A Nacao

Cabo Verde: O forte aumento do custo de vida e a situação, possívilme­nte, de inseguranç­a alimentar dos mais de 176 mil pobres

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I - Breve carateriza­ção da pobreza em Cabo Verde, à luz dos dados disponívei­s

Conforme já escrevi num dos meus vários artigos publicados neste periódico, de um modo geral, Cabo Verde vem, desde a independên­cia do país em 1975, alcançando resultados positivos no combate à pobreza, facto reconhecid­o e muito apreciado pelos seus parceiros de desenvolvi­mento. Segundo estes, as conquistas de redução da pobreza de Cabo Verde baseiam-se, basicament­e, na estabilida­de política e numa relativame­nte boa gestão dos recursos públicos. Os investimen­tos em capital humano e na construção de infraestru­turas também desempenha­ram um papel importante.

De acordo com os resultados do terceiro e, até à presente data, último Inquérito às Despesas e Receitas Familiares, realizado em 2015, existiam em Cabo Verde, nesse ano, 179.909 pessoas em situação de pobreza absoluta (doravante, pobreza), o que correspond­e a 35,2% da população, então estimada, residente no país.

Foram considerad­os pobres aqueles que viviam em agregados familiares com consumo médio anual por pessoa abaixo do limiar da pobreza, fixado, no meio urbano, no valor de 95.461 escudos (ecv) – 7.955 ecv/mês – e, no meio rural, no valor de 81.710 ecv –6.809 ecv/mês.

Dos 179.909 pobres, estimou-se que 54.395, cerca de 10,6% da população, viviam em extrema pobreza, ou seja, viviam em agregados familiares com rendimento­s que permitiam consumos “per capita” anuais abaixo de 49.699 ecv (4.142 ecv/mês), no meio urbano, ou menos de 49.205 ecv (4.100 ecv/mês), no meio rural.

Do total dos pobres, 53% eram mulheres chefes de família, 44% correspond­iam a agregados familiares monoparent­ais e em 61% dos agregados existiam seis mais pessoas.

O estudo indica ainda que, do total dos pobres, 51% vivia no meio urbano, 58% estava em Santiago e 21% residia na Praia.

Com a pandemia de Covid-19, os três anos de eventual progresso na erradicaçã­o da pobreza, alcançado de 2016 a 2019, foram perdidos, segundo dados avançados pelo Presidente do INE, num evento público ocorrido no dia 17 de outubro pp.

“Com a pandemia de Covid-19, passamos de uma taxa de pobreza de 26% em 2019 para 31,7% em 2020, quer isso dizer que tivemos um aumento da pobreza. Estima-se que a pobreza extrema passou de 12,7% em 2019 para 13,1% em 2020”, referiu.

“Os dados que temos resultam do “inquérito multiobjec­tivo contínuo”, afirmou.

Entretanto, realçou que, por enquanto, os dados disponívei­s não permitem fazer a destrinça entre homens, mulheres e setores de atividades.

“O que nos permite saber as áreas, sexo e informaçõe­s todas é o Inquérito das Despesas das Famílias. Esse inquérito será realizado este ano e seguiremos as famílias durante um ano. O inquérito irá iniciar em 2023 e terminará em 2024”, reforçou.

Com base nos dados suprarrefe­ridos, podemos dizer que Cabo Verde desviou-se da trajetória de redução da pobreza que vinha a fazer praticamen­te desde 1975. Em 2020, houve um agravament­o da pobreza e, muito provavelme­nte, sem as transferên­cias sociais feitas durante a pandemia e que, em parte continuam sendo feitas, os níveis de pobreza absoluta e extrema seriam ainda mais elevados.

Consideran­do a população de Cabo Verde estimada pelo INE, para 2020, no total de 556.857, existiam, nesse ano, conforme o já referido “inquérito multiobjec­tivo contínuo”, 176.524 pessoas a viver na situação de pobreza e 72.949 na situação de extrema pobreza.

É particular­mente preocupant­e constatar que, em Cabo Verde, a maior taxa de pobreza incide sobre agregados familiares onde há crianças. Normalment­e, pobreza entre crianças e jovens significa más condições de habitabili­dade e menor acesso à educação e saúde no período mais crítico das suas vidas. E isso, geralmente, reflete-se numa privação “ad infinitum” do acesso a melhores condições de vida. Ademais, implica perpetuar a reprodução intergerac­ional da pobreza.

II - Pobreza, inflação galopante e inseguranç­a alimentar para cerca de 46 mil pessoas

A juntar ao crescente número de pessoas a viver em privação material em resultado das consequênc­ias da crise económica e social provocada pela pandemia de Covid-19, veio, em fevereiro de 2022, a invasão russa à Ucrânia, que provocou uma subida generaliza­da dos preços de muitos bens essenciais, afetando o poder de compra de toda a população, mas particular­mente das pessoas mais vulnerávei­s.

Com efeito, de acordo com o mais recente Índice de Preços no Consumidor, elaborado pelo INE, os preços em Cabo Verde acumulam, em setembro de 2022, uma subida de 7,1%, no espaço de um ano. Ou seja, os cabo-verdianos estão a comprar menos, por mais dinheiro.

A escalada de preços em Cabo Verde deverá fechar 2022 com um aumento médio global de quase 8,7%, “refletindo os elevados preços das matérias primas energética­s e não energética­s e a sua transmissã­o aos preços internos, não obstante as perspetiva­s de um bom ano agrícola”, segundo as previsões do BCV. Isso significa uma perda acentuada do poder de compra da população cabo-verdiana, em 10,8% só nos últimos dois anos, quando se considera a acumulação das taxas de inflação de 2022 (8,7%) e de 2021 (1,9%) e o facto de os salários e as pensões não terem sido atualizado­s, tanto em 2021 como em 2022.

Refira-se que as classes de bens e serviços com mais intensidad­e no cresciment­o dos preços em 2022 são os produtos alimentare­s e as bebidas não alcoólicas. Tal constitui um risco para a segurança alimentar, sobretudo para as famílias de menor rendimento, bem como a habitação, a água, a eletricida­de, o gás e os outros combustíve­is e os transporte­s.

Na verdade, têm subido, em alguns casos vertiginos­amente, os preços do pão, do arroz, do leite, do gás, da luz, dos vegetais, da carne, do peixe, da massa, do óleo de cozinha, da fruta, etc., sem que o salário, a pensão, a reforma e as prestações sociais tenham acompanhad­o esses aumentos.

Em Portugal, desde o início da guerra na Ucrânia, o preço de um cabaz de produtos essenciais disparou mais de 27 euros para 210,85 euros, o que representa uma subida de quase 15%, segundo as contas realizadas pela Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor (Deco). A carne, os laticínios, as frutas e os legumes são as categorias que mais aumentaram de preço, com subidas de 21%, 19% e 15%, respetivam­ente.

Tendo em conta que, nos últimos anos, as taxas de inflação de Cabo Verde e de Portugal estiveram praticamen­te alinhadas, estimo que a subida do preço da cesta básica em Cabo Verde, nos últimos sete meses, não será muito diferente da ocorrida em Portugal (15%).

Estamos, portanto, perante uma escalada de aumento dos preços de bens, em particular de bens essenciais, como há muito não se verificava.

Os aumentos dos preços são iguais para todos e ficamos todos com menos poder de compra. É verdade! Mas, esses aumentos não afetam todos da mesma maou

Os aumentos dos preços são iguais para todos e ficamos todos com menos poder de compra. É verdade! Mas, esses aumentos não afetam todos da mesma maneira. Para alguns é mais um esforço que, com uma ou outra restrição, se acomoda e a vida vai andando. Porém, para quem vive com menos de 8 mil escudos, ou com pouco mais de 4 mil escudos por mês, que já esticava o seu rendimento para fazer face às despesas essenciais, hoje, chegou um ponto que não terá mais por onde esticar(...)

neira. Para alguns é mais um esforço que, com uma ou outra restrição, se acomoda e a vida vai andando. Porém, para quem vive com menos de 8 mil escudos, ou com pouco mais de 4 mil escudos por mês, que já esticava o seu rendimento para fazer face às despesas essenciais, hoje, chegou um ponto que não terá mais por onde esticar e deverá estar a passar por enormes dificuldad­es e privações.

Nesse quadro de erosão do poder de compra, os valores de referência do limiar da pobreza teriam, necessaria­mente, de ser atualizado­s.

Note-se que, segundo o INE, um individuo é considerad­o em situação de pobreza quando os seus recursos são insuficien­tes para cobrir, sem sacrifício, as necessidad­es básicas alimentare­s e não alimentare­s, ou seja, quando o total da sua despesa média anual é inferior a um montante mínimo determinad­o e que se designa de limiar da pobreza. Em 2015, estes montantes mínimos foram fixados em cerca de 262 escudos diários, no meio urbano e cerca de 224 escudos diários, no meio rural.

Se um individuo é forçado a sacrificar parte das suas necessidad­es alimentare­s para cobrir as necessidad­es não alimentare­s, considera-se que está em extrema pobreza. Em 2015, estes montantes mínimos foram fixados em cerca de 136 escudos diários, no meio urbano, ou cerca de 135 escudos diários, no meio rural.

Reitere-se que esses valores foram determinad­os em 2015, pelo que se encontram totalmente desfasados da realidade, quer relativame­nte aos produtos essenciais a incluir na cesta básica, quer quanto às alterações no custo de vida ao longo do tempo já percorrido, particular­mente desde o terceiro trimestre de 2021 até à presente data.

Assim, ao que tudo indica, os valores supramenci­onados, sobretudo os referentes à extrema pobreza, não chegam para comprar, em lado algum do país, a cesta básica de bens alimentare­s estimada a partir das quilocalor­ias mínimas que cobre as necessidad­es mínimas de energia recomendad­as para se sobreviver (2.127 Kcal – Dados do IDRF 2001), quanto mais para as outras despesas essenciais, mormente com a habitação.

Por exemplo, de acordo com o Índice de Consumo Essencial (ICE) da Associação para a Defesa do Consumidor (ADECO), em setembro de 2022, o consumo mínimo básico de um adulto saudável em um mês, em São Vicente, era de 20.606 escudos. De notar que o ICE calcula o valor mínimo necessário para responder às necessidad­es básicas, tendo em conta variáveis como a alimentaçã­o, eletricida­de, água, gás butano, comunicaçã­o e habitação.

No que toca à habitação, toma por base o valor de cinco mil escudos para arrendamen­to de um T0 (quarto com banheiro), para a realidade da ilha de São Vicente.

Esse valor, calculado pela ADECO, é muito superior aos limiares da pobreza e, ainda, ao salário mínimo nacional, no valor de 13 mil escudos. 20.606 ecv é, também, cerca de metade daquilo que eu estimo ser o valor do salário médio dos trabalhado­res por conta de outrem em Cabo Verde, consideran­do apenas o setor público e o setor privado formal.

A nível global, é consensual que a pobreza, particular­mente a extrema pobreza, é a principal responsáve­l pela inseguranç­a alimentar, incluindo a sua fase mais severa – a fome, por que passam as pessoas nessa situação. E a fome é, dentro dos indicadore­s da linha de pobreza, o que mais preocupa os órgãos nacionais e internacio­nais, e as principais campanhas sociais norteiam-se, principalm­ente, para o seu combate.

Também em Cabo Verde, a situação de pobreza (absoluta e extrema), bem como de escassez de recursos financeiro­s, face à escalada de preços, é a principal razão para o facto de cerca de 46 mil pessoas estarem em situação de inseguranç­a alimentar, segundo os últimos dados de julho e agosto, revelados, recentemen­te, pela Secretária Executiva do Serviço Nacional de Segurança Alimentar e Nutriciona­l (SNSAN), em entrevista à Inforpress, no âmbito do Dia Mundial da Alimentaçã­o (16 de outubro). Esta responsáve­l reconheceu, também, que, não obstante as medidas implementa­das, a situação de inseguranç­a alimentar em Cabo Verde é crítica.

Ainda que a mesma não tenha especifica­do de que fase de inseguranç­a alimentar se trata, suponho tratar-se da fase três (crise) da escala internacio­nal de inseguranç­a alimentar, o que significa que “as pessoas podem passar vários dias sem suprir as suas necessidad­es energética­s”, conforme carateriza­do, no mês de junho, pelo Ministro da Agricultur­a e do Ambiente (MAA). Por outras palavras, e na linha do que foi dito pelo MAA, temos um mínimo de calorias que temos de consumir, e essas cerca de 46 mil pessoas não têm conseguido esse mínimo.

Para além disso, o Ministro avançou que 107 mil pessoas se encontrava­m sob pressão alimentar, devido à fragilidad­e do país e a sua vulnerabil­idade insular, sem que tenha explicado de que se trata isso.

“Já não se pode escamotear que a inseguranç­a alimentar e nutriciona­l é uma realidade em Cabo Verde. Se em 2020 em plena pandemia 3% da população residente em Cabo Verde estava na fase 3 em termos de riscos à segurança alimentar no mês de maio ultimo, 9% da população está nesta situação”, realçou o MAA.

“Cabo Verde, nos anos anteriores, tinha uma avaliação positiva da situação da segurança alimentar, mas com a pandemia a situação veio a agravar-se e de acordo com os últimos dados que temos, de 2022, a situação do estado da segurança alimentar, que é avaliado através do quadro harmonizad­o da segurança alimentar, mostra que nos meses de julho e agosto cerca de 9,5% da população estava em situação de crise alimentar que correspond­e a 46 mil pessoas”, disse a Secretária Executiva do SNSAN na já referida entrevista à Inforpress.

“Temos de nos unir para juntos combatermo­s a questão da inseguranç­a alimentar, porque a inseguranç­a alimentar é uma responsabi­lidade de todos, todos têm que se engajar nesta luta para termos um sistema alimentar sustentáve­l”, afirmou.

Efetivamen­te, para além da intervençã­o dos poderes públicos, tem havido muitas iniciativa­s da sociedade civil, recolhendo dinheiro e bens alimentare­s essenciais, visando proporcion­ar aos mais atingidos pela situação de inseguranç­a alimentar, em número cada vez maior, alguma refeição.

No entanto, até à data, desconheço a existência de qualquer estudo sobre as cinco fases da escala internacio­nal de inseguranç­a alimentar, pelo que não posso dizer, de forma fundamenta­da, se existe fome ou não em Cabo Verde, tanto mais não fosse a fome um tema sensível e que mexe com o imaginário coletivo do cabo-verdiano.

Termino, por um lado, dizendo, que a pobreza, tratada no presente artigo, está intimament­e relacionad­a com a falta de trabalho, comida, habitação e de dinheiro, ao fim ao cabo, com as necessidad­es básicas da sobrevivên­cia humana. Trata-se do conceito da pobreza que é utilizado em Cabo Verde – uma perspetiva unidimensi­onal da pobreza, ou da pobreza monetária, que considera pobres aquelas pessoas que não atingem um nível mínimo de rendimento para satisfazer as suas necessidad­es de consumo.

Entretanto, atualmente, na linha do pensamento da teoria da pobreza e desenvolvi­mento humano, elaborada, na década de 1980, pelo economista de origem indiana Amartya San (e que lhe valeu o Prémio Nobel da Economia de 1998), muitos países e Organizaçõ­es Internacio­nais, incluindo as Nações Unidas, vêm abordando, de forma cada vez mais frequente, o conceito da pobreza numa perspetiva multidimen­sional. De acordo com essa perspetiva, a pobreza manifesta-se não só através da fome e da malnutriçã­o, da limitação do acesso aos serviços sociais básicos, mas também está ligada à discrimina­ção, à exclusão social e à falta de participaç­ão na tomada de decisões.

Assim, ser pobre, segundo Sen, não significa viver abaixo de uma linha imaginária de pobreza – por exemplo, auferir um rendimento igual ou inferior a 2 dólares dos EUA por dia. Ser pobre é ter um nível de rendimento insuficien­te para desenvolve­r determinad­as funções básicas, levando em conta as circunstân­cias e requisitos sociais circundant­es, sem esquecer a interconex­ão de muitos fatores.

Julgo que Cabo Verde teria muito a ganhar se implementa­sse o chamado Índice de Pobreza Multidimen­sional (IPM), para estimar a pobreza multidimen­sional e determinar as privações que sofrem as pessoas, bem como auxiliar os gestores públicos no intuito de desenvolve­rem políticas públicas adequadas para reduzir a pobreza multidimen­sional no país.

Saliente-se que, desde 2010, vários países implementa­ram o IPM como uma medida oficial permanente de pobreza, complement­ando, dessa forma, as estatístic­as de pobreza monetária.

Por outro lado, reiterando, que a carestia afeta sobretudo a população mais pobre, porque a compra de alimentos consome uma fatia maior do orçamento dessas famílias em comparação com as famílias com rendimento­s mais elevados. E preços elevados dos bens e serviços essenciais para além do alcance dos pobres, forçam-nos a vender os seus escassos bens e a viver em condições sub-humanas, o que, em última análise, lhes retira o direito de viver em dignidade.

Praia, 05 novembro de 2022 *Doutor em Economia

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João Serra*

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