Holanda pede desculpas pelo seu papel no tráfico de escravos
Quase 150 anos após o fim oficial do tráfico de escravos nas suas antigas colónias, o Estado holandês, na pessoa do primeiro-ministro Mark Rutte, pediu oficialmente desculpas nesta segunda-feira, 19, pelo papel do país na escravatura e pelas suas consequências que ainda estão presentes nos dias actuais.
“Em nome do governo, peço desculpas pelas acções do Estado holandês no passado”, disse Mark Rutte, em Haia, na segunda-feira, a propósito do aproximar dos 150 anos do fim da escravidão no país e nos seus antigos domínios coloniais.
“Nós só podemos chamar a escravidão de crime contra a humanidade e condená-la fortemente”, acrescentou. “Durante séculos, o Estado holandês e seus representantes permitiram, estimularam e lucraram com a escravidão. É verdade que ninguém vivo hoje carrega a culpa pessoal pela escravidão. O Estado holandês, porém, é responsável pelo imenso sofrimento causado naqueles que foram escravizados e em seus descendentes”.
O pedido formal de desculpas histórico ocorre no quadro de um reexame mais amplo do passado colonial do país, que inclui esforços para devolver arte saqueada e o combate ao racismo existente na sociedade holandesa. A Holanda é hoje formada por naipe variado de povos e culturas. Apesar do pedido, activistas holandeses são cépticos e afirmam que o acto do primeiro-ministro não é suficiente. Do seu ponto de vista, há que fazer muito mais.
Holanda no tráfico de escravos
Ao longo dos séculos, os holandeses compraram e transportaram cerca de 600 mil escravos da África no comércio transatlântico, levando-os para colónias caribenhas como Suriname e Curaçao, bem como outras colónias europeias nas Américas.
Os africanos escravizados também foram transferidos à força para as colónias holandesas no Oceano Índico, como a actual Indonésia, e os escravizados balineses ou javaneses foram, por seu turno, transportados para a hoje África do Sul.
Ainda no quadro da sua expansão colonial, a Holanda disputou com outras potências (Portugal, Espanha, França e Inglaterra) alguns territórios no globo. Esteve em Angola e no Brasil, por exemplo, ocupando parte desses territórios, tornando-se uma das grandes potências da altura. A Indonésia foi das primeiras colónias que restavam à Holanda a proclamar unilateralmente a sua independência, em Agosto de 1945. E o Suriname tornou-se independente em 1975.
Biliões são necessários para reparações
Para Armand Zunder, presidente da Comissão Nacional de Reparação do Suriname, nem o pedido de desculpas sozinho e nem os planos revelados de dedicar 200 milhões de euros para aumentar a conscientização sobre a escravidão, além de 27 milhões de euros para a construção de um museu, são suficientes.
“Aquilo que foi destruído deve ser consertado. Nosso quadro de referência é de biliões de euros e certamente não centenas de milhões de euros», disse o Zunder à imprensa local na semana passada.
O pedido de desculpas do primeiro-ministro surge um ano e meio depois que um relatório encomendado pelo governo o recomendou, bem como outras medidas para lidar com o racismo institucional existente no país. Em 2020, Mark Rutte chegou a rejeitar a ideia, alegando que ela causaria polarização social.
Uma pesquisa realizada no início deste ano pela emissora NOS mostrou que metade dos holandeses se opunha a um pedido de desculpas. No entanto, várias cidades do país – incluindo Amsterdão e, mais recentemente, Haia – já pediram desculpas por seu papel na escravidão, assim como o banco central holandês e o banco ABN AMRO.
Desculpas raramente se traduzem em reparações
Impulsionada em parte pelo movimento Black Lives Matter nos EUA, a pressão para que as ex-potências coloniais da Europa olhem para as atrocidades do passado aumentou nos últimos anos.
Em 2020, o rei Philippe da Bélgica expressou “profundo pesar” pelas atrocidades cometidas durante o domínio colonial do seu país no Congo, em particular sob seu antecessor e parente, Leopoldo 2º, mas não chegou a pedir desculpas.
A Alemanha pediu desculpas no ano passado pelo genocídio na Namíbia no início do século 20 e prometeu cerca de 1 bilião de euros em ajuda ao desenvolvimento.
Para Jennifer Tosch, fundadora da Black Heritage Tours Amsterdam, houve mudanças sociais positivas nos últimos anos, como mais reconhecimento em instituições públicas, que ela atribui a décadas de luta das comunidades de descendentes de escravos. Mas, para ela, ainda há um longo caminho a percorrer.
Há “muita injustiça social, desigualdade, lacunas na educação e na produção de riqueza, na linguagem”, enfatizou. “Se pararmos por aí e não houver nenhuma ação direta após esse pedido de desculpas, parecerá um símbolo ou gesto que não teve a intenção de produzir nenhuma mudança social”, avalia.
Portugal
Na sexta-feira da semana passada, 16, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, de Portugal, reconheceu pela primeira vez o massacre ocorrido há 50 anos na localidade de Wiriyamu, Moçambique, perpetuado por tropas portuguesas contra a população civil dessa localidade. Do ataque estima-se a morte de pelo menos 385 camponeses, entre adultos e crianças.
O gesto de Rebelo Sousa parece situar-se do reexame do passado colonial de Portugal, país que dentro de dois anos irá assinalar os 50 anos do fim da ditatura e independência das suas antigas colónias, Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Principe, Angola e Moçambique.