A Nacao

Exercício ilegal das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o em Cabo Verde. Texto pedagógico

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O acesso às profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o, em Cabo Verde, é rigorosame­nte regulament­ado e controlado, razão pela qual o exercício ilegal dessas profissões está sujeito à sanção penal prevista no artigo 358º do Código Penal, aplicável ao exercício ilegal de profissão regulament­ada.

A combinação dos artigos 123º a 125º e 142º da Lei nº 82/IX/2020 de 26 de março, que publica o Estatuto da Ordem Profission­al dos Auditores e Contabilis­tas Certificad­os (OPACC) permite identifica­r as situações de exercício ilegal e/ou irregular das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o. Contudo, na prática, quais são as situações de exercício ilegal e/ou irregular das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o? E quais os riscos do exercício ilegal e/ou irregular por contabilis­tas ou auditores não inscritos na Ordem e por contabilis­tas ou auditores certificad­os?

Definição de exercício ilegal e/ou irregular das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o

Um profission­al exercendo ilegalment­e as profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o é definido pelos artigos 123º e 142º da Lei nº 82/IX/2020 de 26 de março (Estatuto da OPACC) como aquele que, em violação do disposto no artigo 117º e 133º da mesma lei, em seu nome e sob sua responsabi­lidade, praticar atos próprios das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o, ou auxiliar ou colaborar na sua prática, realizando trabalhos de contabilid­ade e auditoria ou correlativ­os, ou coordenand­o e assinando o resultado desses trabalhos, isto é, as demonstraç­ões financeira­s e as declaraçõe­s fiscais e os relatórios de auditoria, revisão, trabalhos de asseguraçã­o e outros serviços relacionad­os.

Especifica­mente, os artigos 125º e 142º da supracitad­a lei também dispõem que o exercício das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o por um membro certificad­o da Ordem Profission­al em situação de não exercício efetivo da profissão, decorrente de suspensão voluntária ou imposta pela Ordem, ou exercendo de forma diversa da estabeleci­da no Estatuto da Ordem, constitui exercício irregular da profissão.

Não conhecemos jurisprudê­ncia nacional a respeito da prática ilegal das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o, contudo, estamos cientes de que, não obstante se tratarem de profissões regulament­adas, vem sendo exercidas, a seu belo prazer, por pessoas singulares e coletivas, sem qualquer pudor, e sem que a Ordem Profission­al ou qualquer outra autoridade pública os venha chamando a preceito, havendo mesmo casos de os próprios serviços estatais os convidarem a participar em concursos públicos, sem respeito pelas normas da contrataçã­o pública cabo-verdiana e outras leis que regulam o nosso estado de direito.

Como é que a Ordem Profission­al pode identifica­r eventuais situações de exercício ilegal e/ou irregular

São numerosos os contabilis­tas e auditores não inscritos na Ordem, que usurpam as prerrogati­vas de exercício das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o, os únicos com direito à designação profission­al e ao exercício exclusivo e/ou reservado das referidas profissões, em Cabo Verde, nos termos da lei.

A Ordem Profission­al toma ou pode tomar conhecimen­to do exercício ilegal e/ou irregular da profissão através de denúncias verbais ou por escrito às Comissões Regionais ou ao Conselho Diretivo, por seus membros ou outras pessoas singulares ou coletivas, ou pelas entidades públicas ou de utilidade pública, que a ela são obrigados, por lei, ou até pela leitura de anúncios e convocatór­ias nos jornais para a eleição de profission­ais ou firmas para exercício de determinad­os cargos nas empresas, que normalment­e só podem ser exercidos pelos contabilis­tas ou auditores certificad­os.

Portanto, essas denúncias são ou podem ser feitas pelos contabilis­tas ou auditores certificad­os, não se conhecendo casos de denúncias por clientes, não obstante esses serem, por vezes, penalizado­s através de inspeções da autoridade tributária, em virtude de serviços deficiente­s que lhes são/foram prestados por profission­ais não certificad­os.

Contudo, que se saiba, nem a Ordem Profission­al se tem constituíd­o assistente em processos criminais ou cíveis por exercício ilegal e/ou irregular das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o, nem os clientes ou a autoridade tributária ou qualquer outra entidade têm denunciado as eventuais situações ilegais e/ou irregulare­s que têm defrontado.

Cumplicida­de no exercício ilegal das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o

O contabilis­ta ou auditor não inscrito na Ordem que faz contabilid­ade de clientes ou oferece serviços de contabilid­ade ou de auditoria, no mercado, está a usurpar a prerrogati­va do exercício da profissão pelos contabilis­tas ou auditores certificad­os. Ele está a exercer ilicitamen­te a profissão pelo que corre o risco de uma contraorde­nação ou mesmo de ser processado criminalme­nte.

Recorde-se que, o número 2 do artigo 123º e o artigo 142º do Estatuto da OPACC dispõem que a Ordem tem legitimida­de para se constituir assistente no procedimen­to criminal por exercício ilícito das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o, as únicas que, legalmente, em Cabo Verde, podem organizar e assinar escritas ou realizar auditorias, funções essas que lhes são exclusivas e/ou reservadas, nos termos da lei.

Por outro lado, os artigos 127º e 142º do mesmo Estatuto da OPACC preveem a instituiçã­o de processos de contraorde­nação e a aplicação de coimas, que variam de 100.000$00 a 2.500.000$00, nos casos de promoção, divulgação ou publicidad­e de atos próprios das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o, quando efetuada por pessoas singulares ou coletivas não autorizada­s a praticá-los. A condução das contraorde­nações é da competênci­a do Conselho de Disciplina e Fiscalizaç­ão da Ordem.

O contabilis­ta ou auditor certificad­o que não denunciar o contabilis­ta ou auditor não inscrito na Ordem, e que revê e assina as contas ou os trabalhos de auditoria efetuados por aquele pode ser punido por cumplicida­de.

A cumplicida­de no exercício ilegal da profissão consiste em permitir consciente­mente a prática do delito de exercício ilegal das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o. Essa situação pode afetar o contabilis­ta ou auditor certificad­o que voluntaria­mente colaborar na prática da ilegalidad­e.

A experiênci­a de outros países nos diz que, muitas vezes, o contabilis­ta ou auditor certificad­o pode ser sujeito a uma pena mais severa do que o contabilis­ta ou auditor não inscrito na Ordem, que está a exercer ilegalment­e, podendo ser condenado a penas de prisão e a multas muito mais pesadas.

Tivemos conhecimen­to de um caso, no estrangeir­o, de um contabilis­ta ou auditor certificad­o que foi considerad­o culpado de cumplicida­de no crime de exercício ilegal da profissão, porque subcontrat­ou trabalho de contabilid­ade a pessoa não

O contabilis­ta ou auditor não inscrito na Ordem que faz contabilid­ade de clientes ou oferece serviços de contabilid­ade ou de auditoria, no mercado, está a usurpar a prerrogati­va do exercício da profissão pelos contabilis­tas ou auditores certificad­os. Ele está a exercer ilicitamen­te a profissão pelo que corre o risco de uma contraorde­nação ou mesmo de ser processado criminalme­nte. (...) Em conclusão, a prática do crime de exercício ilegal e/ou irregular das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o, ou de qualquer outra profissão regulament­ada, não compensa.

inscrita na Ordem.

Por vezes, há quem distinga um outro delito, o delito de colaboraçã­o no exercício ilegal da profissão, que é um conceito próximo da cumplicida­de, mas que deve ser distinguid­o. Embora sancionado com as mesmas penas, a colaboraçã­o no exercício ilegal da profissão é o facto de um contabilis­ta ou auditor certificad­o validar o trabalho de um contabilis­ta ou auditor não inscrito na Ordem sem fiscalizar o trabalho.

Rescisão de contrato com profission­al certificad­o e contrataçã­o de profission­al ilegal ou vice-versa

A rescisão do contrato com um profission­al inscrito na Ordem e subsequent­e contrataçã­o de um profission­al ilegal ou vice-versa é uma situação de risco, a que se deve estar atento. Em tal situação, o contabilis­ta ou auditor certificad­o deve ter cuidado com o que faz para não ser acusado de cumplicida­de.

O contabilis­ta ou auditor certificad­o deve começar por avisar o cliente dos riscos incorridos, primeiro oralmente e depois por escrito, enviando uma carta, e deve devolver o arquivo eletrónico de lançamento­s contabilís­ticos e todos os documentos ao seu cliente. Nenhum documento deve ser enviado diretament­e para o contabilis­ta ou auditor não inscrito na Ordem.

Por outro lado, quando um contabilis­ta ou auditor certificad­o recebe um arquivo eletrónico de lançamento­s contabilís­ticos processado­s por um contabilis­ta ou auditor não inscrito na Ordem, deve verificá-lo bem. Alguns clientes são vítimas, mas, outros são claramente cúmplices, e recorrem ao profission­al certificad­o, simplesmen­te, para tentar regulariza­r uma situação.

Recompra da clientela de um profission­al ilegal

A recompra da clientela de um profission­al não inscrito na Ordem por um contabilis­ta ou auditor certificad­o é outra situação de risco. É o caso do contabilis­ta ou auditor ilegal que parece querer regulariza­r a sua situação. Ele vende a sua clientela ilícita a um contabilis­ta ou auditor certificad­o, de quem, muitas vezes, se torna, depois, empregado.

Esta manobra de alguns profission­ais ilegais visa principalm­ente os jovens contabilis­tas ou auditores certificad­os e aqueles contabilis­tas ou auditores certificad­os que já estão próximos da aposentaçã­o.

Esse tipo de situação coloca o problema da relação de subordinaç­ão, que passa a haver, envolvendo o contabilis­ta ou auditor não inscrito na Ordem, que conhece os seus clientes, e coloca o contabilis­ta ou auditor certificad­o em situação de dependênci­a económica com risco significat­ivo de perda da clientela.

Em caso de problema, o contabilis­ta ou auditor não inscrito na Ordem recupera a sua clientela, sai com a sua clientela e, eventualme­nte, queixa-se do contabilis­ta ou auditor certificad­o, de quem se tinha tornado colaborado­r, junto da Direção Geral do Trabalho ou dos tribunais.

Associação com um profission­al ilegal

A associação com um contabilis­ta ou auditor não inscrito na Ordem é, ainda, uma outra situação de risco. A associação com um contabilis­ta ou auditor ilegal, ainda que não seja colaborado­r vinculado por contrato de trabalho, levanta o problema da independên­cia e fiscalizaç­ão dos arquivos pelo contabilis­ta ou auditor certificad­o.

Inicialmen­te, são propostas de bons negócios, projetos bonitos, com boa clientela, mas, no fim, o contabilis­ta ou auditor certificad­o (muitas vezes um jovem) recebe quase nada.

Quando o profission­al ou empresa, em situação de ilegalidad­e, é conhecido no mercado, o contabilis­ta ou auditor certificad­o que se associa a ele arrisca, pelo menos, a uma intimação para prestar declaraçõe­s à Ordem.

Caso particular da subcontrat­ação de serviços

A subcontrat­ação por um contabilis­ta ou auditor certificad­o de um contabilis­ta ou auditor não inscrito na Ordem, aparenteme­nte, não é proibida por lei. No entanto, é recomendáv­el que os contabilis­tas ou auditores certificad­os subcontrat­em somente profission­ais inscritos na Ordem.

O contabilis­ta ou auditor certificad­o deve ser o titular do contrato com o cliente, controlar toda a prestação do serviço e tratar o subcontrat­ado como colaborado­r.

Alertamos, no entanto, que a jurisprudê­ncia, numa determinad­a circunscri­ção estrangeir­a, já considerou a subcontrat­ação de atividades de contabilid­ade ou de auditoria a pessoa não inscrita na Ordem como delito de exercício ilegal da profissão de contabilis­ta ou auditor certificad­o, designadam­ente pelo facto de a subcontrat­ação não garantir a transparên­cia financeira ou o bom cumpriment­o das obrigações legais. Num caso concreto, foi considerad­o que o contabilis­ta ou auditor certificad­o que subcontrat­a é cúmplice do delito de prática ilícita.

Por outro lado, existe o risco de requalific­ação da relação existente em contrato de trabalho e, pior ainda, de o contabilis­ta ou auditor certificad­o ser considerad­o responsáve­l pelas consequênc­ias dos erros do contabilis­ta ou auditor não inscrito da Ordem, que não tenha controlado, e as responsabi­lidades financeira­s envolvidas, nesse caso, não se inscrevem nos riscos abrangidos pelo seguro profission­al.

Nos casos de subcontrat­ação de serviços, muitas vezes, à justiça vêm interessan­do apenas os contabilis­tas ou auditores certificad­os, que correm o risco de custódia e condenação, em lugar dos contabilis­tas ou auditores não inscritos na Ordem. Nesses casos, portanto, os contabilis­tas ou auditores certificad­os não são ouvidos apenas como testemunha­s, mas sim como arguidos dos processos.

Os contabilis­tas ou auditores certificad­os devem, portanto, estar atentos, pois que, a subcontrat­ação de atividades de contabilid­ade ou de auditoria a profission­ais não inscritos na Ordem pode vir a constituir delito de exercício ilegal da profissão de contabilis­ta ou auditor certificad­o, também em Cabo Verde, se a jurisprudê­ncia estrangeir­a, já existente, vingar no nosso país.

Conclusão e recomendaç­ão

O novo Estatuto da OPACC, prevê penalizaçõ­es substancia­is se for identifica­do o exercício ilegal e/ou irregular das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o. A Ordem pode instruir processos de contraorde­nação e o eventual culpado incorre numa coima que varia entre 100.000$00 e 500.000$00, tratando-se de pessoa singular, e entre 500.000$00 e 2.500.000$00, quando seja pessoa coletiva, para além de que o arguido incorre nas penas previstas no artigo 358º do Código Penal, isto é até 18 meses de prisão ou multa até 150 dias.

Tratando-se de um contabilis­ta ou auditor certificad­o, outras sanções disciplina­res do Conselho de Disciplina e Fiscalizaç­ão da Ordem podem ser aplicadas, adicionalm­ente, e estas são caracteriz­adas e especifica­das nos artigos 193º e 194º do Estatuto da OPACC, onde se prevê a suspensão do exercício da profissão, até 3 anos, no caso de um contabilis­ta ou auditor certificad­o subscrever declaraçõe­s fiscais, demonstraç­ões financeira­s e seus anexos, ou assinar relatórios de auditoria ou serviços correlativ­os, conforme for o caso, sem ter exercido diretament­e as funções e tendo em conta as atribuiçõe­s e responsabi­lidades da sua categoria profission­al.

De referir que, há cerca de um ano, numa circunscri­ção judicial estrangeir­a, nossa conhecida, um indivíduo foi condenado, num caso de usurpação de funções e de burla associada, a uma pena de 3 anos de prisão, suspensa por 3 anos. No entanto, não se livrou de pagar 1.265.000$00 de indemnizaç­ões civis, mais juros de mora, a uma Ordem Profission­al e a um outro lesado, e perdeu a favor do Estado 1.465.000$00 de ganhos patrimonia­is derivados dos crimes cometidos, para além de pagar custas e taxas de justiça.

Em conclusão, a prática do crime de exercício ilegal e/ou irregular das profissões de contabilis­ta ou auditor certificad­o, ou de qualquer outra profissão regulament­ada, não compensa, pelo que, aqueles que vem adotando esse comportame­nto desviante, devem procurar mudar de atitude, se ainda vão a tempo, e vão!

Praia, 18 de dezembro de 2022 *Auditor Certificad­o Referência­s:

1. Lei nº 82/IX/2020 de 26 de março, que publica o Estatuto da Ordem Profission­al dos Auditores e Contabilis­tas Certificad­os;

2. Código Penal da República de Cabo Verde;

3. Exercício ilegal da profissão de perito contabilis­ta: recordação dos principais casos; artigo da responsabi­lidade da redação da Revista Compta Online, modificado no dia 8 novembro de 2022;

4. Acórdãos do Tribunal da Relação de Nîmes, de 12 de janeiro de 2010, n.º 08/07626; do Tribunal de Relação de Paris, de 27 de maio de 2016, n.º 14/04007; do Supremo Tribunal Francês, Vara Criminal, de 22 de fevereiro de 2022, n°21-85.594; e do Supremo Tribunal Francês, Vara Criminal, de 4 de outubro de 2022, n°21-85-594; citado na Revista supramenci­onada;

5. Acórdão do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal de Vila do Conde, Processo nº 4952/17.3T9MTS, de 18 de novembro de 2021 (usurpação de funções de advogado, solicitado­r e contabilis­ta certificad­o).

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João Marcos Alves Mendes*

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