Açores Magazine

O primigénio natal a Loeste

- João Pacheco de Melo

- Serafim… - gritou exausta Maria de Fátima! O pujante brado, misto de gemido de dor e clamor de alívio, foi o ponto final de um longo e difícil parto: o primeiro a acontecer no lugar da ponta delgada. Serafim…Serafim… ….Serafim… voltou a ouvir-se, agora de forma repetida e arrastada. Era como se as paredes do algar que servia refúgio ao jovem casal, morada adoptada praticamen­te desde o primeiro dia que chegaram aquelas paragens, propagando a exclamação da aliviada mãe, também dessem as boas vindas ao novo habitante. Dissipado o eco, fez-se um momento de silêncio, permitindo voltar a ouvir o habitual som do mar, em especial quando percorria, umas vezes calma outras furiosamen­te, a longa restinga ali existente até bater nos contrafort­es da rocha onde, quatro ou cinco metros acima, a natureza vulcânica da ilha esculpira a gruta que abrigava Serafim e Maria de Fátima, acolhendo, a partir daquele momento, também, o filho do casal. Aproveitan­do a quietude da ocasião, não mais que um ápice embora não o parecendo, o jovem pai, também extenuado, fechou os olhos e iniciou uma oração de agradecime­nto, até ser interrompi­do pelo primeiro choro do recém- nascido, um entoado pranto, logo ali entendido como uma bênção em resposta às suas preces. Suspendend­o a reza, ao reabrir os olhos Serafim pôde, pela primeira vez, ver o filho de corpo inteiro. Ali estava ele, aconchegad­o ao peito da mãe, ainda com os olhos fechados mas com a boca muito aberta, entretanto já liberto da maioria dos vestígios de tão rudimentar quão eremítico parto. Nascera o primeiro habitante daquela, até ali, desabitada zona da ilha, milagre que estava atraindo o olhar embevecido de ambos os progenitor­es, jovens quase imberbes, que finalmente se podiam regozijar com o motivo da sua tão radical mudança de vida, autêntica aventura, fruto de uma decisão tomada sem grande ponderação, depois muitas vezes repensada, porém nada que, quatro meses passados, levasse ao arrependim­ento o casal fugitivo, fazendo- os voltar atrás. Ali estava a razão de terem abandonado tudo e todos, deixado o razoável conforto da família, amigos e conhecidos; a causa de terem deixando o já então promissor povoado onde cresceram e haviam concebido o fruto que agora apreciavam. Ali estava a justificaç­ão de se terem refugiado naquele ermo, da enorme labuta que tiveram para ali criarem condições mínimas de subsistênc­ia, o objectivo da visível transforma­ção de um lugar que em consequênc­ia do seu esforço e determinaç­ão, em menos de meio ano, se tornara habitável, até aqui só para ambos, agora também para o seu filho, no futuro para os demais vindouros. Regressand­o à realidade, com o choro do filho emprenhand­o os ouvidos e o impetuoso chamamento: - “Se.. ra.. fim…”, “Se.. ra..fim…” -, não lhe saindo da memória, o jovem pai acariciou o filho, afagou os cabelos da ainda esgazeada mãe, beijou- lhe os lábios e, como que respondend­o ao suposto apelo feito minutos antes, disse- lhe ao ouvido: - Fatinha, que queres de mim? - Nada - respondeu ela ainda ofegante -, foi só para saberes que é um menino. Mais um Serafim!

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