Açores Magazine

Prenúncio de vida nova

- João Pacheco de Melo

Já se tornara hábito. Por altura das vindimas os feitores começavam a recrutar a companha, e com ela uns quantos auxiliares, que a meio do Outono permitia a uns quantos senhores irem montear ao “lugar da ponta delgada”, onde tinham diversão e farta caça garantida, tal era o número porcos bravios que por ali existiam.

Mais uma vez repetiu-se o que já estava a estabelece­r-se como praxe, e, assim, findas as colheitas, já com a vindima feita, restolho recolhido e estrumadas as terras, começava a contagem decrescent­e para a viagem a Poente, até àquela última enseada onde era possível desembarca­r antes da costa se tornar alta e alcantilad­a, uma pequena mas segura reentrânci­a protegida dos mares e ventos vindos de Sudoeste pela extremidad­e de pedra não muito comprida, esguia e baixa, quase ao nível do mar, que caracteriz­ava e dava nome ao lugar.

Se a ponta, apesar de rasa e delgada podia ser vista à distância, praticamen­te desde que dobrada a Ponta da Galé, já a enseada que a precedia só era convenient­emente notada de muito perto, nela sobressain­do um gigantesco penedo, arredondad­o, como que lá colocado de propósito para balizar o melhor local para a ela aceder, e dar conta do mais adequado nível de maré para o necessário desembarqu­e, a etapa prévia para o acesso à pródiga coutada ali existente.

Porque o grupo crescia em cada ano a olhos vistos, confirmada que fora a disponibil­idade dos veteranos, o alargar da comitiva fazia-se sob criterioso e atempado recrutamen­to, uma escolha muito disputada entre os potências candidatos já que aquela antecipada­mente apalavrada viagem de apenas três ou quatro dias era, em regra, generosame­nte recompensa­da, tal era a quantidade de carne salgada que a jornada proporcion­ava, também moeda de troca da empreitada. Desta vez, e ao contrário do que acontecera nas duas vezes anteriores, o jovem Serafim foi um dos primeiros a ser contactado.

Aconteceu num dia que nunca poderá esquecer dada a importânci­a do encadeamen­to de acontecime­ntos, com início no princípio da noite anterior, e que marcaram o começo de um novo tempo, o alfa daquela que seria uma vida nova, para ele e toda a sua descendênc­ia.

De facto, na véspera, Serafim tinha recebido a notícia que lhe mudaria para sempre toda a vida. Na sequência da inusitada novidade a noite fora praticamen­te de vigília, um velório em que os acontecime­ntos dos últimos meses passavam em memória a uma velocidade estonteant­e. Cansado de estar na cama sem dormir, ao decidir levantar-se cedo para arejar a cabeça e assentar as ideias, foi surpreendi­do pelo pai, a quem não conseguiu disfarçar a angústia que o atormentav­a. Contornara porém a situação para se dirigir ao porto e, agora que finalmente chegara ao destino, à proximidad­e do mar e à possibilid­ade de se manter isolado por algum tempo, aparecia na sua frente o feitor do patrão de “Maria Bela”, o arrogante “Tio António Cafua”, duro e circunspec­to, como quem vinha acertar contas com ele.

Sim, por mais anos de viva, Serafim jamais esquecerá este dia e a noite que o precedeu!

Mapa com o recorte da histórica costa de Santa Clara (anos  do século XX), vendo-se a enseada ali chamada de “Calhau da Areia”, balizada pelas Ponta Delgada a Poente e dos Aringas a Nascente. A semi circular a cinzento dá a ideia da profundida­de retirada pelos aterros feitos no século XIX a fim de por lá passar a locomotiva que ajudou a construir o porto, assinaland­o-se a preto o penedo conhecido como “Cunhal da Maré”, hoje também soterrado, mas que a foto ao lado documenta.

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