Prenúncio de vida nova
Já se tornara hábito. Por altura das vindimas os feitores começavam a recrutar a companha, e com ela uns quantos auxiliares, que a meio do Outono permitia a uns quantos senhores irem montear ao “lugar da ponta delgada”, onde tinham diversão e farta caça garantida, tal era o número porcos bravios que por ali existiam.
Mais uma vez repetiu-se o que já estava a estabelecer-se como praxe, e, assim, findas as colheitas, já com a vindima feita, restolho recolhido e estrumadas as terras, começava a contagem decrescente para a viagem a Poente, até àquela última enseada onde era possível desembarcar antes da costa se tornar alta e alcantilada, uma pequena mas segura reentrância protegida dos mares e ventos vindos de Sudoeste pela extremidade de pedra não muito comprida, esguia e baixa, quase ao nível do mar, que caracterizava e dava nome ao lugar.
Se a ponta, apesar de rasa e delgada podia ser vista à distância, praticamente desde que dobrada a Ponta da Galé, já a enseada que a precedia só era convenientemente notada de muito perto, nela sobressaindo um gigantesco penedo, arredondado, como que lá colocado de propósito para balizar o melhor local para a ela aceder, e dar conta do mais adequado nível de maré para o necessário desembarque, a etapa prévia para o acesso à pródiga coutada ali existente.
Porque o grupo crescia em cada ano a olhos vistos, confirmada que fora a disponibilidade dos veteranos, o alargar da comitiva fazia-se sob criterioso e atempado recrutamento, uma escolha muito disputada entre os potências candidatos já que aquela antecipadamente apalavrada viagem de apenas três ou quatro dias era, em regra, generosamente recompensada, tal era a quantidade de carne salgada que a jornada proporcionava, também moeda de troca da empreitada. Desta vez, e ao contrário do que acontecera nas duas vezes anteriores, o jovem Serafim foi um dos primeiros a ser contactado.
Aconteceu num dia que nunca poderá esquecer dada a importância do encadeamento de acontecimentos, com início no princípio da noite anterior, e que marcaram o começo de um novo tempo, o alfa daquela que seria uma vida nova, para ele e toda a sua descendência.
De facto, na véspera, Serafim tinha recebido a notícia que lhe mudaria para sempre toda a vida. Na sequência da inusitada novidade a noite fora praticamente de vigília, um velório em que os acontecimentos dos últimos meses passavam em memória a uma velocidade estonteante. Cansado de estar na cama sem dormir, ao decidir levantar-se cedo para arejar a cabeça e assentar as ideias, foi surpreendido pelo pai, a quem não conseguiu disfarçar a angústia que o atormentava. Contornara porém a situação para se dirigir ao porto e, agora que finalmente chegara ao destino, à proximidade do mar e à possibilidade de se manter isolado por algum tempo, aparecia na sua frente o feitor do patrão de “Maria Bela”, o arrogante “Tio António Cafua”, duro e circunspecto, como quem vinha acertar contas com ele.
Sim, por mais anos de viva, Serafim jamais esquecerá este dia e a noite que o precedeu!
Mapa com o recorte da histórica costa de Santa Clara (anos do século XX), vendo-se a enseada ali chamada de “Calhau da Areia”, balizada pelas Ponta Delgada a Poente e dos Aringas a Nascente. A semi circular a cinzento dá a ideia da profundidade retirada pelos aterros feitos no século XIX a fim de por lá passar a locomotiva que ajudou a construir o porto, assinalando-se a preto o penedo conhecido como “Cunhal da Maré”, hoje também soterrado, mas que a foto ao lado documenta.