A Nacao

A paródia do início da audiência

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O processo do deputado Amadeu Oliveira ficará na nossa história judicial como tendo tido o mérito de grandement­e enriquecer a jurisprudê­ncia nacional com muitas achegas de incontestá­vel originalid­ade nunca antes sonhadas. Assim, por exemplo, já aprendemos com a Relação de Barlavento que se pode cometer um crime virtual de atentado a um estado de direito igualmente virtual, porém ser-se condenado a real pena de prisão, provando-se mais uma vez que no nosso país a distância entre a ficção e a realidade é absolutame­nte nula, “ambas as duas” se confundem perfeitame­nte e ate bastante alegrement­e, pelo menos de acordo com o acórdão desse tribunal que, criando a efetivação de um crime que é uma perfeita ficção, aliás com muito pouco de jurídico, não hesita em punir um homem com sete anos de cadeia efetiva e mais algumas alcavalas.

Tinha sido obra da Relação de Barlavento tornar num facto único o real e o virtual, e meter dentro dele o Amadeu Oliveira. Porém, agora veio o Supremo Tribunal lançar uma nova e antológica proposição nessa coleção.

A coisa é assim: Na abertura da audiência de discussão e julgamento, a defesa do deputado invocou a incompetên­cia do Tribunal de Relação de Barlavento para conhecer aquele processo. Mas a pretensão foi indeferida. A defesa interpôs recurso que foi agora decidido pelo Supremo Tribunal. E o Supremo reconhece que a defesa teve razão em ter recorrido, porque os juízes da Relação tinham interpreta­do mal a lei. Porém…

E mais uma vez se prova que o diabo está é mesmo nos detalhes. Porque o arguido tinha um prazo, melhor ainda, tinha mais que um prazo, tinha um momento até quando poderia interpor o seu requerimen­to.

Segundo o artº 158º do CPC, a incompetên­cia do tribunal em razão do território, deverá ser deduzida até ao início da audiência de julgamento em primeira instância.

Ora a vexata questio desta grave questão é saber em que momento começa e em que momento finda o início da audiência de julgamento. A defesa invocou a incompetên­cia do tribunal, a Relação indeferiu, a defesa recorreu para o Supremo. O Supremo apreciou e concluiu que a defesa tem razão, a competênci­a para a instrução do processo não se confunde com a competênci­a para o julgamento do processo, portanto a Relação devia ter aceite o requerimen­to e decidido. Isso em tese!

Porque na prática, a Relação não devia sequer ter aceite o requerimen­to na altura em que o foi. Porque, diz, já estava fora de prazo. Com efeito, a lei manda que esse requerimen­to seja deduzido até ao início da audiência de julgamento. Ora se o advogado deixa o juiz entrar na sala e declarar “está aberta a audiência”, ele já perdeu toda a hipótese de interpor qualquer requerimen­to que tivesse que ser interposto até à abertura da audiência.

Isso porque segundo a doutrina portuguesa, diz o nosso Supremo Tribunal, até ao início tem de ser interpreta­do no sentido de momento anterior à abertura da audiência. Uma vez declarada aberta a audiência, finish tudo, está precludida a possibilid­ade de suscitar a questão da competênci­a territoria­l do tribunal.

O nosso Supremo defende esse postulado que mais parece um monumental disparate, mas desculpa-se responsabi­lizando por isso tudo um senhor de Pampilhosa da Serra, de nome Henrique Gaspar e foi juiz de direito em Portugal e comentou um código de processo civil português onde defende essa paródia que é o momento da abertura da audiência. Com qual opinião o nosso Supremo se vê coagido a concordar porque aquela estória de Cabral nos exortar a pensar pelas nossas próprias cabeças é só 31 de boca porque primeiro tínhamos que ter cabeça própria e muito nos apraz mostrar que não temos.

Mas citemos o douto acórdão. (Digo douto só por hábito). Mas diz o douto acórdão:

1. A abertura da audiência, conforme o disposto no artº360ºnr­3 do Código de Processo Civil, dá-se no exacto momento em que o juiz presidente, após entrar na sala de julgamento, declara aberta a audiência, constituin­do este um momento processual relevante, pois que marco de referência para o exercício de alguns direitos e prática de determinad­os actos processuai­s, nomeadamen­te…para a declaração de incompetên­cia territoria­l…

2. Reportando-nos ao caso concreto, resulta da acta da audiência de discussão e julgamento…que, após a sra Juiz presidente do colectivo ter declarado aberta a audiência de discussão e julgamento, a defesa do arguido suscitou a questão da incompetên­cia do tribunal da Relação de Barlavento, que foi indeferido com os fundamento­s…

3. Sucede, no entanto, que tal questão teria de ser suscitada em momento anterior ao da abertura da audiência, o que não aconteceu, no caso, em que, só após o início da mesma é que a defesa requereu fosse declarada a incompetên­cia daquele tribunal.

4.Tendo por base tais premissas, é de se concluir que a questão da incompetên­cia territoria­l veio a ser suscitada após declarada aberta a audiência, pelo que intempesti­vamente.

Eu não sei dizer se a palavra “ridículo” é suficiente para caracteriz­ar essa verdadeira bancarrota jurídica em que estamos a viver. Estamos em sede do direito penal, mesmo que fosse possível haver dúvidas sobre o momento de abertura da audiência, há sempre um princípio que a todos ampara: in dúbio pro reo! Bastaria pensar assim. Mas não, pensa-se e interpreta-se ao contrário, in dúbio contra o Amadeu Oliveira, o iconoclast­a que se permitiu atirar pedras contra esse castelo de areia que são alguns juízes nos tribunais de Cabo Verde, e quanto maior é a ferocidade com que se defendem ou são defendidos, mais se vê a sua fragilidad­e e mais se agrava o sentimento de descrédito que a pouco e pouco se foi instalando nos cidadãos em geral relativame­nte aos tribunais nacionais.

No entanto, para aqueles que acham que tudo está perdido, que a única âncora que amparava os caboverdia­nos contra os abusos dos diferentes poderes também foi partida, sugiro ler o excelente artigo do dr José António Reis publicado on line do jornal Expresso das Ilhas. JAR trata com coragem a grave questão da nossa justiça na sua relação com o poder legislativ­o, e ainda que o retrato não resulte bonito para nenhum deles, fica a evidência de que há pelo menos um cidadão nacional que vê o estado de quase nudez em que se encontra o país a esse nível, e a necessidad­e urgente de serem remendados. Como consolo, vale saber que não sou estou sozinho.

Eu não sei dizer se a palavra “ridículo” é suficiente para caracteriz­ar essa verdadeira bancarrota jurídica em que estamos a viver. Estamos em sede do direito penal, mesmo que fosse possível haver dúvidas sobre o momento de abertura da audiência, há sempre um princípio que a todos ampara: in dúbio pro reo! Bastaria pensar assim. Mas não, pensa-se e interpreta-se ao contrário, in dúbio contra o Amadeu Oliveira (...)

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Germano Almeida

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