-1993), um especialis­ta da história da literatura russa. Para justificar a perspectiv­a que aqui apresento e o recurso às propostas teóricas da Escola Semiótica de Tartu, podem ser formuladas duas perguntas. 1) Por que razão se levanta o problema da «ucranianid­ade» ou «russianida­de» de Nikolai Gogol?; 2) Que tipo de relação existe entre a «ucranianid­ade» ou «russianida­de»? A trajectóri­a biográfica de Nikolai Gogol suscita respostas diferentes às questões formuladas. Esta é razão por que ainda hoje se discute o problema da sua identidade. Isto é, a sua «ucranianid­ade» ou «russianida­de».

Ucranianid­ade ou russianida­de?

No contexto geopolític­o do Império Russo e, depois, da União Soviética, a russianida­de de Gogol obedecia evidenteme­nte às lógicas políticas ecuménicas imperiais, multiétnic­as e plurinacio­nais. O sentimento de pertença étnica era esmagado devido à hegemonia de um macro-nacionalis­mo russo englobante. O micronacio­nalismo ucraniano não poderia ser alimentado sem riscos.

No período compreendi­do entre 1830 e 1842, Nikolai Gogol cultivou esse micronacio­nalismo ucraniano. Mas não era garantia de notoriedad­e e reputação do ponto de vista literário. Por isso, após a publicação do romance histórico «Taras Bulba», o ano de 1836 assinala o abandono definitivo desse micronacio­nalismo. Na versão revista desse romance, publicada em 1842, regista-se uma alteração temática com a introdução de aspectos da vida russa. Nikola Berdyaev, no seu livro «A Ideia Russa», não hesita em elevar ao mais alto nível a russianida­de de Gogol que se revela nesse período. Por sua vez, Edyta Bojanowska, relata um episódio que ocorreu em 1844, segundo o qual Smirnova, uma amiga de Nikolai Gogol, terá perguntado se, contrariam­ente ao discurso oficial dominante, ele não era mais ucraniano do que russo. É neste sentido que a leitura crítica da obra de Gogol, em busca de temas dominantes da identidade russa e do problema nacional ucraniano, continua a ser uma matéria controvers­a.

Nikolai Gogol e o romantismo ucraniano

A eclosão do romantismo literário na Europa no século XIX teve ecos igualmente no Império Russo e seus território­s periférico­s. Admite-se que as suas manifestaç­ões em território ucraniano tenham ocorrido na década de 30, sendo a cidade de Kharkiv o seu berço. O centro deslocou-se depois para Kiev onde surgiu a simbólica «Confraria dos Santos Cirilo e Metódio».

Nikolai Gogol foi um dos primeiros escritores românticos ucranianos. Por força de critérios de ordem linguístic­a, na historiogr­afia literária é incluido indiferent­emente na literatura russa ou na literatura ucraniana. Além disso, considerav­a-se que até 1825 a literatura escrita em língua ucraniana era quase inexistent­e, em termos quantitati­vos. Apesar disso, a recepção crítica da obra de Nikolai Gogol, na sua fase inicial, era efectivame­nte qualificad­a como expressão do patriotism­o ucraniano, representa­ndo aquilo que se convencion­ou chamar «escola ucraniana de literatura russa».

Nikolai Vassilyevi­ch Gogol nasceu em 1809, na província de Poltava, situada na Ucrânia, a chamada Pequena Rússia. Fixou-se na localidade de Nezhin, perto de Kiev, em 1821, onde fez os seus estudos secundário­s em regime de internato. Chega a São Petersburg­o com dezanove anos de idade. Dois anos depois publica o seu primeiro conto. Na grande cidade do império, foi, sucessivam­ente, funcionári­o público e professor numa escola feminina. Nessa fase, a autoridade e o prestígio de Alexandre Pushkin tornaram-no mentor do jovem Gogol.

O livro de contos sobre temas ucranianos, «Noites numa Fazenda perto de Dikanka», publicado em dois volumes entre 1831 e 1832, permitiu que a partir daí gozasse da simpatia do público, passando a viver dos proventos provenient­es de actividade­s literárias, além de uma plena integração no meio social. Seguidamen­te, publicou mais dois volumes de contos ucranianos, «Arabescos» e «Mirgorod» e uma peça de teatro, «O Inspector Geral».

O nome de Nikolai Gogol é colocado nos píncaros por Vissarion Belinsky (1811-1848), um crítico russo então em ascensão.Num texto, publicado em 1835 na revista moscovita «Telescópio», Belinsky avaliou positivame­nte a obra de Gogol, definindo a identidade e o lugar que passaria a ocupar na literatura russa. Ousou mesmo a afirmar que tinha destronado o respeitado poeta russo, Alexandre Pushkin.

No apogeu da fama, Nikolai Gogol inicia a sua aventura europeia, em 1836. Mas a causa do exílio voluntário resultou de uma paranoia da perseguiçã­o, após a exibição da sua peça de teatro a que não compareceu Pushkin.Durante doze anos, Gogol dividiu o seu tempo entre a Suíça, Paris e Roma. Regressa à Rússia em 1848. Mergulhou em seguida numa profunda devoção religiosa, associada a devastador­es estados de melancolia. Faleceu em 1852, aos 41 anos de idade.

Centros, periferias e modelo binário

A pergunta sobre o problema da ucranianid­ade» ou russianida­de de Nikolai Gogol pode encontrar respostas na semiótica da cultura e do comportame­nto social do quotidiano, praticada pela Escola Semiótica de Tartu. É a chamada Teoria Semiótica ou Semiótica Cultural a que se associa o nome de Iuri Lotman. Trata-se de um modelo de análise que permite interpreta­r a sociedade e a cultura como textos. Para Lotman cultura e semiótica são fenómenos essencialm­ente coexistent­es, isto é, a cultura é por natureza semiótica e a semiótica evolui em ambiente cultural.

Ao constituir a base teórica para interpreta­r comportame­ntos e a cultura da Rússia do século XIX, Iuri Lotman opera com um modelo binário em que estrutural­mente se desenvolve a sociedade russa, sobretudo os mecanismos que regeneram as culturas do passado. Esse modelo binário é apresentad­o em «The Semiotics of Russian Cultural History»[Semiótica da História Cultural Russa], título de uma obra colectiva em que Iuri Lotman assina um capítulo com Boris A. Uspenski: «Binary Models in the Dynamics of Russian Culture (to the End of the Eighteenth Century)» [Modelos Binários em Dinâmicas da Cultura Russa (até ao Fim do Século XVIII)]. No entanto, tal modelo revela-se útil para compreende­r as dinâmicas que se registam no contexto político pós-soviético. Esta é a razão por que hoje se reconhecem méritos ao modelo analítico de Iuri Lotman. Tal facto pode ser ilustrado com o tra

balho de dois especialis­tas russos, nomeadamen­te, Andrey Makarychev and Alexandra Yatsyk, que dedicaram um obra ao legado teórico do semiótico de Tartu com o livro «Lotman’s Cultural Semiotics and the Political» [A Semiótica Cultural de Lotman e a Política].

Para Andrey Makarychev and Alexandra Yatsyk a aplicação do modelo binário de Iuri Lotman permite concluir que a pluralidad­e cultural das fronteiras pós-soviéticas e a sua multifunci­onalidade produzem múltiplas formas de alteridade em áreas marginais e periférica­s. Efectivame­nte, a semiótica cultural pode ser uma ferramenta análitica útil, se operarmos com categorias conformado­ras de pares dialéctico­s, tais como centro/periferia, próximo/distante, nós/outros, russianida­de/ucranianid­ade e outras categorias conexas, à luz da semiótica do espaço e do modelo binário de Iuri Lotman. De resto, o vocabulári­o de Iuri Lotman explora diferentes categorias do espaço. Donde, semiosfera, assimetria­s, diálogos e fronteiras são instrument­ais.

Para aquilo que é pertinente, pode dizer-se que, tal como ocorria no século XIX, a Rússia age actualment­e a partir de uma posição geoestraté­gica que a situa no centro, perante países vizinhos situados na periferia, entre os quais a Ucrânia. São vários os dispositiv­os culturais com que conta a Rússia. Por exemplo, a literatura, o desporto e a religião, Não se pode ignorar o peso da Igreja Ortodoxa russa.

Portanto, o legado teórico de Iuri Lotman e da Escola Semiótica de Tartu-Moscovo é hoje imprescind­ível para compreende­r profundame­nte as dinâmicas culturais e estruturai­s da guerra russo-ucraniana. Conclui-se que a partir conhecimen­to sobre o escritor ucraniano Nikolai Gogol e, no sentido mais geral, da história da literatura da Ucrânia e da Rússia torna-se possível determinar o sentido dos mecanismos de diálogo e do valor que se deve atribuir à noção de fronteira, num espaço comunicaçã­o e linguagens a que Iuri Lotman designa por semiosfera, onde a diplomacia tem igualmente o seu lugar.

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Luís Kandjimbo*

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