As metáforas da representação *
Quando em Angola os cientistas políticos, os juristas e sociólogos falam de representação política, de um modo geral, raramente revelam o conhecimento do pluralismo que se manifesta através dos dispositivos legais oficiais coexistentes com a linguagem metafórica a que as autoridades do poder tradicional recorrem para debater e problematizar questões comunitárias. Como é evidente, estou a referir-me à linguagem política metafórica cujo repertório é constituído pelos catálogos orais e escritos dos provérbios, aforismos e outras formas breves da literatura oral.
No nosso País, a enunciação de um provérbio e os contextos em que ocorre a tematização de uma questão moral e política são fenómenos linguísticos e literários dignos de reflexão teórica. Não cabendo neste texto a exploração de todo o património paremiológico oral angolano, a proposta de conversa consiste em proceder à interpretação de uma amostra representativa de provérbios em línguas nacionais de que se podem extrair tipos de metáforas morais e políticas.
Teorias
A metáfora enquanto fenómeno da linguagem tem suscitado debates em diversos sectores e domínios do saber. Interessa seguir o seu desenvolvimento e o trabalho dos autores que defendem os respectivos fundamentos. Contudo, a história das teorias críticas da metáfora apresenta diferenças de base civilizacional. Quase um século após a institucionalização académica dos estudos literários e linguísticos africanos, bem como da filosofia africana, não há relativamente à especificidade de problemas que a metáfora levanta. Isto significa dizer que existe uma concepção africana da metaforicidade, se o fundamento da relativização for a dimensão civilizacional.
A síntese do filósofo norte-americano, John Searle, dá uma perspectiva dos dois campos que na filosofia e estudos literários ocidentais se opõem, designadamente as teorias da comparação e as teorias da interação semântica.
As teorias da comparação discutem as condições de verdade da afirmação metafórica e o processo da sua compreensão, por parte dos falantes e os ouvintes. As teorias de interação semântica centram as atenções na distinção entre o presumível significado metafórico da frase ou da palavra e o significado que, podendo ser metafórico, é atribuído pelo sujeito de enunciação. Outros autores reconhecem que a filosofia ocidental deve muito à metáfora porque sem metáfora, não haveria filosofia. Entendem que o potencial de qualquer filosofia de dar sentido à vida de uma pessoa depende diretamente do facto de os humanos serem «animais metafóricos».
Tipos de metáforas
A metáfora enquanto fenómeno designa um expediente universal de comunicação verbal que é praticado por diferentes comunidades humanas e em todas as línguas naturais. A necessidade de aprofundar o seu conhecimento tem dado origem a processos de categorização. Assim, independentemente das línguas em que é veiculada, definem-se critérios com base nos quais são classificados os tipos de metáforas que podem ser, por exemplo, conceptuais, antropomórficas, estéticas, científicas, filosóficas, morais ou políticas. Ao procedermos ao inventário dos seus modos de existência, de que destacamos provérbios em línguas nacionais, podemos concluir que se torna possível construir uma teoria de metáforas angolanas.
O que caracteriza a metáfora é a alteração do sentido das unidades lexemáticas que integram um determinado enunciado, por força da actividade de interpretação. À luz de algumas teorias, tal alteração baseia-se na chamada comparação metafórica entre os referentes e as palavras que estabelecem a relação de semelhança de sentido. A antropomorfização parece ser um dos processos que permite sondar o mundo da imaginação colectiva que encontra na comunicação verbal o plano da sua manifestação.
Em Angola, abundam metáforas antropomórficas, através das quais são atribuídas elevadas qualidades humanas e comportamentos virtuosos a animais. Do ponto de vista moral, o repertório de textos em que podem ser extraídas as metáforas assume funções de espelho para efeitos educativos. Os homens convivem com os animais e, ao atribuir algumas das qualidades humanas a estes animais, observam-se a si mesmos. Os papeis sociais são vistos a uma distância que só a ficção permite.
Antropomorfização
O exercício de interpretação desse tipo de metáforas antropomórficas pressupõe um sólido domínio das línguas nacionais e dos fundamentos culturais que estruturam as tradições orais. No caso de Angola, tal como se exige em outros países do continente africano, é relevante conhecer, por exemplo, a fauna, a zoonímia e o bestiário de base civilizacional bantu que povoam a imaginação colectiva das comunidades históricas ou étnicas.
Em síntese, pode dizer-se que é imprescindível conhecer a psicologia e as representações que as comunidades constroem acerca do mundo social, especialmente, das actividades e comportamentos culturais, morais, jurídicos, políticos, económicos e religiosos. De contrário, não é possível compreender os sentidos das metáforas antropomórficas angolanas.
A audição e leitura das narrativas da literatura oral permitem identificar a existência de critérios para o que poderia ser designado como hierarquia moral de personagens. Trata-se de um bestiário que é, ao mesmo tempo, narrativo e paremiológico. Isto é, personagens-animais de contos e provérbios angolanos. No referido catálogo parece possível verificar a operacionalização de critérios valorativos de uma escala hierárquica. O elenco constituído por animais selvagens forma uma extensa lista. Eis algumas das personagens da literatura oral, em língua Umbundu e Kimbundu, respectivamente: Mbewu, Mbaxi (Cágado); Kandimba, Kabulu (Lebre); Ngwe, Ngo (Leopardo); Njamba, Nzamba, (Elefante); Hosi, Hoji, (Leão); Cimbungu, Kimbungu (Lobo); Ombwa, Imbwa, (Cão); Ongulu, Ngulu (Porco); Ngwali, Ngwadi (Perdiz); Ngombe (Boi)
Vamos recorrer a exemplos de provérbios, de que se desdúvidas
Em Angola, abundam metáforas antropomórficas, através das quais são atribuídas elevadas qualidades humanas e comportamentos virtuosos a animais. (...) O elenco constituído por animais selvagens forma uma extensa lista. Eis algumas das personagens da literatura oral, em língua Umbundu e Kimbundu, respectivamente: Mbewu, Mbaxi (Cágado); Kandimba, Kabulu (Lebre); Ngwe, Ngo (Leopardo); Njamba, Nzamba, (Elefante); Hosi, Hoji, (Leão); Cimbungu, Kimbungu (Lobo); Ombwa, Imbwa, (Cão); Ongulu, Ngulu (Porco); Ngwali, Ngwadi (Perdiz); Ngombe (Boi).
taca aquele em que o Cágado ou a Tartaruga é o animal a cujos referentes são associadas qualidades humanas através da comparação metafórica. Para o efeito proponho a interpretação das metáforas da representação política. No passado mês de Junho, nesta coluna, abordei o problema da representação, tendo sublinhado a desproporcional importância conferida ao conceito e seu uso frequente em reflexões sobre política, em detrimento do interesse pela discussão ou análise do seu significado. Referi-me à necessidade de situar a representação no cerne da política, enquanto questão central da sociedade, tendo em conta o facto de a sua tematização ser lacunar no campo da filosofia política.
Metáforas da representação
Mbewu ka londi kocisingi, omanu vokapako (sentido literal: O Cágado não chega ao topo do cepo de uma árvore, são as pessoas que o colocam lá).
Ohombo yowiñi yi lala posamwa (sentido literal: A Cabra que é da responsabilidade de todos, dorme ao relento).
Hombo ya kisangela ya fuila bu mukolo (bu luanya) (sentido literal: A Cabra que pertence a todos os membros da associação morreu na corda, ao sol).
Temos aí exemplares de metáforas da representação enunciadas em língua Umbundu e Kimbundu, sendo o Cágado e a Cabra, personagens às quais são atribuídas virtudes, propriedades e correspondentes comportamentos. A interpretação do primeiro provérbio foi incorporada numa das narrativas que compõem o livro «A Morte do Velho Kipacaça», do escritor angolano Boaventura Cardoso. Em «Apologia de Kalitangi», livro de ensaios publicado em 1997, também dediquei algumas linhas à hermenêutica à versão longa desse provérbio.
Se a releitura de um provérbio da literatura oral angolana é sempre uma nova leitura, a interpretação das metáforas do Cágado e da Cabra remete para a representação política e seus pressupostos. Não deixa de ser pertinente admitir que é do discurso sobre o poder e seu exercício na comunidade que se trata. Por conseguinte, conclui-se que o tema do exercício do poder e sua legitimidade não é um lugar inabitável do imaginário angolano.
Qualidades do Cágado
Ao Cágado são reconhecidas muitas virtudes: saber, prudência, inteligência, argúcia e capacidade persuasiva. Tais atributos contrastam com a sua pequenez física. Apesar disso, a comunidade consente que ele seja colocado no topo do cepo da árvore. A sua incapacidade física é contornada pelo reconhecimento das suas virtudes sapienciais. A legitimidade é um princípio que não se restringe ao exercício do poder como algo que se esgota na correspondente obediência. Ao invés, o poder deve ser exercido de acordo com a realidade social e suas regras básicas de convivência. O texto do provérbio, que não deixa de ser um texto ficcional, tem o seu mérito a partir do momento em que, através dele, temos um acesso, entre vários, à realidade. Assim a sociedade indaga-se sobre a sua própria fragilidade. A pequenez física do Cágado é a ironia pura. Não é a esperteza da Lebre. Esta é uma qualidade fútil.
Cabra, um bem comum
A interpretação das versões do segundo provérbio tem como referente o bem comum. Nunca pode ser objecto de apropriação privada porque ninguém pode assumir a responsabilidade de cuidar dele, sem a aprovação da comunidade. O bem comum é um pressuposto da representação. Assume a responsabilidade do que é comunitário aquele que tiver o consentimento dos membros da comunidade. A Cabra que é do povo, habitualmente, não dorme dentro de casa (passa a noite, dorme, no espaço comum, exterior à habitação).
Na verdade, por ser um bem comum, o património público, é como uma Cabra que pertence à comunidade. Por essa razão, só os eleitos pela comunidade podem ter a responsabilidade de cuidar do bem que a todos pertence.
*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 18 de Dezembro, aqui republicado com a autorização do autor. **Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia