Correio da Manhã Weekend

A MÍSTICA DO MEDRONHO

- VICTOR BANDARRA ANTIGA ORTOGRAFIA

O eucalipto toma conta de vales e cabeços, a serra despovoa-se

Volteandoe­strada acima, alcança-seobarracã­o do Tio José, meio escondido numrecanto da Serra de Monchique. Exigiu paleio e boas amizades chegar até ao velho algarvio, porque o segredo era( eaindaé)aalm ado negócio caseiro da vendado medronho. Corre o Outono de 2002, anda o homem às voltas com o alambique, de onde sobem as fragrância­s da fermentaçã­o do pequeno fruto maduro, vermelho de sangue. Umritual segundo as regras ancestrais da mais pura ilegalidad­e fiscal. Em linha recta, o mar está apenas a uma vintena de quilómetro­s. Ao sentir-se o ardor adocicado na garganta, sente-se também o fosso entre os hábitos e costumes do Tio José, no seu gesto lento de encher o copinho de medronho, e os trejeitos sofisticad­os de quem levanta oco pode uísque juntoàpisc­i na costeira .“Os medronheir­os já não rendem tanto como antigament­e! O tempo mudou ...” Assim disserta Tio José, enquanto envolve em sal grosso uma finíssima fatia de toucinho. Muda o tempo e mudam-se as vontades. Os medronheir­os estão velhos, o eucalipto toma conta de vales e cabeços, os jovens abalam para a costa, a serra despovoa-se. Severos períodos de seca, alternados com diluvianas chuvadas, vão corroendo terra e arbustos. Mas o medronho ainda rende que se veja, pelos cânones da minguada economia serrana. Aviados com duas garrafas do bom, tentam debalde os compradore­s uma recordação para a posteridad­e. Matreiro, o velho escuda a cara comas mãos .“Não quero cá fotografia­s! Ainda me aparece aí a Guarda...” No ano seguinte, 2003, um violento incêndio devasta 80% do concelho de Monchique. Muitos medronheir­os sofrem e morrem. Tio José rende-se à evidência das chamas e abandona o alambique.

Devagar, o medronho renasceu nos últimos anos - é das poucas fontes de rendimento seguro da Serra algarvia. Donos de medronhais abandonado­s começaram a tratar deles. Há agora variadas marcas de aguardente de medronho de Monchique. Muitos passa- rama aproveitar os fins-de-semana para tratar das suas árvores e colher os frutos vermelhos, ainda que seja sinuosa a burocracia da legalizaçã­o da aguardente. A mística e o provento do medronho ainda ligam as pessoas à terra. Luta-se este ano pela Identifica­ção Geográfica Protegida (IGP) do medronho algarvio, a ser certificad­a por Bruxelas. O “Jornal de Monchique” anunciou, no ano passado, que“o medronho vai ser alvo de uma candidatur­a a Património Imaterial da Humanidade”. Bateram-se palmas, mas era... Primeiro de Abril. O fogo desta semana deu cabo de muitos medronhais. Há 16 anos, ainda a pensar no futuro, Tio José apontava ummedronhe­iro mirrado.“Estetemmai­sde 100 anos! Mas bastam aí uns 20 anos para dar bommedronh­o!” Vão precisar as gentes da serra de muita paciência e alguma longevidad­e para recuperare­m o genuíno património líquido de Monchique.

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