Correio da Manhã Weekend

UM POETA PARA REDESCOBRI­R

- POR FRANCISCO JOSÉ

Os seus versos procuram deixar uma morada

onde a memória não arda

Há poemas em que nada desaparece­u, nem o pó dos livros “Oslivros deEduardoG­uerra Carneiroes­tão cobertosde­ironia, ovenenodos românticos”

Lida à distância, discreta mas poderosa, a poesia de Eduardo Guerra Carneiro evoca um tempo que as “novas gerações” já não conhecem. Mesmo a sua poesia teria ficado para trás, não fosse a editora Língua Morta ter publicado recentemen­te uma antologia, ‘Mil e Outras Noites’, o que obriga a leituras de verão: há poemas em que nada desaparece­u, nada se perdeu, nem o pó dos livros. Ele, que trabalhou em jornais (‘Primeiro de Janeiro’, ‘República’, ‘Diário Popular’, ‘Século’, ‘Portugal Hoje’), sabia que o papel tem o destino marcado – e a sua poesia ressente-se desse pânico e procura deixar uma morada onde a memória não arda.

Nascido em Chaves, em 1942 (morreu em Lisboa em 2004), os versos de Eduardo Guerra Carneiro mencionam sempre a sua origem. A par de Lisboa e da sua noite (viveu-a intensamen­te), da menção permanente à realidade mais imediata, da inclinação melancólic­a sem cinza nem dourados – Trás-os-Montes aparece sempre como uma recordação musical: “O som dos chocalhos mistura-se/com o da gaita de foles e vejo/uma águia nas alturas – sombra/marcada no granito da serra.” Mas não há qualquer cedência (“A província é triste”, avisa). Os seus livros estão cobertos de ironia, o veneno dos românticos: “Dizias, noutros textos, meu manhoso,/que ao virar dessa esquina ali já estava/o gozo do real, outra lufada de ar. [...]// Hoje, mandrião, olhas as folhas,/ já secas de outras horas, e recolhes/o silêncio. Anda-me, garoto: vai/em frente. Não tenhas medo, nem/percas calendário­s. Não sentes o ar/ligeiro onde brilham borboletas?”

Alguns dos seus títulos nunca deviam ter saído das estantes: ‘Isto Anda Tudo Ligado’, ‘É Assim Que se Faz a História’, ‘Como QuemNão Quer a Coisa’, ‘Damade Copas’, ‘Contra a Corrente’ ou ‘A Noiva das Astúrias’ (seu derradeiro livro, de 2001). Lembro-me dos seus cadernos e das suas canetas de tinta permanente, de que nunca ficava satisfeito com os seus livros, de que era brigão e delicado, e também generoso – e sempre enamorado. Vem tudo nos seus versos, que me comovem tanto.

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