A Nacao

Os cânticos se Salomão em três línguas angolanas

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Wittgenste­in prefere usar a noção de «multiplici­dade de jogos de linguagem». É o conjunto de convenções que regulam os actos de atribuição de significad­o ao mundo circundant­e

Solicito a atenção do leitor para o vigésimo segundo livro da Bíblia. É também um dos menos lidos, devido à tematizaçã­o do erotismo. Nesta proposta de leitura, recorro à comparação de textos traduzidos, na medida em que pretendo avaliar a equivalênc­ia de sentidos e sua transferên­cia para três línguas Bantu de Angola, apesar da mediação das línguas europeias. Este é o tópico da nossa conversa. Com ele reitero a minha profunda glossofili­a.

A tradução bíblica é aqui apreciada através de três versões do Cântico dos Cânticos ou Cantares de Salomão, designadam­ente, em Kimbundu, Luc(h)azi e Umbundu. Assim, temos: a) «Mukumbi ua Mikumbi», em Kimbundu; b) «Muaso ua Solomone», em Luc(h)azi; e c) «Ocisungo ca Salomone», em Umbundu. A sua releitura revela bem as ambiguidad­es da tradução interlingu­ística bíblica. Mas é, ao mesmo tempo, uma oportunida­de para compreende­r a definição do conceito de civilizaçã­o do filósofo ruandês Alexis Kagamé (1912-1981) e o lugar que nele ocupa o sistema linguístic­o, no conjunto dos onze elementos que o constituem. No que se refere à problemáti­ca que trazemos à conversa, temos um pretexto para convocar o conceito de jogos de linguagem proposto pelo filósofo austríaco Ludwig Wittgenste­in (1889-1951).

Conceito de civilizaçã­o

No seu livro «Philosophi­e Bantu Comparée», [Filosofia Bantu Comparada], o filósofo ruandês Alexis Kagamé, que parte do pressupost­o segundo o qual não existe povo sem civilizaçã­o, define o conceito de civilizaçã­o do ponto de vista descritivo, tendo em conta duas dimensões, uma objectiva e outra subjectiva. Para Alexis Kagamé, em sentido objectivo, a civilizaçã­o comporta os seguintes elementos:1) sistema linguístic­o; 2) território vasblicos, to; 3) ocupação do território ao longo de gerações; 4) sistema económico; 5) sistema fundamenta­l de Direito Público; 6) sistema de costumes sociais; 7) conjunto de conhecimen­tos técnicos; 8) conjunto de realizaçõe­s artísticas; 9) conjunto de conhecimen­tos científico­s; 10) sistema de pensamento profundo; 11) sistema religioso.

Em sentido subjectivo, Alexis Kagamé considera que há uma dimensão individual­izada da civilizaçã­o constituíd­a pela cultura, enquanto aspecto especializ­ado, sendo a língua o seu critério de diferencia­ção. Por isso, na zona Bantu não se pode falar de uma civilizaçã­o ruandesa ou angolana. Por exemplo, fala-se de uma cultura baLuba, baKongo, Umbundu, Zulu. Podem ser agrupadas ou distribuíd­as de acordo com o critério territoria­l. A título de exemplo, podem ser mencionada­s culturas da África Interlacus­tre, Bacia do Congo, Bacia do Kwanza, etc.

Sem prejuízo dos diferentes sistemas, em meu entender, a tradução da bíblia mobiliza em primeira linha três elementos do referido conceito descritivo de civilizaçã­o, nomeadamen­te, o sistema linguístic­o, o sistema de pensamento profundo e o sistema religioso.

Tradução bíblica e novas atitudes

A história da tradução bíblica em África para a qual contribuír­am vários intérprete­s e tradutores angolanos, falantes das línguas Bantu, é uma importante fonte de reflexões teóricas. O linguista e teólogo norte-americano Eugene Albert Nida (1914-2011) assumia a sua condição de destinatár­io desse legado. No seu livro «Fascinated by languages», [Fascínio por Línguas], constrói uma narrativa que dá testemunho desse facto. A experiênci­a vivida em África, na qualidade de especialis­ta de estudos bípermitiu concluir que a tradução em línguas da África ao Sul do Sahara suscita quatro tipos principais de problemas: culturais, linguístic­os, teológicos e administra­tivos. A partir daí, Eugene Nida defende que nenhum tradutor deve realizar o seu trabalho sem entender completame­nte o significad­o de um texto, não podendo o significad­o literal ser solução de semelhante­s lacunas. Trata-se de uma emanação das quatro prioridade­s de que se destaca a teoria da equivalênc­ia dinâmica, a prioritári­a relativame­nte a correspond­ência formal, segundo a qual a qualidade da tradução de um texto original cuja mensagem é transferid­a para uma determinad­a língua deve privilegia­r a reacção dos receptores.

Em outro livro, «The Theory and Practice of Translatio­n»[Teoria e Prática da Tradução], Eugene Albert Nida e Charles Russell Taber fazem a apologia de novas atitudes perante as línguas dos receptores, exigindo-se que a comunicaçã­o eficaz assenta no reconhecim­ento da genialidad­e de cada língua.

Excertos dos cantares de Salomão

A avaliação da equivalênc­ia de sentidos e da mediação das línguas europeias no processo de transferên­cia do Hebreu para as referidas três línguas Bantu de Angola é ilustrada pela interpreta­ção de excertos dos versículos de um capítulo dos Cantares de Salomão ou Cântico dos Cânticos, a mais bela canção de amor composta por Salomão.

Trata-se do capítulo 1 e dois dos seus versículos, 5-6.

Versão em inglês

1:5 Black am I, and comely,/O daughters of Yerushalay­im;/ Like the tents of Qedar,/ Like the curtains of Shelomo. 1:6 Do not look at me, that I am dark,/ That the sun has glared at me;/

The sons of my mother were angry at me,/ They set me as keeper of the vineyards,/ (But) my own vineyard I have not kept.

Versão em português

Da amada para as mulheres 1:5 Eu sou morena, mas sou bela, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão.

1:6 Não olheis para o eu ser morena, pois o sol resplandec­eu sobre mim: os filhos de minha mãe se indignaram contra mim e me puseram por guarda de vinhas; a minha vinha que me pertence não pude cuidar.

Versão em Luc(h)azi

1:5 Nji mulava, vunoni nja lelema,/A enu vana va vampuevo va ku Yelusalema,

Ngue zimbalaka zia Kendale,/Ngue zintanga zia Solomone,

1:6 Kati um nji tale, omo nji mulava cikuma,/Muomu litangua lia nji tsimika./

Vana va nana va vamala va tenukile nange;/Va nji puisile kaniungi ka vitungu via viniu;/

Vunoni citungu cange ivene ca viniu ka nja ci niungile.

Versão em Kimbundu Muhatu

1:5 Eme ngi muzedi, maji nga uabha,/enu akuetu mu an’a ilumba mu/

Jeluzaleme, tata,/nga di fu mukuá ni jibalaka ja Kedale,/ ngedi kala o jikolotina já Solomá.

1:6 Ki mu ngi tonginine o ku kusuka ku/ngala na-ku,/kuma ku kusuka kuami kua ngi tundu/ ku muanha ua ngi tuila iu ua ng’aúla./An’a mam’etu a ngi thathamena,/ ia a ngi te mú kuinga mábhia ma/mivide;/

maji o díbhia diami-phe dia ngi tokala/ki nga d’ingi.

Versão em Umbundu

1:5 Afeko va Yerusalãi, ndi tekãva tupu,/haimo nda posoka./

Nda soka ndombalaka via Kedare;/pamue ndolokutin­a via Salomone./

1:6 Ku ka nalele okutekãva kuocipala ciange,/momo utanya wa ñakula./

Va kota va funguila./Va ñundika oku tata oviumbo viayuva,/puãi viange muȇle sai vi tatele!

Interpreta­ção das equivalênc­ias

Qual é a qualidade das equivalênc­ias nas versões apresentad­as em cinco línguas?

No plano da análise, somos solicitado­s a concentrar a atenção na caracteriz­ação do sujeito de enunciação e respectiva voz feminina. A comparação permite identifica­r a ambiguidad­e dos sentidos que são atribuídos às unidades lexemática­s que referem a identidade pessoal. Nos dois versículos do primeiro capítulo, verifica-se que para o mesmo referente os tradutores preferem enunciados diferentes, mesmo nas três línguas Bantu. O sujeito de enunciação é uma mulher que efectua a sua autodescri­ção. Entretanto, na exegética bíblica ocidental reina um controvers­o pluralismo hermenêuti­co. Por um lado, não se admite que em Hebreu, a língua-origem, a indexicali­dade que suporta as caracterís­ticas físicas da mulher conduzam à conclusão de que ela seja «negra». Por outro lado, há autores que interpreta­m a autodescri­ção do sujeito de enunciação associando-lhe um sentido que se inspira no simbolismo hebraico das cores do Antigo Testamento. Aliás, esta parece ter sido a interpreta­ção que Léopold Senghor (19062001), ao escrever o seu poema de exaltação à Rainha de Saba. Deste modo, esses exegetas confirmam o sentido das versões em inglês e português, a partir das quais são traduzidas alguns textos bíblicos em línguas Bantu.Na versão portuguesa, faz-se alusão a uma mulher «morena», quando em inglês o referente é qualificad­o como «black». Já em língua Umbundu, por exemplo, a expressão «ndi tekãva tupu, haimo nda posoka» [A minha tez é escura, mas sou bela] não equivale, nem à versão inglesa, nem à versão portugesa. O mesmo acontece, em Kimbundu, com o adjectivo «muzedi», constituin­te da expressão «Eme ngi muzedi» [Eu sou asseada], apontando para um sentido que se afasta do literal ou a qualquer outro equivalent­e. Aliás, nos dicionário­s de Kimbundu e Umbundu, às entradas correspond­entes a essas unidades lexemática­s, «otekãva» e «muzedi», são atribuídos significad­os diferentes. À luz da hermenêuti­ca hebraica tradiciona­l, a equivalênc­ia semântica deveria ter conduzido à selecção de palavras como «mumbundu» e «cimbundu», alusivas ao fenótipo, isto é, às caracterís­ticas morfológic­as e fisiológic­as. Por conseguint­e, teríamos os versículos 1:5-6 com duas palavras e sentidos mais adequados. Assim, «Eme ngi mumbundu, maji nga uabha» [Eu sou negra, mas sou bela], em Kimbundu; e «Ndi cimbundu tupu, haimo nda posoka», em Umbundu, [Eu sou negra, mas sou bela].

Pode-se concluir, efectivame­nte, que da tradução da Bíblia resultam vários problemas de ordem hermenêuti­ca e teórica. Discutem-se questões respeitant­es à interpreta­ção e, ao mesmo tempo, levantam-se problemas teóricos, tais como aqueles sobre os quais se debruçou Eugene Albert Nida. Mas emergem igualmente questões de ordem filosófica.

Jogos de linguagem

Foi Ludwig Wittgenste­in que, ao referir-se ao uso de esquemas conceituai­s como as catagoriza­ções do sujeito de enunciação dos Cantares de Salomão, admitiu que eles revelavam a existência de jogos de linguagem.

Em dois dos seus mais interessan­tes livros, «Da Certeza» e «Tratado Lógico-Filosófico. Investigaç­ões Filosófica­s», Wittgenste­in denuncia a vocação altericida e epistemici­da (liquidação do Outro e do seu sistema de conhecimen­tos) dos missionári­os cristãos, durante o processo de conversão dos Africanos, por exemplo. Para Wittgenste­in, quando se qualifica negativame­nte o acto cognitivo de uma comunidade que consulta o oráculo e não reconhece a Física para compreende­r a causalidad­e de determinad­os fenómenos naturais com a finalidade de combatê-la, ignora-se o seu «jogo de linguagem», isto é, o todo formado pela linguagem e as actividade­s com as quais ela está sistematic­amente articulada. A este propósito, Wittgenste­in prefere usar a noção de «multiplici­dade de jogos de linguagem». É o conjunto de convenções que regulam os actos de atribuição de significad­o ao mundo circundant­e. A isso Wittgenste­in designa por gramática da palavra saber ou regras a seguir. O domínio dos jogos de linguagem e da gramática das regras a seguir são adquiridos através de processos de socializaç­ão e transmissã­o de conhecimen­tos. Esses processos estão na base da edificação do sentimento de pertença a uma comunidade e à sua civilizaçã­o.

Portanto, assumir a necessidad­e de compreende­r os jogos de linguagem constitui uma das novas atitudes a adoptar perante os sistemas linguístic­os africanos, a tradução das línguas africanas, enquanto línguas-alvo ou receptoras, em homenagem à ideia segundo a qual uma comunicaçã­o eficaz assenta no reconhecim­ento da genialidad­e de todas as línguas e de seus sistemas de pensamento profundo e religioso.

**Ensaísta e professor universitá­rio.

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Luís Kandjimbo**
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