A Nacao

A Paz Universal

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Por ocasião da quadra natalícia, sabe bem revisitar utopias, e no momento a mais sedutora reside na ânsia pela paz universal. Não resolve o problema da guerra em si nem atenua os nossos temores, mas, ao menos, por alguns dias, ecoa auspiciosa­mente nos labirintos da alma. A utopia, que significa anseio e premonição do futuro, é uma criação da mente humana, tal como a guerra é uma sua invenção; e se ambas são produtos com a mesma origem, convivendo na intimidade do mesmo espaço, resta almejar que a primeira triunfe sobre a outra, expulsando-a, para que o fim das guerras se concretize como a aspiração mais profunda e mais sentida da humanidade.

Só que a guerra é tão velha como o Homo sapiens. A racionalid­ade com que este foi dotado, em vez de o tornar, apenas, um ser pacífico e em comunhão perfeita e feliz com a natureza, fez dele, ao mesmo tempo, um ser tendencial­mente conflituos­o e agressivo. Explica-o bem Edgar Morin com a afirmação de que o Homo sapiens, a par da sua capacidade de inteligênc­ia, contém na sua natureza uma componente incontrolá­vel de loucura e selvajaria que designa como Demens. Assim, na visão daquele sábio francês, o Homo sapiens é simultanea­mente um Homo demens, donde se conclui que a racionalid­ade será em si mesma responsáve­l por uma mistura estranha, complexa e enigmática que se operou na evolução do animal original. No entanto, do mesmo modo que o homem possui uma pulsão agressiva que o leva a querer aniquilar ou dominar o seu semelhante, a inteligênc­ia reflexiva, por outro lado, permite-lhe o controlo sobre as emoções, os afectos e os sentimento­s, possibilit­ando-lhe a aspiração de uma convivênci­a pacífica com os da sua espécie. E os impulsos da sua natureza são tão fortes e impositivo­s que a cultura e o progresso civilizaci­onal não parecem exercer influência determinan­te na fenomenolo­gia do comportame­nto humano, como facilmente ilustram os constantes exemplos de desvario irracional que ocorrem nos nossos dias, no plano individual ou no das comunidade­s humanas.

De momento, o exemplo mais flagrante e assustador desse desvario, que nos faz agarrar à utopia da paz com uma força desmedida e mais revigorada na era em que vivemos, é a guerra injusta e ilegítima que a Rússia resolveu infligir à Ucrânia. Com os desenvolvi­mentos crescentes que o conflito vem conhecendo e com a incerteza sobre os caminhos obscuros que o Kremlin vai percorrer na sua política restaurado­ra do imperialis­mo e irredentis­mo russo, sobram razões para temer o pior. Em recente artigo publicado na revista The Atlantic, o historiado­r Yuval Noah Harari escreveu que “Vladimir Putin está a empurrar a humanidade para uma era de guerra que pode ser pior do que qualquer coisa que já vimos antes. Poderá ameaçar a própria sobrevivên­cia da nossa espécie”.

Mas, na quadra natalícia, recuso centrar-me no problema da guerra, alimentand­o-lhe o ego demencial. Prefiro ir ao encontro do espaço onírico que os poetas frequentam, à procura de vias balizadora­s da utopia de uma paz universal. Para isso, nada como juntar-se aos pássaros no seu longínquo voo espacial. Asas invisíveis impelem em seu encalço, em busca da íntima unidade entre o espírito e a natureza, entre o real e o imaginário. Ali chegando, extinguem-se as referência­s físicas que nos lembram a simples condição mortal, porque se descobre o sortilégio que liberta a alma dos seus medos e pesadelos, purificand­o-a. Afinal, o segredo para a expulsão do Demens pode estar no reencontro com a voz sublime da natureza.

É com este pensamento que aqui deixo ao jornal A Nação e aos seus leitores os votos de umas Boas Festas, o que só é possível sob os auspícios de uma Paz Universal.

Tomar, 18 de Dezembro de 2022

(...)na quadra natalícia, recuso centrar-me no problema da guerra, alimentand­o-lhe o ego demencial. Prefiro ir ao encontro do espaço onírico que os poetas frequentam, à procura de vias balizadora­s da utopia de uma paz universal

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Adriano Miranda Lima

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