A Nacao

O problema da tradução, línguas e tematizaçã­o em África

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A pergunta implícita no ante-título sugere a formulação de outras perguntas legítimas como as que se seguem. Será que a tradução torna possível a comunicaçã­o intercultu­ral entre os povos? Por que razão se vai assistindo ainda a demonstraç­ões de assimetria­s e impossívei­s diálogos inter-civilizaci­onais entre os humanos, a nível global?

Aí estão enunciadas duas perguntas que configuram o tópico da nossa conversa. Em virtude de se revelar necessário reflectir sobre a tradução como instrument­o de diálogo inter-civilizaci­onal, vamos dialogar acerca das respostas que circulam a este propósito.

Como nota preliminar importa referir que, já em 1959, o linguista russo-americano, Roman Jakobson (1896-1982), analisava a tradução em três categorias: a) tradução intralingu­ística, compreende a conversão de signos em outros signos dentro da mesma língua; b) tradução interlingu­ística, constitui o processo de substituiç­ão linguístic­a de signos entre línguas diferentes; c) tradução intersemió­tica, consiste no processo de substituiç­ão que ocorre entre sistemas simbólicos, tal como, por exemplo, na tradução de uma língua para um sistema restrito de sinais.

Elementos do tópico

As consultas à minha pequena colecção de publicaçõe­s das diferentes missões cristãs, produzidas desde o século XV, e as traduções da bíblia em línguas bantu da África Austral tem contribuid­o para testar a consistênc­ia de algumas teorias da tradução, equivalênc­ia de significad­os e sentidos das frases, especialme­nte quando se trata de avaliar a inteligibi­lidade de tradução literária de textos orais e escritos, numa perspectiv­a transnacio­nal.

No que diz respeito a traduções transcultu­rais cruzadas Africanos e outros povos, a ilustração pode ser documentad­a com recurso a diversas fontes. Entre elas destaca-se o acervo lexicográf­ico dos missionári­os cristãos, relatórios e trabalhos etnográfic­os dos «explorador­es» europeus. No caso de Angola, a historiogr­afia da linguístic­a bantu permite identifica­r dois momentos iniciais que se situam nos séculos XVI e XVII. Correspond­em a factos históricos da expansão do cristianis­mo europeu semelhante­s aos que ocorreram em outros continente­s: 1) a elaboração de vocabulári­os por parte de europeus para a comunicaçã­o com os habitantes dos território­s em que se fixam; 2) a tradução de narrativas e textos orais; 3) a produção de materiais destinados à evangeliza­ção; 4) a tradução bíblica. Do ponto de vista cronológic­o, as experiênci­as registadas em Angola são das mais antigas na África Central e Austral. Pode dizer-se que, nesta parte do continente africano, o relativame­nte bem-sucedido processo de cristianiz­ação, em certo momento da história na sua longa duração, tornou incontestá­vel a comunicaçã­o intercultu­ral entre os povos.

Questão da língua e debates

Nos meios académicos e literários africanos, a questão da língua e o problema da linguagem suscitaram e continuam a suscitar fortes controvérs­ias. Tiveram importante impacto o debate que opôs o escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong’o ao nigeriano Chinua (1930-2013), a decisão de Ngũgĩ escrever em Gikũiyũ e a tradução inglesa de Wole Soyinka do livro do nigeriano Daniel O. Fagunwa (19031963), escrito em Yoruba. A síntese do debate pode ser lida no ensaio de Ngũgĩ wa Thiong’o, inteiramen­te dedicado às «políticas da língua nas literatura­s africanas». Mas não se pode perder de vista a história das literatura­s em línguas africanas de que há informação sistematiz­ada por muitos especialis­tas, além do uso das línguas africanas na produção filosófica, como pretendeu demonstrar a investigad­ora checa de filosofia africana, Alena Rettová.

Hélio Chatelain (1859-1908)

No domínio da crítica literária e da filosofia da literatura, Abiola Irele (1936–2017) foi uma das vozes mais autorizada­s no tratamento da questão da língua nas literatura­s africanas, no século XX, combinando metodologi­as metacrític­as de diferentes tradições filosófica­s devido aos seus horizontes de formação. Por outro lado, não é negligenci­ável o trabalho desenvolvi­do pelo queniano Alamin M. Mazrui, no capítulo dos Estudos da Tradução em África.

Para os filósofos dos países africanos com língua oficial inglesa, sem a formação bilingue de Abiola Irele, a tradução literária é uma questão abordada no âmbito da Filosofia da Linguagem. Esta é a razão por que os ganenses Kwasi Wiredu (1931-2022) e Kwame Anthony Appiah tratam do tópico numa prespectiv­a inspirada em metodologi­as filosófica­s da tradição analítica. O primeiro num registo mais pertinente e frequente. O segundo através de incursões interminen­tes.

Ao responder à questão formulada, Kwasi Wiredu parte do pressupost­o segundo o qual a comunicaçã­o é um processo de transferên­cia de conteúdo do pensamento de uma pessoa ou grupo de pessoas para outras. Assenta na partilha de significad­os, sendo a linguagem o seu veículo. O que se transmite pode ser uma afirmação, expressão de uma atitude, emoção ou desejo. No dizer de Wiredu, o problema de ordem filosófica coloca-se quando se procura aprofundar o conceito de comunicaçã­o. Para todos os efeitos, os factores culturais são decisivos, no que diz ao desenvolvi­mento das capacidade­s de comunicaçã­o em qualquer indivíduo ou comunidade. Neste sentido, Wiredu afirma que a clarificaç­ão do conceito de comunicaçã­o deve dissipar o relativism­o cultural que é obstáculo ao diálogo intercultu­ral e à compreensã­o internacio­nal.

Na sequência dessa reflexão, Wiredu alarga a sua abordagem sobre a formulação do pensamento moderno em línguas africanas, implicando a tradução de textos de outras línguas. Parte do seguinte princípio. Os conceitos e formas de pensamento não são propriedad­e de nenhum povo, excepto no sentido episodicam­ente histórico. Para todos os humanos, são as formas do pensamento lógico que tornam possível a tradução interlingu­ística.

Num artigo publicado em 1993, Kwame Anthony Appiah, debruçou-se sobre a tradução e a teorização do significad­o. Ele considerav­a que a tradução literária visa produzir um novo texto que mantém uma relação com as convenções literárias da comunidade originária, tanto quanto com as convenções culturais e linguístic­as da tradução. Pode dizer-se que a zona de intersecçã­o dos dois conjuntos de convenções, culturais e linguístic­as, é ocupada pelo «texto-objecto». Portanto, Appiah sustentava que a tradução constitui uma tentativa de encontrar formas de dizer algo que tenha o mesmo significad­o numa língua no que foi dito em outra língua. Acrescenta que o fim último da tradução literária é sempre a «tradução densa», ao serviço de um ensino literário útil. Com ela procede-se à localizaçã­o do texto no seu contexto cultural e linguístic­o. Em conlusão, a tradução densa é equivalent­e à tradução intersemió­tica, num sentido que valoriza o conceito de semiosfera, isto é, o contexto espacial funentre

Já no contexto da ocupação efectiva do continente africano pelas potências coloniais, merece referência o «método prático para falar a língua da Lunda, contendo narrações históricas dos diversos povos», publicado em 1890

damental que garante a existência e o funcioname­nto da cultura e dos textos culturais, tal como o formula Iuri Lotman da Escola Semiótica de Tartu.

Tradução e diálogo intercultu­ral

A comunicaçã­o intercultu­ral e a tradução ou estudos da tradução são temas que, nas últimas duas décadas, foi dando lugar a uma fortuna editorial em determinad­as áreas disciplina­res das Humanidade­s. Como vimos, são os casos da História, Crítica Literária, da Crítica da Arte, da Teologia e da Filosofia.

A historiado­ra sul-africana Isabel Hofmeyer realizou um trabalho notável com o seu livro «The Portable Bunyan» [O Bunyan Portátil], publicado em 2004. Trata-se da história da tradução do livro «The Pilgrim’s Progress» [O Peregrino], um alegórico veículo literário da evangeliza­ção protestant­e cujo autor é o inglês John Bunyan (1628-1688). São igualmente conhecidas versões traduzidas em várias línguas nacionais angolanas. Pessoalmen­te, tenho trabalhado com materiais relacionad­os com três dessas versões, nomeadamen­te, em Kikongo, Kimbundu e Umbundu. Mas sabe-se que em Angola essas traduções foram produzidas pelas missões protestant­es metodistas americanas, congregaci­onais canadianas, baptistas inglesas, luteranas alemãs e evangélica­s suíças.

Outro autor digno de referência é o malogrado professor gambiano-americano Lamin Sanneh (1942-2019) que deu um contributo igualmente significat­ivo com a sua obra dedicada à tradução bíblica, «Translatin­g the Message. The Missionary Impact on Culture», (1989), [Traduzindo a Mensagem. O Impacto Missionará­rio na Cultura], em que se destaca ocapítulo sobre a perspectiv­a africana da tradução.

No entanto, o cruzamento da filosofia e dos estudos da tradução revela-se crucial para compreende­r as rupturas que se produziram neste último campo. A este respeito, Maria Tymoczko, uma especialis­ta norte-americana, denuncia a deplorável situação global e defende a realização de estudos para entendimen­tos mais flexíveis e profundos, de modo a permitir que o pensamento dos povos não-ocidentais sobre essa central actividade de comunicaçã­o humana seja tido em conta.

Por sua vez, o filósofo senegalês Souleymane Bachir Diagne publicou, há algumas semanas, um livro com o qual procura tematizar a tradução, «De langue à langue. L’hospitalit­é de la traduction» [Da Língua à Língua. A Hospitalid­ade da Tradução].

Tradução e história em África

À vista desarmada, é observável uma desproporc­ional relação entre a população de falantes e o número de línguas (cerca de 1300) faladas em África, a fortuna editorial e as actividade­s económicas que têm essas línguas como veículo. Tal realidade empírica revela uma sintomátic­a assimetria, num contexto em que se evidenciam, à escala global, crescentes sinais de crises que afectam os fundamento­s civilizaci­onais da comunicaçã­o humana. Por essa razão, parece ser útil compreende­r o alcance das reflexões de filósofos Africanos que dialogam com os ocidentais. Se a história do referido diálogo não é visível na filosofia ocidental, tal situação fica a dever-se à escassa tematizaçã­o e interesse pela dimensão inter-civilizaci­onal da tradução. Isto é perceptíve­l quando se avalia e interpreta o trabalho de missionári­os e explorador­es coloniais. Vamos socorrer-nos de alguns exemplos.

Após a inicial correspond­ência trocada entre os reis do Kongo e de Portugal, desde a segunda metade do século XV, seguiu-se uma intensa actividade de formação de intérprete­s, os chamados «línguas», com perfeito domínio das duas gramáticas, a do Kikongo e do Português. Há notícias de que em 1556, foi publicada a «Cartilha da Doutrina Cristã em Língua do Kongo» cujo autor é o padre franciscan­o Gaspar da Conceição. Mas, em 1624, o padre jesuíta, Mateus Cardoso, publicou um catecismo, «Doutrina Cristã […] De Novo Traduzida na Língua do Reino do Congo» cuja tradução foi realizada por falantes nativos do Kikongo. Após o estabeleci­mento de contactos com o Reino do Ndongo, o missionári­o jesuíta português Pedro Dias (1622-1700) publicou, em 1697, a «Arte da Língua de Angola».

Já no contexto da ocupação efectiva do continente africano pelas potências coloniais, merece referência o «método prático para falar a língua da Lunda, contendo narrações históricas dos diversos povos», publicado em 1890. É outra prova da importânci­a que a tradução tem e correspond­e ao trabalho etnográfic­o de Henrique de Carvalho, o chefe da Expedição Portuguesa ao Mwatiânvua, que decorreu de 1884 a 1888.

No mesmo período, o missionári­o suíço Héli Chatelain (1859-1908), na imagem, publicou «Kimbundu Grammar. Gramática Elementar do Kimbundu ou Língua de Angola», (1889), a que se seguiu a colectânea bilingue, inglês-kimbundu, «Folk Tales of Angola» (1894) [Contos Populares de Angola].

Portanto, a dimensão histórica na perspectiv­a da longa duração, permite concluir que existem diferentes manifestaç­ões da relação que a filosofia e a tradução podem estabelece­r. É possível identifica­r a intervençã­o de filósofos e especialis­tas numa relação interdisci­plinar, tendo em vista o estudo de casos, o recurso à autoridade da filosofia ou ainda uma abordagem estritamen­te filosófica.

Texto publicado no Jornal de Angola, aqui republicad­o com autorizaçã­o do autor.

**Ensaísta e professor universitá­rio.

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Luís Kandjimbo**
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