Um “sampadiu” que foge ao lugar comum, das “rimas sem valor”...
Lançado em Junho do ano passado, “Sampadiu” é tido como um dos álbuns musicais mais inovadores lançados recentemente por um artista cabo-verdiano. Todas as suas 12 faixas são da autoria de Ary Kueka, vencedor de quatro troféus instituídos pela Sociedade Cabo-verdiana de Música (SCM), entregues no passado fim de semana, no Mindelo. Antes, algumas das suas composições foram gravadas por Ceuzany, Tito Paris, Mirri Lobo…
Ary Duarte, 39 anos, mais conhecido por Ary Kueka, alcunha que recebeu na sua infância pelos seus amigos, nasceu no Paul, ilha de Santo Antão, e cresceu entre a ilha das montanhas e a de São Vicente, mas também passou por Santiago. O seu primeiro álbum “Sampadiu” é, no fundo, fruto dessa vivência. Nele procura apresentar a síntese dos vários géneros musicais cabo-verdianos.
Com cerca de 16 anos, Ary diz ter-se despertado para a música, tendo sido membro da banda “Improviso”, na altura do liceu, quando estudava em São Vicente, banda essa que despareceu por conta de “rumos diferentes” que a vida impôs a cada um dos seus membros.
Na verdade, confessou ao A NAÇÃO, “sempre gostei de música, ela esteve sempre presente na minha família, nos meus amigos... Habitualmente, nos reuníamos para fazer serenatas, entre outras formas de entreter através da música”.
Em 2021, lançou “Sampadiu”, que, segundo diz, contém músicas “mistas”, 12 faixas, todas da sua autoria, entre elas “Escravatura Moderna”, nomeada a melhor composição da Gala Noite de Autores da SCM.
“Essa composição escrevia-a há cerca de 18 anos, quando trabalhava para uma empresa estrangeira que estava a fazer uma obra em Cabo Verde, basicamente ela retrata a escravatura, mas de uma forma actualizada e moderna, a que somos sujeitos hoje em dia”.
Neste momento, apesar do reconhecimento da SCM, Ary Kueka diz-se desprovido de planos para o futuro, já que normalmente vive um dia de cada vez, mas de “mãos dadas” com a música. Pretende continuar a focar-se mais na composição e não tem previsão de quando será lançado o próximo álbum.
Aliás, a feitura de “Sampadiu” surgiu quando praticamente tinha desistido de levá-lo avante, depois de várias tentativas frustradas. “Eu estava mais focado a compor porque não tinha tido oportunidade de gravar, mas o Ministério da Cultura abraçou o projecto e o próprio ministro Abraão Vicente me incentivou a não desistir”, frisou.
“Sampadiu”, como chegou a explicar, aquando do seu lançamento, é uma mistura da linguagem, estilo e ritmo (tabanca, morna, funaná) de todas as ilhas e, portanto, engloba o “sampadjudo” e o “badio”, fugindo, ao mesmo tempo, das “rimas sem valor”, enfim, um disco que fala igualmente da nossa “tendência” de sermos “dependentes” de outros povos.
“Há também uma faixa designada ‘recicla’ que fala que nós seres humanos reciclamos lixo, mas não estamos a reciclar a nossa consciência e os sentimentos, nomeadamente, o amor ou seja reciclamos o material e o imaterial não”, reflectiu o artista.
Sobre “Sampadiu” escreveu o crítico Paulo Linhares: “A voz de Ary é forte, intensa, parecendo nela conter tempo de maturação. Muda rapidamente de formatos em instantes, passando da alegria de uma coladeira ao choro-cantado, que se mistura depois com o canto da Tabanka ou a energia do Sanjon, indo até ao ‘Rap’. Vai buscar carimbos-marca como por exemplo um tipo de arrastar-eco da última silaba de algumas palavras que nos remetem ao significado de tempo. Aliás, em relação ao tempo, é sublime a maneira como o canta, contando. Há ontens que se tornam hojes de forma valiosa e bucólica, nas estórias que foram histórias e na vida que corre pela linha do tempo”.
Membro da SCM desde 2019, Ary Kueka diz que “sem influências alheias” resolveu espontaneamente tornar-se membro dessa entidade porque queria registar e proteger as suas produções e garante que tem usufruído das vantagens, embora que esta questão ainda não está muito socializada em Cabo Verde, visto que não é todos que ainda pagam os direitos de autor, mas garante que é uma mais-valia para os artistas e apela a inscreverem para protegerem as suas obras.
Fora do mundo da música, Ary Kueka ganha a vida como gerente do “Ateliê Bar”, situado na vila das Pombas, onde reside actualmente.