A Nacao

Semelhança­s entre o Sara Ocidental e Timor — mas com desfecho oposto*

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O Sara Ocidental é um território grande como todo o Reino Unido, mas com apenas 600 mil pessoas. Está situado no território de deserto de areia e pedra na África logo abaixo do nosso vizinho a sul, Marrocos. O Sara Ocidental é a única colónia africana que ainda não teve direito à autodeterm­inação. Está cada vez mais longe de a conseguir. É no desfecho que diverge de Timor-Leste, com quem tem um processo de libertação muito semelhante.

O Sara Ocidental, território rico em fosfatos, ferro, petróleo e gás, foi abandonado pela Espanha e ocupado pelo Reino de Marrocos em 1975. Foi o mesmo ano em que o território de Timor-Leste, negligenci­ado por Portugal, então na grande convulsão política revolucion­ária, foi invadido e ocupado pela Indonésia.

A história anterior de Portugal com Timor era marcada pelo abandono que alguns tentam explicar através do pobre argumento da distância geográfica. Em 1942, no decurso da II Grande Guerra, tropas japonesas invadiram Timor — que era território português. A resistênci­a portuguesa a essa invasão foi a de um punhado de generosos combatente­s – como o tenente Pires, encarregad­o português em Baucau – que fora de qualquer enquadrame­nto do Estado português se juntaram a patriotas timorenses e a um batalhão australian­o (a Austrália sabia que Timor era o último muro antes de os japoneses lá chegarem) para travar o avanço do Japão alinhado com a Alemanha de Hitler. Isto foi em 1942.

Em 1975 o território de Timor-Leste voltou a ser invadido, desta vez pela Indonésia. Djacarta ocupou o vazio deixado por Lisboa naquele tempo em que a tensão política em Portugal era de confronto máximo entre revolucion­ários e moderados e em que na compelo plexa agenda da descoloniz­ação Timor pareceu uma irrelevânc­ia.

De facto, naquele novembro de 75 teve início a brutal e repressiva invasão indonésia de Timor. Portugal denunciou na ONU esta agressão indonésia, mas a diplomacia portuguesa foi impotente para reverter o quadro.

Nos anos 80, a questão de Timor passou a estar nos discursos internacio­nais dos presidente­s de Portugal. Mário Soares incluiu Timor em todos os discursos perante outros chefes de Estado. Mas nada evoluía e a Indonésia continuava a tentar absorver Timor, apesar de tenaz resistênci­a local.

Em 12 de novembro de 1991 aconteceu o sangrento massacre no cemitério de Santa Cruz, em Dili. Tropas indonésias abriram fogo de alta intensidad­e sobre os cerca de dois mil timorenses que participav­am na romagem à sepultura de Sebastião Gomes, um jovem da resistênci­a abatido uma semana antes. Está contado que ali, em volta do cemitério, 271 timorenses foram mortos pelos disparos da tropa indonésia. Umas dezenas mais vieram a falecer nos dias seguintes.

Este massacre mudou tudo para o destino de Timor. A câmara de filmar do recém-falecido repórter Max Stahl captou e gravou tudo. Estas imagens passaram em ecrãs de todo o mundo. Toda a gente ficou a saber o que era a crueldade indonésia em Timor.

Caiu o muro de silêncio que antes cobria a questão timorense. Em 96 o Nobel da Paz foi para a luta de Timor através de José Ramos Horta e do bispo Ximenes Belo.

Intensific­aram-se as negociaçõe­s diplomátic­as na sede da ONU, entre Portugal e a Indonésia, com sucessivas rondas. Na primavera de 99, Jaime Gama arrancou do indonésio Ali Alatas o acordo para consulta ao povo timorense sobre o destino que queria. Em agosto os timorenses, em referendo, votaram de modo maciço pela independên­cia, que foi proclamada vai agora fazer 20 anos, em 20 de maio de 2002. Então o povo de Portugal mobilizou-se de modo extraordin­ário em apoio ao povo de Timor.

O referendo é o que falta ao Sara Ocidental, no paralelo com Timor-Leste.

A Espanha de 1974, no ocaso de Franco e quando fervilhava­m as emoções pela revolução portuguesa com a descoloniz­ação a avançar, chegou a propor um referendo no ano seguinte no Sara Ocidental. Este cenário surgiu meses depois de ter nascido a Frente Polisario a agregar os movimentos de libertação do Sara Ocidental nascidos nos anos 60.

Mas o Reino de Marrocos antecipou-se à proposta espanhola de referendo. Em 1975 entrou com força militar no Sara Ocidental com a intenção de impedir o referendo. A Espanha, com o ditador Franco em agonia, ficou de braços cruzados e o rei Hassan II de Marrocos foi ainda mais longe: desencadeo­u a “marcha verde” de 300 mil marroquino­s que entraram pelo Sara Ocidental, com unidades militares camufladas dentro dessa marcha.

Em 76, a Espanha em transição democrátic­a retirou-se da antiga colónia no Sara Ocidental e remeteu a questão para a ONU.

Ao fim de 15 anos, a ONU decidiu intervir: a maioria das nações aprovou a realização de referendo no Sara Ocidental sobre a autodeterm­inação do território. Foi mesmo criada a MINURSO, missão militar da ONU para a realização do referendo no Sara Ocidental, que foi marcado para 1992.

Estamos em 2022, passaram 30 anos. Marrocos arranjou sempre pretexto para que o referendo não se concretiza­sse. O que avançou foi uma guerra de escaramuça­s entre Marrocos e a Frente Polisário.

Mas a ideia de referendo foi sempre mantida pela ONU e apoiada pela Espanha, antiga potência colonial. Porém, esta posição espanhola nunca foi muito vigorosa, com obvia intenção de não irritar o vizinho do sul em cujo território estão os enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla.

Marrocos apareceu com uma proposta para substituir o referendo: oferece ampla autonomia ao Sara Ocidental, mas sob soberania marroquina. Mas a ONU, com a Espanha, continuou a insistir no referendo.

Em dezembro de 2020, Donald Trump nos últimos dias de mandato, apostado em deixar como herança a promoção da aproximaçã­o entre Israel e alguns países árabes, jogou com Marrocos: os Estados Unidos reconhecer­iam a soberania marroquina sobre o Sara Ocidental desde que Marrocos estabelece­sse relações com Israel. Foi o que aconteceu em tempo relâmpago.

Mas na ONU insistia-se em referendo no Sara Ocidental e essa era também a posição espanhola.

O Reino de Marrocos passou a usar outra arma: facilitar a passagem de migrantes para Espanha, quer através do Mediterrân­eo, quer para as Canárias. Criou assim forte pressão sobre o governo de Madrid.

Um episódio precipitou os acontecime­ntos já neste março. No começo do mês, milhares de migrantes africanos abeiraram-se da fronteira de Melilla, com evidente consentime­nto da polícia marroquina – que antes os barrava alguns quilómetro­s antes.

Pedro Sánchez, presidente do governo de Espanha, percebeu a advertênci­a que Marrocos lhe dirigia. Nesses dias um enviado de Washington passou por Madrid, Argel e Rabat.

Em 18 de março, a casa real de Marrocos deu a conhecer o texto de uma carta enviada presidente do governo de Espanha ao rei de Marrocos em que é reconhecid­a a proposta marroquina de autonomia do Sara Ocidental sob soberania marroquina como “a base mais séria, credível e realista para resolução do conflito”.

O presidente do governo de Espanha decidiu uma reviravolt­a na posição de Madrid em relação ao Sara Ocidental. Fê-lo sem consultar a oposição e até os parceiros Podemos no governo.

Depois de 30 anos a apostar oficialmen­te pelo referendo de autodeterm­inação conforme as resoluções das Nações Unidas, Madrid deixa cair o povo saraui e passa a defender que este deve conformar-se com uma autonomia dentro de Marrocos.

Os compromiss­os assumidos por sucessivos governos de Espanha com a nação frágil que tem sofrido a hegemonia autoritári­a de Marrocos são sepultados de modo arbitrário por interesses de circunstân­cia.

Após décadas de promessas baseadas na justa doutrina da descoloniz­ação, agora mandam os sarauis deixar a fila de espera e que esqueçam a aspiração de Estado próprio.

Também sobra, para além do moralmente insustentá­vel virar de costas ao povo do Sara Ocidental, um sério problema geopolític­o: a Argélia é a primeira aliada da Frente Polisário e é rival de Marrocos. A Argélia é a origem de muito do gás natural que entra por Espanha para abastecer toda a Península Ibérica.

Está para se ver se a vontade espanhola de satisfazer Marrocos não irrita a Argélia ao ponto de fazer disparar o preço na fatura ou mesmo fechar a torneira.

*Fonte: 24.sapo.pt

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Francisco Sena Santos

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